Por Nat�lia Sousa

Vict�ria Wingter, 22 anos, dormia no sof� de casa quando foi atacada com 14 facadas em maio de 2021 pelo ex-companheiro, Den�lson Ara�jo Leal. Foram meses internada. Quando acordou, viu o delegado na beira da cama, pedindo mais informa��es sobre o crime. Mesmo com a promessa de que a justi�a seria feita, levando o agressor � pris�o, a sensa��o foi de absoluto desamparo.
Os pais dela, que na �poca atuavam como motorista e operadora de telemarketing, na periferia de uma grande capital, tiveram que se afastar de seus trabalhos para garantir o cuidado e a seguran�a da filha. Sem renda ou expectativa de melhora, a fam�lia precisou travar outra luta pela sobreviv�ncia. Dessa vez, contra a fome.
Ao se concentrar numa ideia de justi�a que coloca todos os esfor�os na puni��o do agressor, o Estado ignora a dimens�o estrutural da viol�ncia - que passa pela pobreza, racismo, lgbtfobia, escolaridade - e trata o crime, apenas como algo interpessoal, o agressor contra a v�tima. Sem olhar para o contexto social como parte da viol�ncia, a realidade n�o � transformada, o que prejudica n�o s� a prote��o da v�tima, mas tamb�m impacta a capacidade dela de se reerguer.
Essa tentativa de coibir e prevenir crimes por meio de leis com puni��es severas � chamada de “punitivismo”. Na l�gica punitivista, a pris�o e as penas s�o usadas como exemplo para o resto da sociedade, num plano de amedrontar e mostrar que tal conduta criminosa est� sendo duramente coibida. Quanto mais intenso o castigo, mais forte a ideia de que aquele crime n�o ir� se repetir. Com essa promessa, o punitivismo encontra apoio entre a popula��o, a m�dia e a classe pol�tica, ao mesmo tempo em que � usado pelo estado como instrumento de combate � viol�ncia. Mas porque isso n�o funciona?
A puni��o n�o � eficaz
O termo 'punitivismo' � atribu�do ao criminologista Anthony Bottoms, que na d�cada de 90 escreveu um artigo sobre o comportamento de pol�ticos que defendiam determinadas penas, considerando a popularidade dessas puni��es entre a popula��o, e n�o sua efic�cia. Ele observou que as medidas que se mostravam mais efetivas (para transformar o contexto social em que os crimes aconteciam) eram trocadas por aquelas que tinham mais apelo entre os eleitores.
Uma contracorrente a esse pensamento � o abolicionismo penal. Os abolicionistas se posicionam contra as formas de castigo usadas hoje pela justi�a e defendem que elas sejam substitu�das por formas de concilia��o e repara��o. “A puni��o por si s� n�o � pedag�gica. Ela [a puni��o] n�o consegue fazer a sociedade entender que determinadas condutas problem�ticas n�o podem ser reproduzidas na sociedade”, defende Juliana Borges, autora do livro “Encarceramento em Massa”, da cole��o Feminismos Plurais.
Mas o punitivismo j� deixou suas marcas na forma��o e desenvolvimento do direito penal e do sistema carcer�rio brasileiro, e afetou profundamente as popula��es minorizadas, como as mulheres. A popula��o de mulheres presas cresceu exponencialmente e o trabalho com o cuidado das pessoas encarceradas tamb�m. Al�m disso, quando a �nica resposta a viol�ncia de g�nero � a puni��o do agressor, as v�timas s�o esquecidas.
O punitivismo encarcera mulheres pretas e pobres
Pensar o punitivismo exige uma reflex�o sobre quem faz essa justi�a e a servi�o de quem ela � feita. Um levantamento do Conselho Nacional de Justi�a (CNJ), de 2018, mostra que o perfil majorit�rio dos ju�zes brasileiros � branco, cat�lico, casado e com filhos. Em contrapartida, 68% das mulheres encarceradas s�o negras, 57% s�o solteiras, 50% t�m apenas o ensino fundamental e 50% t�m entre 18 e 29 anos - os dados s�o do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).
O Poder Judici�rio brasileiro prende, julga e condena as mulheres sem nem ao menos considerar outras formas de responsabiliza��o, indica a pesquisa do ITTC. A maior parte delas cumpre pena em regime fechado, mesmo sem possuir antecedentes criminais, e tem dificuldade de acesso a empregos formais. A maioria estava envolvida com atividades relacionadas ao tr�fico - sem oferecer grandes riscos � sociedade.
Entre 2000 e 2022, a popula��o carcer�ria feminina cresceu 512% no Brasil, conforme o Departamento Penitenci�rio Nacional (Depen). Fora as puni��es estatais, elas ainda s�o castigadas por estarem longe dos filhos e familiares, que tamb�m sofrem com suas aus�ncias. Em caso de fam�lias monoparentais, em que elas exercem exclusivamente o papel de cuidado, crian�as e adolescentes ficam expostos ainda mais � vulnerabilidade f�sica e financeira. As m�es que conseguem o direito � pris�o domiciliar enfrentam uma s�rie de restri��es que prejudicam a maternidade, como mostramos em reportagem d'AzMina de maio de 2023.
A perspectiva da estudiosa no tema Juliana Borges � de que o Estado usa a desculpa do combate � viol�ncia para exercer for�a e poder contra a popula��o mais vulner�vel. "Ent�o me parece contradit�rio demandar desse Estado, que tem a viol�ncia como n�cleo f�tico, que ele nos proteja”, defende.
A primeira Lei Criminal no Brasil entrou em vigor em 1830, quando a escravid�o era uma pr�tica no Brasil. A estrutura, desde ent�o, favorece homens brancos e castiga todo o resto da popula��o, que difere dessa classe e ra�a dominantes - ou seja, homens pretos, pessoas ind�genas, imigrantes, trans, mulheres e popula��o pobre.
No caso das mulheres, elas ainda s�o punidas com mais for�a pelo machismo judicial. Primeiro porque foram contra a lei, segundo porque s�o vistas como aquelas que se afastaram do papel de m�e e de donas de casa. As penas, nesse caso, servem tamb�m para punir e controlar o que � visto como uma “transgress�o” contra o sistema patriarcal.
Em 2021, o CNJ reconheceu como mito a neutralidade no sistema judici�rio, segundo o pr�prio �rg�o, o direito age sob a influ�ncia do patriarcado e do racismo. No mesmo ano foi lan�ado um protocolo para orientar magistrados a conduzirem julgamentos com perspectiva de ra�a e g�nero.
Quem cuida das pessoas encarceradas s�o as mulheres
Mesmo quando vivem em liberdade, � empurrado a elas o cuidado de seus familiares e companheiros presos. S�o as mulheres que fazem visitas e preparam o chamado “jumbo”, itens de alimento e higiene pessoal levados aos encarcerados - trabalho que deveria ser responsabilidade do Estado, mas � terceirizado a elas.
No Relat�rio da Defensoria P�blica de S�o Paulo, das inspe��es entre 2014-2019, 69% das pessoas presas de ambos os g�neros relataram n�o receber sabonete. As mulheres s�o usadas como uma pe�a nessa engrenagem punitiva: o Estado prende, e elas s�o levadas a fazer o trabalho n�o remunerado de mant�-los vivos l� dentro.
Muitas ainda precisam se dividir entre a administra��o da casa e o sustento da fam�lia, al�m de serem cobradas pela cria��o de netos e filhos. Isso quando n�o s�o elas que precisam ir atr�s de provar a inoc�ncia dos seus, acusados injustamente por crimes que n�o cometeram. Tamb�m abordamos isso em reportagem de 2021.
Em casos de feminic�dio, quando a m�e � morta pelo companheiro, cabe muitas vezes a av� acolher esses �rf�os. S�o crian�as traumatizadas, que precisam de tratamento m�dico, mas o Estado se concentra apenas na puni��o. E a fun��o de reparar o dano causado, que deveria ser um aspecto priorit�rio na ideia de Justi�a, fica com essas pessoas j� idosas, geralmente vulner�veis, por suas condi��es financeiras, f�sicas e emocionais.
Quando s� se pensa em puni��o, v�timas de viol�ncia deixam de ser prioridade
Uma pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais indicou que as mulheres mais atingidas pela viol�ncia de parceiros s�o jovens, negras e pobres. Outra pesquisa, realizada pelo Instituto Patr�cia Galv�o em capitais nordestinas, aponta que mulheres que sofrem viol�ncia dom�stica recebem menores sal�rios e permanecem por menos tempo em seus empregos. Por causa das agress�es, elas chegam a faltar em m�dia 18 dias no trabalho durante um ano, o que � punido com o corte do v�nculo empregat�cio ou diminui��o da renda. Enquanto a dura��o m�dia do emprego para as mulheres que n�o sofrem viol�ncia � de 74,82 meses, a dura��o m�dia no emprego para as que sofrem viol�ncia � de 58,59 meses, uma redu��o de 22%.
Mas o encarceramento do agressor � visto pela sociedade e pelo Estado como justi�a, e o contexto social, que agravou a viol�ncia permanece igual, deixando a v�tima desamparada e vulner�vel a novas viola��es. “N�o dever�amos olhar para os casos de forma isolada, mas sim, enxergar e atuar a partir tamb�m do contexto social”, avalia a mestra em direito e pesquisadora de Justi�a Restaurativa D�bora Eisele Barberis.
Quando se fala em viol�ncia de g�nero, � preciso lembrar que cada mulher vai ter necessidades e perspectivas muito particulares do que � sentir que a justi�a foi feita, ap�s a viol�ncia que ela sofreu. Ser escutada e considerada s�o partes fundamentais para ela se sentir capaz de ter uma vida minimamente satisfat�ria.
Por vergonha e medo, Vict�ria, a mulher de quem contamos a hist�ria no in�cio desta reportagem, deixou de trabalhar e sair com os amigos. Depois de frequentar algumas sess�es de terapia, oferecidas pelo Estado, ela teve alta. Ajudou, mas n�o conseguiu se abrir como gostaria. “Era muito recente”.
Uma advogada que atende a v�timas de viol�ncia dom�stica na ONG em Boas M�os se prontificou a custear tratamentos est�ticos e ofereceu amparo psicol�gico para Vict�ria. Foi diferente de tudo que ela tinha vivido at� aquele momento. As perguntas que sempre a faziam antes eram sobre a pris�o do agressor. “L� eles queriam saber como eu estava.”
O reflexo disso � que, apesar de ter aumentado o n�mero de mulheres que compareceram � delegacia em 2023, uma pesquisa do F�rum de Seguran�a P�blica que ouviu v�timas de viol�ncia dom�stica mostrou que boa parte delas optou por outros recursos: 38% resolveram sozinhas e 21,3% n�o acreditavam que a pol�cia pudesse oferecer solu��o.
A decis�o por n�o procurar as vias judiciais muitas vezes esconde o medo do encarceramento de seus agressores, com quem as v�timas mant�m rela��es de afeto e depend�ncia financeira. Algumas s�o convencidas pelos familiares e por religi�o a recuarem, porque isso significaria mandar o parceiro para a cadeia, decis�o que “desmancharia a fam�lia” e faria os “filhos crescerem sem a presen�a do pai”.
H� tamb�m o medo da revitimiza��o institucional, que � quando quem deveria zelar pela justi�a provoca mais viol�ncia. Um dos exemplos disso � quando, na delegacia, a v�tima � obrigada a recontar os detalhes da viol�ncia sofrida para diferentes profissionais. Pelo medo de n�o ser compreendida e julgada, muitos acabam permanecendo no ciclo violento, em sil�ncio.
Se n�o punir, fazer o qu�?
O relat�rio do Centro de Refer�ncia Estadual da Igualdade de Goi�s mostra que propor espa�os de reflex�o e responsabiliza��o para que agressores repensem seus comportamentos pode funcionar. A an�lise foi feita com 69 homens que participaram de Grupos Reflexivos sobre G�nero e Viol�ncia Dom�stica.
Ap�s seis meses frequentando o programa, o �ndice de reincid�ncia nas agress�es foi de 8%. A m�dia nacional, sem a participa��o em a��es semelhantes, gira em torno de 20%, e, em alguns Estados, chega a 80%, conforme dados da Secretaria Especial de Pol�ticas para as Mulheres do Minist�rio dos Direitos Humanos e da Cidadania.
A participa��o obrigat�ria de agressores em grupos assim � uma medida prevista na Lei Maria da Penha (LMP). O texto tem propostas de preven��o � viol�ncia de g�nero, como promo��o de campanhas sobre direitos humanos, equidade de g�nero, viol�ncia dom�stica, al�m de transformar curr�culos escolares para debater os temas.
Embora seja uma medida comprovadamente eficaz, a maior parte dos grupos reflexivos que existem no Brasil n�o t�m profissionais habilitados e tendem a durar pouco, conforme cita pesquisa realizada em parceria com o CNJ. Geralmente, as turmas s�o formadas por algu�m interessado em realizar o trabalho, mas acabam quando essa pessoa � transferida de �rea, ou ao fim de uma gest�o municipal.
A advogada especialista em direito das mulheres Ana Carolina Oliveira da Silva sente essa dificuldade. H� cinco anos ela tenta abrir um grupo para homens em Santos (SP), mas n�o consegue apoio do Poder Judici�rio local. “N�o tem espa�o para essa conversa". Ana Carolina avalia que insistir no punitivismo como �nica resposta � reflexo de uma justi�a que n�o pensa nas mulheres.
Justi�a para n�o aprofundar desigualdades
Para a fil�sofa bell hooks, transformar a sociedade para que ela seja melhor para as mulheres passa por disputar os mecanismos culturais. E isso � poss�vel por meio da educa��o, da promo��o de debates, de uma conscientiza��o que entenda a diversidade como uma riqueza. Ela fala ainda em desconstruir a simbologia de poder - de homem acima das mulheres -, garantindo autonomia econ�mica para que elas possam romper com o ciclo de viol�ncia. Mas como esperar esse movimento de uma justi�a fundada no poder e no olhar patriarcal?
Juliana Borges considera que a ideia de Justi�a Restaurativa traz um caminho. “Ela vai falar de um novo entendimento sobre responsabiliza��o”. No sistema atual, o indiv�duo sofre puni��o. Na estrutura restaurativa a responsabiliza��o � definida como "desempenhar a��es para reparar o dano e compensar a v�tima". E isso passa por:
- a restaura��o ou constru��o do v�nculo social;
- a repara��o � v�tima;
- a reabilita��o do ofensor.
A reportagem original pode ser encontrada no portal d'AzMina.