
Em ci�ncia, nem sempre o que se procura � o que se acha. Muitas vezes, o que n�o se procura � achado, e melhor, se transforma em algo t�o ou mais importante do que era procurado.
Traduzindo, o efeito colateral de um medicamento pode se transformar na solu��o de um outro problema, o qual n�o era o objetivo inicial do estudo. O exemplo cl�ssico e mais pr�ximo de todos n�s � o do medicamento Sildenafila, vulgo Viagra.
Inicialmente pesquisado para tratamento da hipertens�o pulmonar, este medicamento apresentava um curioso efeito colateral nos pacientes. Homens e mulheres que j� haviam pendurado a chuteira voltaram a bater um bol�o.
Como diria o fil�sofo Dad� Maravilha, n�o existe gol feio, feio � n�o fazer gol. No caso dessa descoberta, foi um gol de placa, sem querer, conhecido popularmente por jogadores de todos os esportes como "cagada".
Pois bem, foi algo parecido com isto que aconteceu com o protocolo que desenvolvemos para a Confedera��o Brasileira de Futebol (CBF). O objetivo inicial era elaborar regras que permitissem o retorno seguro do futebol durante a pandemia, a exemplo do que vinha sendo feito pelas v�rias ligas europeias de futebol e in�meras empresas mundo afora.
Fomos contatados e convidados pelo doutor S�rgio Wey, professor da Universidade Federal de S�o Paulo, para integrar a equipe coordenada pelo doutor Jorge Pagura, da CBF, para estudar e contribuir na elabora��o de regras de seguran�a para que a competi��o acontecesse.
Fica aqui registrado o meu conflito de interesse com o tema - sou apaixonado por futebol.
Ap�s longas discuss�es, que envolveram colegas de v�rias especialidades e de todo pa�s, conclu�mos um protocolo t�o r�gido e complexo que duvidamos da possibilidade de implement�-lo num pa�s com as dimens�es do nosso.
Mesmo assim, este exoesqueleto ficou de p� e andou para frente, apenas com recursos da iniciativa privada.
O trabalho se transformou, certamente, no maior levantamento de dados referentes � COVID-19 envolvendo o futebol mundial. Foram realizados mais de 90 mil testes pela PCR para a detec��o de SARS-CoV-2, vulgo novo coronav�rus, numa popula��o de 13.237 atletas masculinos e femininos, em 2.423 partidas de futebol (3.635 horas de jogo), os quais foram tamb�m submetidos a mais de 116 mil inqu�ritos epidemiol�gicos analisados pela Comiss�o M�dica Especial da CBF.
A an�lise de 67 intera��es em que o time advers�rio tinha, pelo menos, tr�s atletas afastados por serem PCR positivos para o SARS-CoV-2, evidenciou que o risco de transmiss�o do v�rus, durante a realiza��o do jogo, foi nula.
A vigil�ncia ativa, por meio de testagem ampla pela PCR, aliada a inqu�rito epidemiol�gico pr�-jogo, impediu que jogadores infectados pelo coronav�rus, incluindo os assintom�ticos, participassem das partidas.
Os dados epidemiol�gicos e a an�lise estat�stica n�o mostraram nenhuma associa��o entre a incid�ncia de infec��o nos clubes e as cidades de origem destes times. Ou seja, a realiza��o das partidas de futebol, com as regras estabelecidas pelo protocolo, em nada afetaram o curso da epidemia nas cidades onde os jogos foram realizados. Da mesma forma, a epidemia nas cidades n�o afetou os clubes.
Apesar do contato pr�ximo durante os jogos de futebol e do alto risco de transmiss�o comunit�ria de COVID-19 no Brasil, a transmiss�o do SARS-CoV-2 durante os jogos n�o foi observada na temporada 2020-2021 entre os jogadores e �rbitros.
A an�lise de mobilidade dos jogadores, feita por pesquisadores alem�es com a utiliza��o de GPS, provou que, durante um jogo de 90 minutos, o contato m�ximo que um jogador tem com outro a menos de 1 metro de dist�ncia, n�o dura mais que que 1 minuto e 30 segundos, o que � bem menor que os 15 minutos necess�rios para que haja transmiss�o do v�rus, conforme as defini��es de contato de alto risco do CDC de Atlanta - USA.
Al�m disso, sendo a atividade ao ar livre, e estando todos os envolvidos com testes pr�-jogo com resultado negativo pela PCR para o SARS-CoV-2, a probabilidade de transmiss�o do v�rus � virtualmente nula.
Por uma �nica falha de comunica��o, em uma partida da s�rie B, um jogador com teste PCR positivo jogou por 45 minutos. Todos que estavam em campo foram testados nos dias subsequentes. Ningu�m foi infectado.
Surtos investigados que ocorreram nos clubes, em sua quase totalidade, foram por quebra do protocolo pelos jogadores ou membros da comiss�o t�cnica e dirigentes.
Merece destaque: n�o houve �bitos entre os atletas e menos de 0,1% necessitou interna��o. Destes, todos est�o recuperados, sem sequelas, e j� voltaram a jogar pelos seus clubes.
Mas as principais conclus�es e legados deste estudo est�o longe do mundo futebol�stico. O estudo evidenciou que poder�amos ter tido, no Brasil, cerca da metade do n�mero de casos de COVID-19 que tivemos e, consequentemente, milhares de �bitos a menos.
Bastaria termos testado o maior n�mero de pessoas poss�vel pela PCR e, consequentemente, os indiv�duos positivos ficassem isolados por pelo menos 10 dias. Estudos t�m confirmado que mais de 60% das infec��es s�o causadas por pessoas sem sintomas ou antes de apresentar os primeiros sinais da doen�a.
Novidade? Claro que n�o!
Esta foi a mesma estrat�gia utilizada por v�rios pa�ses, principalmente os asi�ticos. Exatamente os mesmos que mantiveram PIB positivo em plena pandemia, provando que proteger as pessoas � a melhor maneira de proteger a economia.
Vale lembrar que a cadeia produtiva do futebol no Brasil garante a sobreviv�ncia direta de milhares de fam�lias e movimentou, em 2018, cerca de R$ 59,2 bilh�es, com um impacto em 0,72 % do nosso PIB.
O futebol j� foi tachado de "o �pio do povo". Claro, depende do contexto e de quem o analisa.
Nesse caso e nesse momento que vivemos, o futebol, assim como as deliciosas lives do Caetano, Gil, e tantas outras, podem ser o b�lsamo para amenizar a dureza do isolamento social de uma pandemia que nos roubou o horizonte, mas n�o o belo da esperan�a.
A ind�stria do entretenimento, reinventada na sua forma de se relacionar com o grande p�blico, e respaldada por protocolos cientificamente validados, � mitigadora da depress�o e da ang�stia, que, por sua vez, t�m elevado os �ndices de dist�rbios mentais e suic�dio durante a pandemia.
Choramos nossos mortos, mas com a postura ativa de reduzir danos futuros. Para que isso ocorra, n�o basta olhar a temperatura na porta de estabelecimentos. � necess�rio que as pessoas sejam testadas, as assintom�ticas identificadas e orientadas a se afastar do conv�vio social por um per�odo m�nimo de 10 dias. Apenas ter febre � um sintoma pouco confi�vel nessa doen�a.
Como tudo em ci�ncia, o protocolo de seguran�a no futebol e em todas as outras atividades � uma pe�a viva, que deve ser aperfei�oado a ponto de romper com os novos desafios impostos pelas incertezas da pandemia.
As variantes virais, assim como os belos chutes de craques como Nelinho e Eder Aleixo, t�m rumo incerto e s� a ci�ncia explica o seu comportamento.
Mas, e o gol contra na epidemia? Quem fez?
Algumas torcidas invadiram o campo do bom senso e promoveram aglomera��es. Estas, assim como seus respectivos times, deveriam ser punidos pelo mau comportamento de fan�ticos inconsequentes.
O v�rus deve ser visto como um t�cnico rigoroso que exige disciplina, respeito pelo semelhante, principalmente pelo seu advers�rio, que n�o � inimigo, mas apenas colega de trabalho.
Alguns jogadores de grande visibilidade pisaram na bola e fizeram jogo sujo, prejudicando a si mesmos, suas fam�lias e a sociedade a qual pertencem. Cart�o vermelho para o antijogo epid�mico.
Mas os piores exemplos foram dados exatamente por quem quis usar o futebol como "�pio".
Quem foi que aglomerou, promoveu aglomera��es, menosprezou as m�scaras, banalizou cuidados higi�nicos, incentivou drogas sem comprova��o cient�fica e, principalmente, desdenhou das vacinas?
E pior, quem influenciou uma parte significativa da popula��o a n�o respeitar as regras fundamentais para conter a dissemina��o viral?
A primeira parcela da conta est� chegando agora. Em um pa�s literalmente asfixiado pela insensatez, arrog�ncia e incompet�ncia, teremos que nos submeter a uma intuba��o sem a anestesia do futebol.
Tenho certeza que o leitor inteligente identificou muito bem quem fez a lamban�a.
Apesar de todo esfor�o realizado para se estudar cientificamente um problema in�dito, ficar� valendo o senso comum, o grito desesperado do t�cnico mal informado, e a manifesta��o eloquente, sem qualquer fundamento, de alguns especialistas em tudo e em coisa alguma.
Brasil estar�, mais uma vez, vazio nas tardes de Domingo...
Miraram na codorna e mataram o cachorro...
*Apesar de n�o ser usual em cr�nicas, esta merece refer�ncias bibliogr�ficas.
Refer�ncias:
JONES, Ben; PHILLIPS, Gemma; KEMP, Simon; PAYNE, Brendan; HART, Brian; CROSS, Matthew; A STOKES, Keith. SARS-CoV-2 transmission during rugby league matches: do players become infected after participating with sars-cov-2 positive players?. British Journal Of Sports Medicine, [S.L.], p. 1-7, 11 fev. 2021. BMJ.
https://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2020-103714.
MEYER T, MACK D, DONDE K. Successful return to professional men’s football (soccer) competition after the COVID-19 shutdown: a cohort study in the German Bundesliga. Br J Sports Med 2020.
SCHUMACHER, Yorck Olaf; TABBEN, Montassar; HASSOUN, Khalid; MARWANI, Asmaa Al; HUSSEIN, Ibrahim Al; COYLE, Peter; ABBASSI, Ahmed Khellil; BALLAN, Hani Taleb; AL-KUWARI, Abdulaziz; CHAMARI, Karim. Resuming professional football (soccer) during the COVID-19 pandemic in a country with high infection rates: a prospective cohort study. British Journal Of Sports Medicine, [S.L.], p. 1-7, 15 fev. 2021. BMJ.
https://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2020-103724.