
Por Joana Suarez e Raquel Baster*
O parto e o aborto s�o parte da vida reprodutiva de mulheres e pessoas com �tero. S�o momentos comuns, que demandam cuidados e acolhimento. Mas um deles foi criminalizado no Brasil e em outros pa�ses, deixando de priorizar a sa�de e de proteger grande parte da popula��o. Para compreender como a interrup��o da gravidez � parte do cotidiano reprodutivo, ouvimos parteiras tradicionais ind�genas, que veem no partejar um chamado divino e entendem que � parte desse dom ajudar corpos que gestam em todas as suas necessidades, entre elas a do abortamento.
As m�os que seguram um beb� rec�m-chegado tamb�m n�o soltam as das mulheres que abortam. Maria das Dores Silva Nascimento � chamada de M�e D�ra pelo povo ind�gena Pankararu, em Pernambuco. J� realizou mais de mil partos em 40 anos percorrendo as 13 aldeias do Territ�rio Ind�gena, e tamb�m amparou mulheres em situa��es de aborto.
“Eu t� aqui pra ajudar, n�o vou deixar morrer”, disse ela, que n�o orienta e nem fornece medica��es para mulheres que queiram provocar um aborto, mas pode acolh�-las. “N�o sou contra e nem condeno ningu�m, eu deixo a escolha dela”, afirma m�e D�ra.
Outra parteira tradicional que tamb�m n�o aconselha sobre o abortamento, mas cuida de quem vive essa situa��o � Benta Martins Carvalho, a dona Benta, de 71 anos, do povo ind�gena Mayoruna, no Amazonas. Aprendeu por meio da oralidade, observando e praticando… E l� se v�o mais de 100 partos. “O aborto � um cuidado especial que as mulheres devem receber”, ressaltou Benta. Mas onde o aborto � crime, o direito de decidir ser m�e n�o � garantido. Sem acessos e condi��es iguais de planejar ou de maternar, n�o h� justi�a reprodutiva.
A �tica do cuidado
Enfermeira obst�trica e ativista pelos direitos reprodutivos h� 30 anos, Paula Viana se aprofundou tanto na parteria quanto no abortamento. O que prevalece nas comunidades ind�genas que visitou pelo Brasil � a �tica do cuidado, constru�da na rela��o de confian�a entre quem cuida e quem � cuidada. H� um espa�o de respeito � assist�ncia em sa�de, � privacidade e �s decis�es tomadas conscientemente.
Essa �tica se sobrep�e inclusive a cren�as e quest�es religiosas, que poderiam ser barreiras para o atendimento ao aborto. Mas todas concordam que as mulheres t�m que ter cuidado de qualidade e informa��o. “H� uma dist�ncia muito grande entre o que � crime ou pecado e o que acontece na vida, e as parteiras ind�genas vivenciam muito pr�ximo essas situa��es”, complementou Paula.
No Grupo Curumim (ONG feminista e antirracista), Paula vem trabalhando desde a d�cada de 90 com o projeto de uma maternidade volunt�ria e prazerosa. S�o anos de articula��o pela Humaniza��o do Parto e do Nascimento no Brasil. Para Paula, profissionais de sa�de, gestoras ou pesquisadoras precisam encontrar solu��es criativas para o desenvolvimento da autonomia dos corpos que gestam. “No final, � a mulher quem decide sobre sua vida e ningu�m vai poder impedir um aborto, mas sempre vai ter algu�m para cuidar delas.”
A Pesquisa Nacional de Aborto 2021 mostrou que 1 em cada 7 mulheres brasileiras com idade pr�xima aos 40 anos, j� fez pelo menos um aborto (o levantamento ouviu 2.000 mulheres em 125 munic�pios). A maioria, no entanto, aborta na clandestinidade, sozinha, sem orienta��o. O que deveria ser caso de sa�de p�blica � levado para esfera criminal. Ainda como consequ�ncia desse tratamento inseguro, � frequente que o atendimento n�o respeite a privacidade das pessoas.
Nascimento e morte
A parteira ind�gena Gon�alina Amajunep�, 64 anos, socorreu uma mulher que tomou um ch� de folhas abortivas e passou mal, a levando para o hospital. O m�dico da unidade ficou bravo com as duas - paciente e dona Gon�alina. “Ele achou que fui eu que dei o rem�dio (para abortar), mas quando me chamaram, ela j� tava morrendo.” O sigilo m�dico � previsto em lei e no c�digo de �tica da profiss�o, e � crime quebr�-lo, julgando ou denunciando uma mulher que aborta para puni-la.
Gon�alina � do Territ�rio Balatipon�, no interior do Mato Grosso e fez incont�veis partos trabalhando por muitos anos na sa�de ind�gena. “Ver uma vida vir ao mundo � muito gratificante, s� que tem coisas que me deixam muito triste.” Os partos onde as m�es sofreram ou morreram foram os que mais marcaram os anos de partejar de Gon�alina. Ela conta sobre um dif�cil em que o feto tinha hidrocefalia e a cabe�a n�o passava no canal vaginal. M�e e filho morreram.
Dona Benta, parteira amazonense, viu uma parente ind�gena falecer pela falta de atendimento num abortamento. “As mulheres deveriam prevenir e tamb�m serem cuidadas para evitar o que aconteceu com a minha cunhada”, refor�a.
O aborto est� entre as principais causas de mortalidade materna, mas quando � feito de forma segura, � um procedimento simples e sem complica��es. Essa alta taxa de mortes � dividida de maneira desigual no Brasil, n�o s� pelas regi�es do pa�s, mas tamb�m por classe social e ra�a, como aponta a tese “Racismo, aborto e aten��o � sa�de: uma perspectiva interseccional”, da pesquisadora Emanuelle G�es.
Mulheres negras e ind�genas, moradoras de �reas rurais, distantes dos grandes centros urbanos e servi�os de sa�de, s�o as que mais sofrem na busca por atendimento para aborto legal ou clandestino. � comum que seus casos fiquem fora das pesquisas nacionais, exatamente por estarem em locais de dif�cil acesso.
Aborto seguro para todas
Uma mulher do interior de Pernambuco, gr�vida de um feto anenc�falo, procurou um hospital para fazer o aborto, mas foi mandada de volta para casa. M�e D�ra ficou sabendo e procurou se informar para auxili�-la, pois sabia que a gestante tinha direito � interrup��o legal e segura. “Foi muito triste porque ela sofreu muito, correu atr�s [do aborto] no in�cio, quando ainda estava com uns tr�s meses de gesta��o.” Somente aos 7 meses, teve acesso ao servi�o de aborto legal.
At� o momento (setembro de 2023), o aborto no Brasil � permitido em casos de risco de morte para a gestante, anencefalia do feto e gravidez decorrente de estupro. Nenhuma dessas situa��es exige autoriza��o judicial, mas � necess�rio que as mulheres tenham acesso a unidades de sa�de capacitadas e a equipes m�dicas preparadas para o acolhimento.
A parteira M�e D�ra defende que os cuidados em abortamento deveriam ser semelhantes aos de parir - reproduzindo os mesmos direitos em todas as dimens�es: de sa�de, jur�dica e social. Ela recebeu o t�tulo de patrim�nio vivo de Pernambuco em 2022, por ser uma guardi� da cultura Pankararu e por manter a tradi��o, com sua trajet�ria de mil partos. Ela trabalha como auxiliar de enfermagem no posto de sa�de de Tacaratu, interior do estado.
Pernambuco tem mais de 900 parteiras tradicionais, ind�genas e quilombolas no Programa de Parteiras Tradicionais, criado em 1993 - considerado uma refer�ncia nacional. Cerca de 90% delas atuam em comunidades da zona rural, apoiando o Sistema �nico de Sa�de (SUS), e s�o reconhecidas pelo desempenho em a��es que visam a melhoria integral do parto domiciliar.
O programa fez algumas mudan�as e melhorias nas aldeias. “Quando eu fiz o curso de auxiliar de enfermagem fui passando para elas [outras parteiras] sobre o �lcool para limpar e o pr�-natal seguro, e melhorou muito”, avalia M�e D�ra.
Mais informa��o e mais acesso
N�o s�o apenas as parteiras que precisam melhorar o atendimento em sa�de para mulheres, meninas e pessoas que gestam. Ampliar o acesso � informa��o sobre direitos reprodutivos, treinando e fortalecendo profissionais de sa�de da Rede de Aten��o B�sica, � fundamental. � isso que visa o projeto “Mais acesso � informa��o e servi�os de sa�de sexual e reprodutiva para adolescentes e meninas do Recife” (PE). A iniciativa � da ONG Bloco A em parceria com a Prefeitura do Recife, Universidade de Pernambuco e Universidade de Bras�lia.
“O cen�rio hoje no Brasil � de a cada 30 minutos uma menina de 10 a 14 anos tem um parto, violando os seus direitos de inf�ncia e adolesc�ncia”, contextualiza Mariana Seabra, coordenadora do programa. At� os 14 anos toda gravidez � entendida como fruto de viol�ncia sexual, de acordo com o C�digo Penal brasileiro, resultando no direito � interrup��o. Essas meninas chegam ao sistema de sa�de, como prova uma an�lise dos �ltimos 10 anos em Recife, onde 40% delas tiveram de quatro a seis consultas m�dicas durante a gesta��o.
As fam�lias n�o costumam ser orientadas corretamente sobre a possibilidade da interrup��o da gesta��o. A consulta de pr�-natal dessas adolescentes n�o deveria ser vista como algo natural, pois invisibiliza a viol�ncia que ela sofreu. “A gente tem que ter pol�ticas p�blicas mais robustas para levar informa��o a essas meninas.” A aten��o prim�ria em sa�de est� em contato direto com a comunidade. Atividades de educa��o sexual e rodas de conversas nas unidades de sa�de e nas escolas ajudam a reconhecer o problema e disseminar informa��o de qualidade.
Com mais parteiras e profissionais de sa�de capazes de identificar situa��es onde h� direito ao aborto legal ou que possa fazer o acolhimento, as possibilidades de atua��o s�o ampliadas, evitando que mulheres se coloquem em risco. Com meninas e mulheres acessando mais os servi�os e conhecendo melhor os pr�prios direitos, elas morrem menos.
Cirandas com as parteiras
Para saber mais sobre o tema da parteria tradicional, o cuidado e o aborto, o podcast Cirandeiras lan�ou uma temporada sobre justi�a reprodutiva. S�o tr�s epis�dios que entrevistam** parteiras ind�genas das regi�es Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil, algumas citadas nessa mat�ria. A s�rie em �udio foi pensada para levar o debate sobre o aborto ao interior do pa�s, com a participa��o de parteiras, quilombolas e mulheres em todas as suas m�ltiplas culturas e sabedorias. A produ��o teve o apoio do Edital Futuro do Cuidado, parceiro tamb�m do Instituto AzMina.
*Joana Suarez e Raquel Baster s�o produtoras e apresentadoras do podcast Cirandeiras.
**Colaboraram nas entrevistas com M�e Dora, Gon�alina e Dona Benta, respectivamente, Bia Pankararu, a jornalista Helena Corezomae e Maria Merc�s Bezerra
Reportagem original publicada no site d'AzMina.