
Geraldo sente na pele a l�gica do capitalismo que reinou at� o surgimento do coronav�rus. Uma economia que n�o tem olhos para ver e dar oportunidades ao povo da rua, com tamp�es no ouvido do cora��o. Geraldo acredita em uma mudan�a, quando os moradores em situa��o de rua deixar�o de ser invis�veis e imprest�veis para uma parte da sociedade menos generosa. Expostos ao sofrimento, aos caprichos do tempo, � fome e � viol�ncia, ele tem certeza de que rua n�o � casa de ningu�m.
A chegada da COVID-19 pegou todo mundo de surpresa, principalmente entidades e institui��es como a Pastoral do Povo da Rua, que j� batalham h� mais de 30 anos pela dignidade dessas pessoas. De repente, sob as ordens do v�rus, os restaurantes populares fecharam as portas nos fins de semana. O Parque Municipal de Belo Horizonte, onde muitas pessoas em situa��o de rua tinham espa�o para o banho e as necessidades fisiol�gicas di�rias, tamb�m foi barrado. Junto com o coronav�rus, os term�metros abaixaram, expondo essa popula��o aos rigores e consequ�ncias de um inverno de gelar corpos e almas.
Uma rede humanit�ria veio se somar �s entidades que j� tinham o cora��o solid�rio e sens�vel para essa causa, que batalham religiosamente por moradia e trabalho para essa gente abandonada � pr�pria sorte. Era preciso abrir frentes, para garantir o caf� da manh�, oferta de um kit inverno, vagas para hospedagem aos velhos de rua e doentes cr�nicos e atendimento de sa�de e higiene.
Uma rede do bem se juntou � Pastoral do Povo da Rua, da Arquidiocese de BH , e v�rias empresas toparam o desafio de ajudar nessa transforma��o, para que quase nove mil pessoas de rua sejam sujeitos de direitos, protagonistas da pr�pria hist�ria e n�o mais seres abjetos.
Geraldo est� em uma dessas casas, abertas provisoriamente para acolher o povo em situa��o de rua. Ele � um dos 20 h�spedes, sendo que, nesses meses de acolhimento, um deles voltou para a fam�lia no interior de Minas e outro fugiu, o que costuma ocorrer. De m�scara, Geraldo tem trabalho e renda. Cumprimenta os visitantes com toque de cotovelo, sem dar as m�os ou abra�ar.
Faz parte da Associa��o dos Catadores de Papel, Papel�o e Material Recicl�vel (Asmare), criada na d�cada de 1990 por iniciativa da Pastoral do Povo da Rua, que est� na terceira gera��o de netos dos fundadores. Fez parte do projeto Empreendendo Vidas – tamb�m iniciativa da mesma pastoral – e desde 2014 � funcion�rio do Mineir�o, em eventos e jogos. Tem uniforme, monta, desmonta equipamento, faz reciclagem e desperta a consci�ncia ecol�gica dos frequentadores do est�dio, com distribui��o de sacolinhas para restos de lixo. Prova de que � poss�vel, com apoio e vontade pol�tica, dar dignidade a todos.
Cita tamb�m os Cozinheiros de Rua, que surgiu do projeto Empreendendo Vidas. Em uma das casas de hospedagem, eles puderam mostrar o talento gastron�mico na prepara��o de canjica para todos. De dar �gua na boca. No fim de semana, o caf� da manh� para distribui��o foi feito, com amor e alegria, em uma padaria do Barro Preto (o dono desse estabelecimento se integrou � rede humanit�ria).
Geraldo � um sonhador e junto com mais 35 moradores em situa��o de rua mergulhou em cursos de capacita��o na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cefet e Senai, por meio dos polos de cidadania – grupos de vulnerabilidade social. Foi o bastante para se sentir incentivado a continuar caminhando em busca de um lugar no mundo. Com resultados bons ou ruins, tornaram-se protagonistas da pr�pria hist�ria. Somente 11 resistiram a tudo, cumprindo os direitos, mas tamb�m reconhecendo deveres. Nem todos aguentaram esse trabalho coletivo, que � justo, equilibrado, mas desafiador.
Os 11 moradores em situa��o de rua montaram uma cooperativa. Cada um faz o que sabe: servi�os de bombeiro, eletricista, pedreiro, pintor e outros. Geraldo sabe que � mais dif�cil para eles, pois precisam ser conhecidos e concorrer com outros da �rea e n�o se abalar com uma sociedade que ainda vive sob o mandamento do “quem indica”.
Geraldo resiste a tudo e a todas as artimanhas de uma velha economia. Na semana passada, os 11 integrantes da cooperativa foram requisitados para um trabalho na Asmare, depois que pessoas entraram e roubaram a fia��o de um dos galp�es.
Acha que depois de tanta luta, � chegada a hora da mudan�a de paradigma. Um movimento diferenciado com a chegada COVID-19 est� abrindo portas para uma economia solid�ria – e a compreens�o de que os indiv�duos em situa��o de rua n�o s�o v�timas, mas protagonistas.