
J� foi o tempo que mandar algu�m � merda significava briga certa.
Esses dias, mandei Sophia, minha filha adolescente, � merda. Ela, a princ�pio, assustou por alguns segundos. Depois, morreu de rir e continuou o "bullying" dom�stico, t�pico de adolescentes merecedores do xingando antigo e ultrapassado.
Para um ator, desejar "merda" � carinho. Na intimidade dos palcos, entre cortinas e cen�rios, essa palavra ganhou contornos de um amuleto, um desejo de sorte.
Assim como no teatro, onde a palavra "merda" evoluiu de um termo vulgar para um desejo sincero de sucesso, na literatura a abordagem de temas considerados "sujos" ou "desagrad�veis" tem sido transformada em arte por c�rebros talentosos. Autores como Kafka, Beckett, Bukowski e Joyce n�o hesitaram em mergulhar nas profundezas da condi��o humana, expondo as "merdas" da exist�ncia e da sociedade.
Franz Kafka, por exemplo, com sua vis�o sombria e absurda da burocracia e aliena��o, como retratado em "A metamorfose", apresenta a metamorfose de um homem em um inseto como uma manifesta��o literal da degrada��o e insignific�ncia humanas. Nesse contexto, a transforma��o em algo repulsivo e indesejado pode ser vista como uma representa��o da "merda" onde todos pousamos em algum momento de nossas vidas.
Al�m dos holofotes, plateias e conflitos dom�sticos, a merda tem uma hist�ria rica e multidimensional, que se estende desde o palco, a poesia, a filosofia, at� os laborat�rios de ci�ncia, epidemiologia e campos agr�colas.
Nas cl�nicas e hospitais, por exemplo, o que poderia ser considerado indesej�vel ou repulsivo torna-se uma ferramenta essencial de diagn�stico cl�nico e epidemiol�gico.
Fezes s�o analisadas em busca de sinais de infec��es, parasitas ou at� ind�cios ocultos de doen�as mais graves, como o c�ncer de c�lon. O transplante de fezes e dr�geas contendo microbiota fecal, embora possam soar estranho, tem sido a salva��o para muitos pacientes com diarreia grave por toxinas produzidas por pat�genos resistentes.
Cientificamente, mandar ir � merda pode significar investigar profundamente um problema. Ou seja, ir �s �ltimas consequ�ncias numa proped�utica.
Para gerenciar a pandemia em Belo Horizonte, usamos dados preciosos produzidos pelo Departamento de Saneamento da UFMG. O professor C�sar Mota e sua equipe de brilhantes pesquisadores mensuraram a concentra��o de v�rus da COVID-19 em diversas esta��es de tratamento de esgoto da cidade. Esta informa��o nos adiantava o que iria acontecer com a demanda por atendimento m�dico e leitos hospitalares em at� 14 dias.
O uso do esgoto sanit�rio em epidemiologia � hoje uma ferramenta poderosa para entender as condi��es de sa�de da popula��o de uma forma r�pida e ao mesmo tempo sofisticada.
Por outro lado, em estudos avan�ados sobre o microbioma, cada amostra fecal � uma janela para um universo complexo e vibrante, revelando os bilh�es de microrganismos que convivem em nosso intestino. Este ecossistema, intrinsecamente equilibrado, tem conex�es surpreendentes com nossa sa�de mental, imunidade e at� propens�o a certas doen�as.
Assim, o que uma vez foi descartado como "merda", hoje � visto como um tesouro biol�gico.
E a agricultura? A� a merda, sob a forma de esterco, tem sido o ouro negro dos campos h� s�culos. Enquanto fertilizante, o esterco nutre o solo, tornando-o f�rtil e preparado para dar vida a uma variedade de culturas.
Marneu, meu irm�o, usava na fazenda Europa em Ibi�, o " ciclo da merda" para gerir curral, galinheiro e piscicultora. Segundo ele, ningu�m nunca reclamou do leite, do frango com quiabo ou da til�pia frita com lim�o siciliano e cacha�a, todos, frutos do mesmo ciclo.
Mas n�o para por a�. Com as preocupa��es crescentes sobre as mudan�as clim�ticas e a busca por fontes de energia renov�veis, as fezes tamb�m est�o sendo reconhecidas como uma fonte potencial de biog�s, que, quando produzido e processado corretamente, pode fornecer uma alternativa mais limpa aos combust�veis f�sseis.
E, se voltarmos no tempo, aos s�tios arqueol�gicos, encontraremos copr�litos, fezes fossilizadas que contam hist�rias de civiliza��es antigas, revelando detalhes sobre suas dietas, estilos de vida e at� doen�as. Em ecologia, as fezes de animais selvagens s�o uma fonte inestim�vel de informa��o, ajudando os cientistas a rastrear movimentos migrat�rios, entender comportamentos alimentares e monitorar a sa�de das popula��es animais.
Portanto, embora em muitas culturas a palavra "merda" possa evocar sentimentos de repulsa ou at� ser usada como um termo agressivo e pejorativo, ela desempenha pap�is cruciais em muitos aspectos de nosso mundo.
Do teatro � medicina, da agricultura � arqueologia, ela nos lembra que a beleza, a utilidade e o valor muitas vezes podem ser encontrados nos lugares mais inesperados. E assim, de maneira mais profunda e complexa do que podemos imaginar inicialmente, a "merda" realmente faz diferen�a.
