
O Braz foi meu cabeleireiro durante muitos anos, assim como de milhares de estudantes, professores e funcion�rios da Faculdade de Medicina da UFMG. Desde 1969, cortava o cabelo de todos com carinho, bom humor e eleg�ncia de um coiffeur de Paris.
Enquanto tive cabelo, eu o visitava de tempos em tempos. Quando ele come�ou a me cobrar meia, passei a ir at� l� apenas para visit�-lo e rir um pouco. Meticuloso e detalhista, conhecia seus fregueses pelo nome. Formar na faculdade n�o significava abandonar o Braz.
Mesmo os que iam para muito longe de BH, sempre voltavam ao DA da Medicina para matar a saudade dos tempos de estudante. Cortar o cabelo com o Braz era como viajar no tempo, reviver os primeiros dias do curso e sentir o frescor do entusiasmo e orgulho de frequentar aquela faculdade e pertencer a um espa�o seleto pelo qual batalhamos por quase uma vida.
O Braz era bem mais que um cabeleireiro. Era um s�mbolo incrustado dentro de outro s�mbolo, o Diret�rio Acad�mico da Faculdade de Medicina da UFMG. Local hist�rico de contesta��o, debates acalorados, divers�o e de cortar o cabelo com o Braz.
Durante alguns anos fomos vizinhos e parceiros de trabalho.
Tudo come�ou num corte de cabelo (naquela �poca eu ainda os tinha), quando fiquei sabendo que o inquilino do bar do DA estava de sa�da.
Alguns minutos depois, ficamos sabendo tamb�m que o Jaime, nosso colega de turma e de boteco, iria se casar. Sua namorada estava gr�vida e como um “cabra macho” e honrado do Norte de Minas, comeu, engravidou, casou.
O Jaime tinha um problem�o: grana para se sustentar. Pensou at� em parar o curso de medicina para trabalhar. N�s t�nhamos dois problemas. N�o quer�amos perder a companhia do amigo, nem a oportunidade de termos o boteco do DA, nosso ponto de encontro.
Problema posto, solu��o dada. Alugar�amos o bar do DA.
O Jaime ficaria com metade do lucro e n�s, os outros 14, com os outros 50%. Cada um teria 1/14 de 50% do poss�vel lucro. Planejamento perfeito em papel de padaria. Tinha tudo para dar certo.
Dos 14 donos, t�nhamos tr�s agregados de outras faculdades. O Dango, da odontologia e m�sico de alt�ssimo n�vel, o Adelsinho, das artes pl�sticas, e o J�nior Medonho, da escola de direito e primo do Gustavo Werneck.
Aprendemos na pr�tica a import�ncia da multidisciplinaridade na gest�o de neg�cios.
O Jaime topou com certa relut�ncia. Assim come�ou nossa vida empresarial. Dividimos os plant�es no boteco de forma a n�o comprometer aulas e est�gios. Tudo perfeito!
Minha m�e fazia as empadinhas que se tornaram famosas em todo o Campus Sa�de. Supimpa era o respons�vel por busc�-las e degustar a primeira e levar uma especial para mim. Carinho especial de m�e do grupo escolar a faculdade.

Era ele quem abria o bar, que em dias de festas s� fechava com a sa�da do �ltimo bebum. Com frequ�ncia, n�s mesmos.
Com o tempo, fomos sofisticando os sandu�ches. Surgiu, assim, a deliciosa "Dalva de Oliveira" e o compacto, mas potente, "Nelson Nedi". O Braz, nosso vizinho de porta, se tornou quase o 15° propriet�rio.
Tivemos fregueses inesquec�veis, como o Picol�, funcion�rio da biblioteca e nosso paciente no ambulat�rio de f�gado do Bias Fortes. O Alberto, faxineiro do DA, que nos ensinou a import�ncia do respeito � diversidade sexual, coisa que n�o se ensinava na �poca, em nenhuma mat�ria da faculdade.
O poderoso Apolo, l�der estudantil, que um dia, no plant�o do Adelsinho, pediu um pendura de seis cervejas. Com vergonha de perguntar o nome da figura ilustre, desenhou uma caricatura da figura no livro caixa. Uma obra de arte, inconfund�vel, a qual encontra-se de posse do Gustavo Werneck at� hoje.
E assim levamos o bar at� que o Jaime n�o precisasse mais da grana que seus 50% lhe conferia. Os outros 50% foram deliciosamente bebidos e deglutidos pelos demais propriet�rios.
Em nosso curriculum na faculdade deveria constar este est�gio extracurricular: gest�o de boteco. Mat�ria complexa e disputad�ssima. Apenas 14 vagas para centenas de candidatos.
Nem tudo foram flores neste per�odo complexo ditatorial e de luta pela retomada da democracia no pa�s. Ser dono de boteco e cabeleireiro dentro de um DA naqueles tempos tinha seus riscos. Reuni�es da UNE e do DCE eram proibidas e reprimidas de forma violenta pela pol�cia e pelo temido DOPS.
Certa vez, a UNE bancou a briga e resolveu fazer o congresso aqui em BH, no DA da Medicina. Clientela garantida para o Braz e para n�s do boteco.
S� n�o cont�vamos com o fechamento do Campus pelo aparelho repressivo do Estado. Ficamos todos presos no DA por um bom tempo, at� sermos levados para interrogat�rio e fichamento.
Sa�mos do DA num corredor formado por policiais afim de cobrir-nos de cacete e cachorros babando para morder nosso traseiro.
Cora��o a mil, fui com o Braz, ambos esperando pelo pior. Tortura com choque el�trico, pau de arara e etc. Tudo isto por cortar cabelo e vendermos cerveja, empadinha e a deliciosa Dalva de Oliveira. N�o era justo.
O Braz e eu ficamos juntos o tempo todo. Afinal, nosso �libi era o mesmo: trabalho. Ele cortava cabelo e eu era dono de 1/14 de 50% de um boteco. Mais do que convincente. Para o interrogat�rio sempre haviam dois policiais. Um queria seu f�gado e o outro quase lhe fazia um cafun�.
�s vezes trocavam de posi��o, conforme o interrogado. O Braz foi na minha frente, mas ficamos muito pr�ximos um do outro. Eles pareciam j� nos conhecer. Poderiam ser um dos in�meros fregueses do Braz ou do nosso boteco.
Mas, o interrogat�rio era uma praxe. As porradas tamb�m. Ossos do of�cio.
- Qual nome do Sr.?!
- Braz
- � imbecil, nome completo cara!!
- Braz Indiano de Souza
- Fala alto cara!
Foi nesse momento que eu percebi que a coisa n�o estava nada boa para Braz e tentei ajudar.
- � Braz, fala logo quem voc� �!!
O policial mau n�o teve d�vida. Me deu um coc�o e gritou no meu ouvido, que o zumbido n�o me largou at� hoje.
- � engomadinho fdp, fica calado a�, seu viado! Espere a sua vez cara.
- � que ele � o cabeleireiro do DA e eu sou um dos donos do boteco cara.
- PQP, estes caras t�m cada desculpa. Eles acham que n�s somos idiotas � Zez�.
Zez� era o bonzinho.
- Calma Felip�o, esses caras s�o do bem. V�o contar para gente tudo direitinho. De qual fac��o voc�s s�o?!
A� o Braz se manifestou de forma menos hesitante.
- Eu sou o cabeleireiro do DA e esse menino � do boteco.
- T� bom! Ent�o me prova. Pega a tesoura l� que eu t� precisando cortar o cabelo.
- Quer dar um tapa no visu ?! � comigo mesmo, disse o Braz.
- Se fizer caminho de rato eu te mato de porrada.
E, pelo "tapa no visu", Braz levou uma bolacha.
Pensei comigo: se ele pedir uma Dalva, vai ser complicado. O sandu�che seduzia os mais exigentes paladares, mas exigia ingredientes imposs�veis para o local.
Depois de cortar o cabelo de uns cinco e fazer da sala de interrogat�rio um sal�o de beleza, eles se convenceram que ele era de fato bom no que fazia. Foi quando o Zez� interrompeu.
- Agora traz l� o p�o de forma pra esse aqui fazer os sandubas.
O este aqui era eu! Fiz uma Dalva de Oliveira, improvisada, mas convincente e libertadora! P�o de forma branco, manteiga por fora, duas fatias de mozarela, presunto, hamb�rguer de frango (ficou faltando), tomate, alface e maionese.
Pode ser Dalva quente ou fria. Eu prefiro a quente. Mas, a fria tamb�m � inesquec�vel.
Fomos liberados e o Braz me confessou que alguns dos caras continuaram seus fregueses por muitos anos. Liberados sem fichamento por uma tesoura velha improvisada, mas nas m�os de um craque e pela Dalva de Oliveira.
Nosso boteco fechou. Nunca tiramos um centavo do neg�cio. O lucro intang�vel s�o as dezenas de hist�rias para contar e os divertidos momentos que vivemos.
Na semana passada o Braz nos deixou. A COVID-19 o levou, junto com os outros 345.287 mortos pela "gripezinha". Foi dar "um tapa no visu" dos anjos. Se daqui para a frente algu�m tiver uma vis�o do Cristo de cabelo cortado, certamente foi o Braz.