
Se olhou no espelho, mas n�o se reconheceu naquele reflexo. N�o existia mais vida naquela imagem. Onde foi parar sua alegria?
N�o conseguia sorrir, nem chorar. N�o sentia nada. N�o queria nada. Nem sentir as batidas do seu cora��o. Mas ele era insistente. Seguia bombeando seu sangue. Seus pulm�es continuavam recebendo o ar, inspirando, expirando. Vivia, mas estava morta por dentro.
Entrava nas redes sociais e se intoxicava com aquela positividade. N�o estava tudo bem! Mais de 450 mil pessoas j� haviam morrido e a fulana seguia exibindo seu corpinho fitness. A beltrana postava sua roupa nova e seu cabelo impec�vel. E tinha aquela outra que jurava que empoderamento feminino era um banho de loja e de sal�o.
Ela n�o queria ser uma casca bonita com um vazio interior gigante. Ela s� queria voltar a ser ela, e sentir a vida e tudo que existia em sua alma.
N�o est� tudo bem. E aceitar isso tamb�m � necess�rio. Equil�brio � acolher todos os sentimentos, os bons e os ruins. Se sentimos alegria, tamb�m temos o direito de sentir tristeza. Se sentimos euforia, tamb�m sentimos ang�stia. � desonesto s� aceitar as emo��es positivas. Para todo lado A, existe um lado B.
Seguiu na sua ang�stia solit�ria. Trabalhando, cuidando, acolhendo. Era m�e, precisava dar conta. Fechava os olhos e imaginava a dor saindo de seus pulsos, tingida em vermelho, deixando seu corpo. Um abra�o, por favor!
Ningu�m.
N�o chore! N�o seja fraca! Vai passar. Pense nas coisas positivas! Voc� precisa se cuidar!
14 meses! 14 meses dando conta de tudo. Perdeu o emprego, o casamento acabou. Aux�lio emergencial, pens�o aliment�cia, o dinheiro acabava, as contas continuavam chegando. Virou empreendedora. Tinha que sair para entregar seus produtos, precisava do dinheiro. Se sai de casa a Covid pega; se fica em casa, passa fome.
Na entrevista de emprego, tudo ia muito bem, aquela vaga era perfeita para ela, at� a p�gina dois. A vaga sumiu quando ela contou que tinha filhos. N�o tinha como trabalhar presencialmente, pois os filhos n�o estavam indo para a escola e ela n�o tinha ningu�m para ficar com eles enquanto ela estivesse trabalhando. Trabalhar em casa, sendo m�e, a empresa n�o queria. Deram outro motivo para ela n�o ser contratada, a vaga foi para um homem, que tinha filhos, mas que ficavam com a ex-mulher.
E a escola? E as aulas em casa? Quem mandou ter filho? Tem que dar conta! O filho est� indo mal na escola? Voc� tem que apertar mais! A fila do palpite errado mede centenas de quil�metros, a fila de quem ajuda sumiu.
E a vacina? A vacina n�o chegou. As crian�as n�o podem voltar para a escola em seguran�a. Com os filhos em casa, como trabalhar?
Sobrecarga. Exaust�o. Depress�o. Definhamento. Era isso, ela estava definhando. Aquela sensa��o de vazio, a falta de perspectiva. A vida que parece n�o estar sendo vivida. Era invis�vel. Ignorada. Estava definhando sem ningu�m ver. Sem ningu�m fazer nada. Ningu�m se importa.
“� preciso uma aldeia inteira para educar uma crian�a” j� dizia o prov�rbio africano. Onde est� essa aldeia? Ela havia se tornado a aldeia inteira. Era imposs�vel conseguir assumir tantos pap�is e fazer tudo bem-feito.
Um dia, ela decidiu tirar sua capa da invisibilidade. Colocou sua m�scara, abasteceu os bolsos com potinhos de �lcool em gel e foi para a rua com todas as outras pessoas que estavam se sentindo como ela: sufocadas. Aquele pa�s n�o era o que ela queria para seus filhos, seus sobrinhos, para ningu�m. Aquela vida reclusa n�o era justa. N�o era certo. Ela n�o ia mais ficar em sil�ncio. Ela tinha uma voz, e queria ser ouvida. Ela foi para a rua. Negacionismo n�o � negoci�vel. A dignidade humana n�o tem pre�o.