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Estado de Minas TRABALHO INFANTIL

Inf�ncia perdida no maior polo de joias do pa�s

Limeira (SP) representa 60% da produ��o nacional de joias, semijoias e bijuterias, mas fam�lias de m�es solo s�o for�adas � informalidade e ao trabalho infantil


22/06/2023 11:00 - atualizado 22/06/2023 14:41
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Por Juliana Aguilera
 
Colagem de crianças com cara de choro. Uma está dentro de um túnel e as outras duas estão dentro de caixas nas laterais
(foto: AzMina/Reprodu��o)
 
Os pre�os atrativos das joias, semijoias e bijuterias em Limeira, interior de S�o Paulo, carregam um custo injusto e velado: o trabalho informal de fam�lias inteiras, muitas chefiadas por m�es solo. A “Capital das Joias” responde por cerca de 60% da produ��o nacional dos produtos reluzentes, mas, em 2009, ap�s den�ncias graves, precisou fazer um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O setor e o munic�pio deveriam erradicar o trabalho infantil na regi�o, mas a promessa foi para o fundo da gaveta em 2022. 

Quase 15 anos depois, a presen�a de crian�as e adolescentes persiste no chamado “trabalho de rua”, que nada mais � do que a terceiriza��o e a quarteiriza��o do servi�o. A cidade tem cerca de 1.500 empresas no setor, e mais da metade (54%) dos estabelecimentos de semijoias legalizados terceirizam alguma etapa da produ��o, conforme estudo ainda de 2011. Na competi��o com o mercado chin�s, a precariza��o cresceu. 

Miri� Botelho, de 24 anos, foi explorada na produ��o de joias. Come�ou aos 9 anos e trabalhou at� os 16. Com o dinheiro, comprava material escolar e, ap�s engravidar, aos 14 anos, fez o enxoval da primeira filha. “Ao longo do tempo acabei precisando usar �culos. Era muito cansativo. Eu estudava de manh�, fazia curso � tarde e trabalhava de noite e de madrugada”, relata. Al�m de montar pe�as, Miri� fazia a solda fria e quente para ganhar mais. No bairro onde mora, ela diz que a pr�tica segue muito comum entre os menores de idade.

A reportagem d'AzMina viajou � Limeira e percebeu como tudo ali gira em torno das joias e bijus - a entrada da cidade, na avenida Costa e Silva, conhecida como “Avenida das Joias”, � cheia de outdoors. S�o lojas, galerias, vitrines polidas, marmorizadas, cheirosas, com caf� e doces � disposi��o dos compradores. 

Mas para manter o brilho do mercado, muita sujeira � apagada, como as irregularidades e a  situa��o prec�ria vivida por mulheres e seus filhos. N�o se enxerga as falhas nem se fala sobre os problemas abertamente por l�. Visitamos e tentamos contato com mais de 50 fontes, entre escolas, ONGs, �rg�os p�blicos, sindicatos e empres�rios. Nossa equipe enfrentou negativas, omiss�es, falta de dados e medo - por parte das trabalhadoras -, como se o acordo que funcionasse melhor ali fosse o sil�ncio, n�o o TAC de 2009. 

Informalidade estrat�gica

A ind�stria de joias em Limeira come�ou nos anos 1930. Com a alta no pre�o do ouro, a instabilidade econ�mica e a viol�ncia urbana da d�cada de 60, passou a fabricar semijoias e bijuterias. Nos anos 90, se tornou o segundo maior arranjo produtor de bijuterias do mundo, atr�s apenas da China. Hoje, fornece para a Am�rica Latina, Estados Unidos e Europa. Mas o lucro � mais importante que a qualidade e a sustentabilidade da cadeia produtiva. O setor aposta na informalidade como “comportamento estrat�gico”, avaliou o pesquisador Lu�s Paulo da Silva. 

Num cen�rio em que R$100 s�o considerados uma boa remunera��o para um conjunto de mil pe�as entregues em at� tr�s dias, mulheres acabam repassando servi�os aos filhos. “O trabalho infantil existe por tabela”, afirmou Cleusa Marrafon, assistente social no Centro de Refer�ncia de Assist�ncia Social (CRAS) de Limeira. “Se o adulto tivesse condi��es m�nimas, jamais essas crian�as iriam trabalhar”, complementou.  

AzMina solicitou ao Minist�rio do Trabalho e Emprego (MTE) estat�sticas sobre a explora��o infantil na regi�o nos �ltimos 20 anos. A pasta informou apenas o per�odo de janeiro de 2017 a abril de 2023, em que duas a��es fiscais constataram trabalho infantil no munic�pio. A equipe do MTE encontrou 14 adolescentes em situa��o ilegal, sendo: tr�s meninos e tr�s meninas de 16 anos, e dois meninos e seis meninas de 17 anos. 
 
Infográfico sobre o que é o trabalho infantil
(foto: AzMina/Reprodu��o)
 

A pobreza em Limeira aumentou com a pandemia da Covid-19, como relata Ivanice Santos, da Comiss�o Municipal de Erradica��o do Trabalho Infantil (Cometil) e presidente do Sindicato dos Banc�rios de Limeira (que apesar do nome, re�ne profissionais de v�rias categorias, inclusive das joias). “� o tempo inteiro ajudando a arrecadar alimento, roupa. As pessoas est�o tentando sobreviver, mal est� dando para colocar comida dentro de casa.”

O trabalho infantil aparece nesse cen�rio de escassez e agrava a vulnerabilidade social. “Falta dinheiro para o g�s, ent�o, a m�e come�a a trabalhar com joia, e precisa fazer uma quantidade boa para render um pouco mais. � assim que as crian�as acabam sendo inclu�das”, explica a assistente social de uma ONG em Limeira, que pediu para n�o ser identificada por receio de retalia��o. Para ela, as fam�lias pobres da cidade s�o instrumentos nas m�os do empresariado local. 

A assistente social contou sobre um caso de trabalho infantil onde crian�as n�o s� manufaturavam semijoias, mas tamb�m vendiam brigadeiro em sem�foros. A m�e de tr�s filhos, entre eles um beb�, estava sem emprego, e n�o sabia que o trabalho, naquelas condi��es de "ajudar em casa", era proibido. “Como voc� faz den�ncia quando v� a situa��o deles?”, questiona ela.

Explora��o do servi�o feminino
An�is, brincos, pingentes e gargantilhas s�o os principais produtos do setor. Na rede produtiva, h� uma divis�o sexual do trabalho: manejos de maquin�rio e de ferramentas, com contrata��o direta pelas f�bricas, s�o feitos principalmente por homens. Trabalhos manuais, como soldagem, montagem e crava��o, a maioria terceirizados, por mulheres. 

Segundo Cleusa Marrafon, do CRAS, os empregos formais n�o oferecem mais do que R$ 1.200 l�quidos e possuem muitas restri��es de hor�rios, invi�veis para as m�es solo. Ela explica que essas mulheres teriam que pagar algu�m para cuidar das crian�as e levar at� a creche, que abre �s 7h30, porque a f�brica inicia �s 7h. Como muitas moram na periferia, precisariam sair �s 6h de casa. O trabalho termina �s 17h30, mas a creche fecha antes. "A� chega em casa umas 18h30, apronta a bolsa da creche, arruma a casa, faz o almo�o para o dia seguinte. Tudo isso para ganhar menos do que se ela estivesse fazendo as joias em casa”, fala Cleusa. 

As fam�lias s�o, ent�o, empurradas para a informalidade e a explora��o, j� que o trabalho em casa pode ser conciliado com as tarefas dom�sticas. Cleusa estima que uma "trabalhadora de rua” nesse setor ganhe at� R$ 1.700. Mas o material, como alicates e ma�aricos, g�s de cozinha e eletricidade, � pago por ela e n�o entra na conta. 

Marta* tamb�m atuou no setor durante a inf�ncia. Agora, trabalhando numa corretora, ela afirma n�o querer voltar ao “trabalho de rua”, mas a m�e segue na fun��o informal, que por muito tempo foi a �nica renda da fam�lia. Ela come�ou a trabalhar aos 13 anos e parou aos 16, pois conseguiu um emprego como jovem aprendiz. O pagamento de cerca de R$ 75 era feito a cada mil pe�as, entregues em at� dois dias. 

Inseguro e irregular

Apesar de n�o gostar do trabalho, exaustivo e repetitivo, Marta pensa que ele a ajudou a ter responsabilidade. Na verdade, ela foi uma adolescente v�tima de riscos e irregularidades trabalhistas. “�s vezes a solda derretia e espirrava, caia no meu colo.”

Hoje, Marta conhece meninas de Limeira que continuam nessas fun��es, mas n�o querem contar suas hist�rias por medo. A reportagem conseguiu conversar com Patr�cia*, de 17 anos. Ela trabalhou por alguns meses e, recentemente, se afastou porque engravidou. “Eu trabalhava 8 horas por dia. Acordava, ia para o trabalho, depois pra escola, chegava em casa e dormia”, contou a jovem, que tem outras amigas no “trabalho de rua.”
 
Infográfico sobre o que fazem os trabalhadores de rua e quais os riscos envolvidos
(foto: AzMina/Reprodu��o)
 
 
Patr�cia fazia montagem e encartelamento, usando principalmente o alicate, e chegou a se machucar no trabalho. “O lugar que a gente fica sentado � ruim, cansa as costas, n�o sei se tem como melhorar. E � muito pouco que recebe”, conta a jovem, recordando da rotina intensa e repetitiva. 

A informalidade - ou “trabalho de rua” - se concentra nas etapas de soldagem, crava��o/aplica��o e montagem. Na soldagem, s�o utilizados ferros de solda ou ma�aricos, solu��es �cidas, ligas de estanho ou p� de solda, ferramentas e subst�ncias perigosas. O processo de montagem forma uma poeira met�lica, e o de solda quente, uma fuma�a branca. N�o h� informa��es oficiais sobre trabalhadores contaminados.

Impactos para a vida toda

Em 2021, uma opera��o do Minist�rio P�blico do Trabalho (MPT) flagrou irregularidades no armazenamento de subst�ncias qu�micas e trabalhadores sem Equipamentos de Prote��o Individual (EPI). A justificativa � que o uso de luvas seria invi�vel por serem muito grossas para pe�as t�o pequenas. 

H� ainda a quest�o ambiental. Qu�micos como cianeto e �cido n�trico s�o despejados no esgoto domiciliar. Em 2017, uma an�lise comprovou a alta concentra��o de elementos t�xicos no lodo (cobre e zinco). Em 2021, outro estudo encontrou c�dmio e chumbo em pe�as feitas em casa com n�veis acima do permitido no Brasil. 

Crian�as que trabalham com joias passam horas em atividades repetitivas para produzir dezenas de pe�as. “O racioc�nio e a criatividade ficam bastante restritos, e elas tendem a reproduzir o padr�o de vulnerabilidade da fam�lia”, analisa Andreia Mata, psic�loga e coautora do livro Produ��o de Semijoias em Limeira-SP. 

A aprendizagem exige condi��es favor�veis. “O c�rebro precisa construir rotas neurol�gicas, e isso gasta muita energia”, refor�a Andreia. A crian�a deve estar bem nutrida para isso, mas trabalhando ela n�o se alimenta bem e perde os momentos necess�rios de brincadeira e conviv�ncia social/familiar.

L�der comunit�ria da cidade, Roberta Rocha acredita que as crian�as que trabalham com joias, at� os 12 anos, levam como divers�o. Depois disso, vem a necessidade de renda e a mentalidade de que s� ter�o emprego nesse setor.

A pesquisadora em ergonomia M�rcia Vendramin investigou o comportamento escolar de crian�as ligadas ao trabalho infantil na cidade, de 2017 a 2019, e constatou que a faixa et�ria m�dia atingida � de 8 a 13 anos. Entre os impactos descritos est�o: sonol�ncia, queda no desempenho, abandono precoce da escola e menor renda na vida adulta. 

Atua��o do Estado � insuficiente

Os esfor�os de combate ao trabalho infantil em Limeira se misturam ao sil�ncio absoluto. Funcion�rias da Prefeitura disseram que o setor sofreu grande impacto ap�s os estudos da Universidade de Campinas (Unicamp), que levaram � assinatura do TAC com o Minist�rio P�blico em 2009. Por isso, muitos temem falar ou denunciar a situa��o. As a��es para enfrentar o problema se chocam com a cultura industrial da regi�o, que aposta na m�xima redu��o dos custos. 

O trabalho infantil � escondido pelos pais, pela vizinhan�a e pelas pr�prias crian�as e adolescentes, pois � considerado “trabalho familiar”. A explora��o � justificada equivocadamente pela “prote��o das crian�as contra as drogas, pois a ocupa��o diminui o tempo delas na rua [...]” ou a “ideia de que trabalhar quando crian�a traz responsabilidade, disciplina e fomento para uma carreira profissional”. Esses dados est�o no artigo dos pesquisadores Tiesa Capobianco e Carlos Raul Etulain, publicado em 2018. Miri� Botelho, ex-v�tima de explora��o, contesta: “meninos e meninas trabalham para ter dinheiro para consumir bebidas alco�licas e drogas em festas.” 

Tanto a Comiss�o Municipal de Erradica��o do Trabalho Infantil (Cometil), quanto a Secretaria da Educa��o e Conselho Tutelar de Limeira afirmaram n�o ter informa��es sobre casos recentes, tampouco sabiam detalhar o hist�rico de crian�as e adolescentes que trabalharam no setor de joias, semijoias e bijuterias. 

O Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) de 2009 determinou a implementa��o do ensino integral nas escolas municipais apontadas como vulner�veis � �poca. A vice-diretora de uma delas, Alessandra Alc�ntara, afirma n�o haver “relatos e nem registros oficiais de crian�as em trabalho infantil desde ent�o.”

As marcas de vulnerabilidade, entretanto, seguem no cotidiano do munic�pio, com crian�as pequenas indo e voltando sozinhas da escola, ou que afirmam cuidar de irm�os mais novos. A reportagem soube de relatos de explora��o em outras escolas, mas as diretoras das unidades n�o quiseram falar.

A presidente da Cometil, Elis Silva, afirmou que, atualmente, a comiss�o trabalha em um diagn�stico atualizado da rede educacional, atuando em duas frentes: na preven��o e prote��o, juntamente com as secretarias municipais. 

A reportagem buscou dados atualizados das empresas do setor de joias da cidade, mas n�o recebeu retorno de tr�s sindicatos - Sindijoia, Sindijor, Associa��o Limeirense de Joias (ALJ) - al�m do representante do setor no Sindicato dos Banc�rios. As tentativas de entrevistas com o Conselho Tutelar municipal e a Coordinf�ncia (Coordenadoria Nacional de Combate � Explora��o do Trabalho da Crian�a e do Adolescente), do Minist�rio P�blico do Trabalho (MPT), tamb�m foram frustradas.

Quais seriam as solu��es?

Taisa Mendes est� � frente do Juizado Especial da Inf�ncia e da Adolesc�ncia de Campinas (JEIA) desde 2020 e afirmou que at� o momento n�o teve contato com processos sobre trabalho infantil no setor em Limeira. Em 2018, ela buscou organizar uma audi�ncia p�blica em parceria com o MPT, mas a conversa n�o teria avan�ado. 

“O trabalho das crian�as e adolescentes ocorre no ambiente familiar, e n�o nas empresas. Isso dificulta a identifica��o e a fiscaliza��o”, disse a representante do juizado. Ela acrescenta que existem planos para uma a��o extrajudicial na cidade, ainda em 2023, com o envolvimento do ente municipal, de outros �rg�os e entidades de ensino profissionalizante. 

“Muita gente acha que se deixar a crian�a o dia inteiro na escola, ela far� menos trabalho infantil. Eu tenho minhas d�vidas”, reflete Sandra Gemma, outra organizadora do livro sobre a Produ��o de Semijoias em Limeira. Ela entende que se o problema de renda continuar, a crian�a trabalhar� at� de noite, por isso o enfrentamento inclui incentivos � sustentabilidade de toda a atividade industrial.

Mulheres trabalhadoras do setor tentaram criar uma associa��o, mas n�o conseguiram conciliar com os cuidados das fam�lias e foram pressionadas por organiza��es patronais. As falas recebidas eram em tom de amea�a, “se quiser participar desse grupo, participa, mas eu n�o vou mais dar material (trabalho) para voc�”, contou a assistente social do CRAS, Cleusa Marrafon, a partir de hist�rias que ouviu. Ela destaca que houve uma tentativa de parceria entre o Minist�rio do Trabalho e patr�es em 2015, mas os empres�rios recuaram ao perceber que os custos aumentariam. 

Uma sugest�o de Cleusa � a realiza��o de um estudo universit�rio para precificar o custo real da m�o de obra no setor, pois � um trabalho artesanal pago como produ��o em massa. “Calcular o tempo de produ��o m�dia, o equipamento e espa�o utilizados, para ter uma padroniza��o (do trabalho)”, recomenda a assistente social.

*Os nomes das entrevistadas foram alterados por seguran�a.
 
A reportagem original pode ser acessada no site d'AzMina. 
 

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