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Estado de Minas

O som das sirenes do SAMU

"Vendo o bel�ssimo trabalho feito pelas unidades deste servi�o, o som das sirenes, que me acordam no meio da noite, soam aos meus ouvidos como Beethoven"


17/07/2021 06:00

(foto: Gerd Altmann/Pixabay)

O sprint na reta da Igrejinha da Pampulha era o ponto alto do nosso giro da lagoa h� quase 20 anos. Saindo da rotat�ria do Mineirinho, o clima no pelot�o j� ficava tenso e a acelera��o era explosiva, 50 metros adiante. Disput�vamos chegar na frente em uma linha imagin�ria, para ganhar absolutamente nada.

Foi nesse exato momento que meu p� escapou do pedal e voei at� aterrissar como uma jaca no ch�o. Jaca amassada por dezenas de ciclistas que se amontoaram sobre mim.

Capacete partido, �culos com lente enterrada no superc�lio e obnubilado, realmente s� me dei conta de onde estava, dentro de uma ambul�ncia do Samu, ou Resgate, n�o me lembro mais qual foi.

Ao recobrar a consci�ncia e j� me sentindo seguro e acolhido, olhei para o m�dico que me assistia e disse: - Maravilha! Esta � a primeira vez que viajo dentro da minha pr�pria ideia.

Percebi que ele n�o havia entendido nada ao comentar com a enfermeira: - O paciente est� confuso, ligue oxig�nio a 3 litros por minuto e avise a central que vai precisar de CTI.

Claro, ele n�o poderia imaginar o prazer que eu sentia em fazer aquela viagem, apesar das dores dos ferimentos. Afinal, uma frase como esta, dita por um ciclista que havia se arriscado a fazer um sprint no meio dos carros e, agora, politraumatizado, s� poderia ser dita por algu�m fora do seu ju�zo perfeito.

O que ele n�o sabia � que a hist�ria era outra, e eu a conhecia muito bem.

Tudo come�ou numa tarde de s�bado, em meados dos anos 80, em Freiburg, Alemanha. Eu fazia um fellow no Servi�o de Higiene Hospitalar sob a supervis�o do professor Franz Daschner, o qual me havia sido apresentado por uma m�dica do Paran�, doutora Terezinha Carneiro Le�o, sua fellow anterior.

Junto comigo estava uma enfermeira do Servi�o de Transplantes de Medula do Hospital de Cl�nicas do Paran�, Cristiane Nubel. Nos prepar�vamos para assistir uma quarta de final de Copa do Mundo, aquecendo os tambores no 9° andar do Shewesterhaus para ver Brasil X Fran�a, quando um barulho vindo da rua nos chamou a aten��o.

L� fora uma chuva fina fez um motoqueiro cair, se arrastando no asfalto. Nosso instinto socorrista nos levou at� a esquina, onde chegamos praticamente juntos da ambul�ncia do servi�o de urg�ncia que atendia a regi�o. N�o existia telefone celular na �poca.

Fiquei maravilhado com a rapidez e agilidade com que o rapaz fora assistido. Lembrei do dia em que decidi me enveredar pelo estudo das infec��es hospitalares. Foi durante um est�gio no Hospital Jo�o XXIIII, nosso principal ponto de atendimento ao trauma de Belo Horizonte. Durante uma visita peri�dica a uma enfermaria neurol�gica, nos deparamos com seis pacientes tetrapl�gicos, os quais, basicamente, aguardavam o pr�ximo surto de pseudomonas, como sentenciou nosso preceptor.

A pseudomonas � uma bact�ria que geralmente infecta pacientes graves e extremamente vulner�veis. Naquele contexto, funcionavam com o anjo da morte. Aqueles seis pacientes eram sobreviventes de acidentes de tr�nsito atendidos de forma solid�ria por leigos tentando ajudar. Geralmente eram colocados em carros pequenos e improvisados da pol�cia, que simplesmente ligavam a sirene e rumavam para o HJXXIII.

O trauma r�qui-medular, a tetraplegia causada pelo trauma ou pelo transporte improvisado, encontravam infalivelmente a pseudomonas letal. N�o me esque�o nunca do odor daquela enfermaria. Eu o defino como o cheiro da morte.

No dia seguinte, relatei ao doutor Daschner meu interesse em conhecer o servi�o de atendimento de urg�ncia da regi�o, ligado � universidade. Ele prontamente atendeu ao meu pedido e na mesma tarde eu j� estava dedicando parte do meu tempo conhecendo e acompanhando as equipes de atendimento de urg�ncia. Por v�rias semanas, dividi meu tempo entre o Controle de Infec��es e o Servi�o de Urg�ncias.

Ao retornar para o Brasil e �s fun��es na Superintend�ncia Hospitalar da Funda��o Hospitalar de Minas Gerais (FHEMIG), apresentei a proposta de cria��o de algo semelhante ao que havia visto em Freiburg, tanto em rela��o ao controle de infec��es, quanto ao atendimento de urg�ncia.

Formamos uma equipe de trabalho e nos dirigimos ao Centro de Opera��es da Pol�cia Militar (COPOM), onde mapeamos todos os pontos onde a maioria dos acidentes aconteciam. Eu, Alzira, Paulo Roberto e Sandy Barreto discutimos demoradamente o planejamento deste poss�vel servi�o.

Passei dias escrevendo e resumindo o que havia visto em Freiburg e a experi�ncia acumulada pela pol�cia militar num projeto de atendimento a urg�ncias em Belo Horizonte e Regi�o Metropolitana.

O projeto teve total aprova��o do superintendente da FHEMIG e do secret�rio da sa�de. Mas faltava a aprova��o do governador. Preparei slides no Marcos Cine-foto, transpar�ncias, e rumamos para o Pal�cio da Liberdade para o veredicto do governador.

L� chegando, depois de um belo ch� de cadeira e milhares de cafezinhos, finalmente eu iria come�ar a t�o esperada apresenta��o.

Mas o popular governador atendia telefones, secretarias e deputados, todos ao mesmo tempo e com um bom humor e energia surpreendentes. Eu n�o tinha a menor vez! Assim que eu come�ava a falar, era interrompido por um telefonema ou um deputado, que sem qualquer cerim�nia adentrava o recinto. Meus slides, transpar�ncias e dados de custo-efetividade n�o tinham o menor impacto.

Ao perceber a inutilidade dos meus argumentos, apelei: - Governador, este projeto vai colocar mais de 25 ambul�ncias circulando pela cidade e regi�o metropolitana, com a sirene ligada e com o as laterais escritas Governo NC, o que o senhor acha? Ele n�o titubeou: - Projeto genial menino! Secret�rio, bota pre�o e vamos fazer para o estado inteiro.

Aos poucos fui vendo o meu sonho, compartilhado com meus colegas da FHEMIG, transformar-se em realidade. Primeiro sugiram veraneios cinzas circulando pela cidade e estacionadas em pontos cr�ticos, os quais hav�amos definido. Confesso que, a princ�pio, fiquei decepcionado. Mas, aprendi que, em gest�o p�blica, com muita frequ�ncia, o bom � inimigo do �timo.

Com o tempo, o projeto foi tomando corpo, at� se transformar em algo muito pr�ximo do que realmente eu vivenciei naquela tarde em Freiburg, quando, em companhia de franceses, vimos o Brasil perder nos p�naltis e n�o caminhar para a final. Brasileiro fora do Brasil fica ainda mais brasileiro durante jogos da nossa sele��o. Trata-se, provavelmente, de orgulho compensat�rio de nosso complexo de inferioridade frente a pa�ses desenvolvidos.

Certamente, o colega que me atendeu no tombo de bicicleta na lagoa da Pampulha tinha todos os motivos do mundo para n�o entender a minha felicidade de, apesar de todo ralado e politraumatizado, viajar dentro da minha pr�pria hist�ria.

Hoje, em plena epidemia, vendo o bel�ssimo e heroico trabalho feito pelas in�meras unidades deste servi�o, o som das sirenes, que me acordam no meio da noite, soam aos meus ouvidos como a Sonata ao Luar, de Beethoven.

Mas, o odor daquela enfermaria e o olhar daqueles seis pacientes, n�o h� corona nesse mundo que consiga subtrair do meu olfato e da minha mem�ria.

*Este texto � dedicado ao Dr. Franz Daschner, aos meus colegas da Superintendencia Hospitalar da FHEMIG que participaram dessa hist�ria e aos funcion�rios que atendem no SAMUR e RESGATE.

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