
Como � de conhecimento geral, o ano de 2018 foi marcado pela interven��o federal no Rio de Janeiro, com a presen�a do Ex�rcito chegando em tanques e blindados para assumir a seguran�a p�blica do Estado. H� poucos dias, por sua vez, a Pol�cia Federal, com base em um relat�rio emitido pelo TCU, cumpriu diversos mandados para apurar abusos, desvios de finalidade e superfaturamento dos gastos com a interven��o.
Dentre os itens apontados, verificou-se diversas compras de itens de luxo, como vinhos, presunto de parma, camar�o, bacalhau, torta holandesa, etc. Al�m disso, foi observado o uso da verba extraordin�ria da interven��o para fazer reformas em unidades do Ex�rcito sediadas no RJ, ou seja, sem qualquer conex�o com a interven��o.
Par�ntesis 1: Presunto de Parma, ou mais tecnicamente, Prosciutto di Parma, � um presunto produzido por um processo de cura especial, realizada exclusivamente dentro dos limites geogr�ficos da regi�o de Parma (It�lia) e nos termos do Consorzio del Prosciutto di Parma. S�o produzidos exclusivamente com su�nos das ra�as Large White, Landrace e Duroc, alimentados com cereais e soro de leite provenientes da produ��o de queijo Parmigiano Reggiano.
Eu n�o sei voc�, mas eu nunca tinha ouvido falar desse neg�cio. Ent�o achei importante pesquisar e explicar.
Voltando: Muito mais do que os fatos em si, o relat�rio do TCU e a opera��o da PF levam a uma reflex�o importante e laconicamente negligenciada no Brasil. E como voc� j� deve saber, o que est� em todos os portais n�o me interessa, porque voc� j� sabe mesmo. O bom � pensar no que est� por tr�s de tudo isso e que quase ningu�m v�.
E o que est� por tr�s de tudo isso � a autonomia financeira que o Ex�rcito criou para si mesmo e foi acolhido ao longo dos anos. Para entender essa autonomia � preciso entender como se estrutura a Administra��o P�blica brasileira.
Par�ntesis 2: eu vou tentar simplificar para o que me interessa e, com isso, obviamente ficar� lacunoso. Entretanto, � imposs�vel tratar com completude, dado o tamanho da mat�ria e a infinidade de peculiaridades. Aos puritanos de plant�o, j� fica a� a minha justificativa.
Voltando: A Administra��o P�blica se manifesta no mundo do direito por meio de pessoas jur�dicas. Pessoa jur�dica � uma esp�cie do g�nero pessoa (que pode ser natural, como eu e voc�, ou jur�dica, como as empresas, uma associa��o ou o Munic�pio que voc� mora). Na estrutura do Estado brasileiro, s�o pessoas jur�dicas a Uni�o, os Estados Federados e os Munic�pios.
Essas pessoas jur�dicas podem ser descentralizadas em outras pessoas jur�dicas com finalidades espec�ficas, como as autarquias, as funda��es, as empresas p�blicas e as sociedades de economia mista (cada uma com uma fun��o). Ent�o a Uni�o � uma pessoa jur�dica, o Banco Central do Brasil � uma autarquia (outra pessoa jur�dica), a Funda��o Nacional dos Povos Ind�genas � uma funda��o (outra pessoa jur�dica), o Servi�o Federal de Processamento de Dados � uma empresa p�blica (outra pessoa jur�dica) e o Banco do Brasil � uma sociedade de economia mista. Cada um desses tem um CNPJ diferente e tem o que se denomina personalidade jur�dica pr�pria, a par de, cada um no seu quadrado, fazer parte da Administra��o P�blica Federal.
Dentro de cada pessoa jur�dica dessa, h� o que se chama de desconcentra��o administrativa, que nada mais � do que a divis�o dessa pessoa jur�dica em �rg�os p�blicos, de modo a viabilizar que o servi�o p�blico seja executado com especialidade. � a l�gica cl�ssica da divis�o do trabalho que se utiliza em qualquer lugar do mundo (eu acho, pelo menos).
Esses �rg�os p�blicos n�o t�m CNPJ, pois s�o parte da pessoa jur�dica a que pertencem. Ent�o, se voc� chegar ao Departamento de Fiscaliza��o do Banco Central do Brasil, estar� diante de um �rg�o de uma autarquia (o Bacen). Qualquer coisa que acontecer ali, ser� de responsabilidade do Bacen e n�o daquele �rg�o espec�fico.
Se o departamento em quest�o aplicar uma multa (por exemplo), o questionamento judicial da multa (tamb�m por exemplo) n�o ser� contra o servidor ou contra o departamento, mas contra o Bacen. Da mesma forma, se a multa n�o for paga, a cobran�a ser� feita pelo Bacen. Isso porque � a autarquia que � pessoa (jur�dica) e, por isso, somente ela tem personalidade jur�dica.
Par�ntesis 3: personalidade jur�dica � a capacidade de adquirir direitos e obriga��es. Logo, se o seu gato matar o passarinho do vizinho (j� aconteceu comigo), quem paga o preju�zo � voc�, j� que o gato n�o tem personalidade (ainda que esta afirma��o valha exclusivamente para o mundo do direito e n�o para a defini��o de alguns espa�os na sua casa).
Voltando: e o que tudo isso que eu falei tem de rela��o com o Ex�rcito e com os fatos ora em evid�ncia? Tem muito, porque o Ex�rcito escapa de todas essas regras sem um fundamento constitucional ou legal expresso.
O Ex�rcito � �rg�o da Uni�o. E voc� j� viu que isso significa que ele � uma desconcentra��o das atividades da pessoa jur�dica e, por isso, n�o tem personalidade jur�dica pr�pria. Se n�o tem, logo, n�o tem autonomia e capacidade de assumir direitos e obriga��es, certo? Errado!
Contrariando toda a l�gica da regra apresentada acima, o Ex�rcito � um �rg�o que age como uma pessoa jur�dica aut�noma, assumindo direitos e obriga��es, contratando e distratando, comprando e alienando, enfim, fazendo tudo que uma pessoa jur�dica pode fazer, mas sem o ser. E mais, sem qualquer interfer�ncia da pessoa jur�dica a que est� vinculado (a Uni�o).
O que surpreende � que essa estrutura tem previs�o legal (art. 12, § 3º, da Lei Complementar n. 97/99) e � justificada nos livros de Direito com o fundamento da import�ncia do �rg�o para a Hist�ria do pa�s e sua posi��o de relevo que lhe garante autonomia. Se voc� visitar a p�gina institucional do Minist�rio da Defesa, vai ler que a defesa tem estrutura organizacional “peculiar”, de modo que os “Comandos das For�as Singulares disp�em de estruturas pr�prias, de efetivos de pessoal militar e civil, fixados em lei, e de autonomia para fazer a gest�o, de forma individualizada, dos recursos or�ament�rios que lhes forem destinados no or�amento do Minist�rio da Defesa”.
Ainda que se reconhe�a racioc�nio contr�rio, mas se a m�trica for a import�ncia para a Hist�ria e sua posi��o de relevo, tamb�m era preciso conceder autonomia para o Minist�rio das Rela��es Exteriores (s� para dar um exemplo) que j� salvou o Brasil de poucas e boas ao longo de toda a nossa Hist�ria (inclusive recente). � s� um exemplo, mas contundente o suficiente para entender que est� muito na hora de revisar essa ideia um tanto quanto esquisita de conceder patentes jur�dicas (com todo o trocadilho poss�vel) para �rg�os sem qualquer justificativa de direito.
Essa aus�ncia de hierarquia (t�o louvada pelas for�as militares) leva a resultados absurdos como esses que vimos agora no notici�rio; leva aos milh�es gastos com procedimentos est�ticos, como vimos em passado recente; e a tantos outros que aparecem quando algu�m, acidentalmente, chama a aten��o para o fato. Sabe-se l� o que mais n�o ocorreu e n�o sabemos, dado que a administra��o militar se multiplica em milhares e que fazem o que querem, sem rela��o de subordina��o.
Sim... n�o s�o tr�s unidades aut�nomas, mas milhares. E todas elas se valem desta l�gica da sua import�ncia para tentar se desvencilhar do controle a que est� submetida toda Administra��o P�blica! Quer um exemplo? Olha uma das justificativa apresentadas pelo 5º Batalh�o de Engenharia e Constru��o do Ex�rcito (sediado em Rond�nia) para se livrar de graves irregularidades encontradas em contratos pelo TCU:
“o 5º BEC � parte integrante da hist�ria de Rond�nia e do pioneirismo do desenvolvimento na Amaz�nia, onde foi implantado mais de 1600 km de rodovias federais. Dentre suas miss�es regionais tem-se: construir, reparar e conservar vias de transporte e instala��es diversas, cooperando com �rg�os p�blicos para o equipamento do territ�rio, em particular, da regi�o onde est� desdobrada no Estado de Rond�nia” (TCU, AC�RD�O 2111/2016 – PLEN�RIO, Rel. Augusto Nardes, julgado em 18/08/2016).
Se voc� tamb�m ficou com aquela sensa��o de “tela azul”, estamos do mesmo lado. At� porque a import�ncia de um �rg�o (e mesmo de uma pessoa jur�dica) para o pa�s ou uma regi�o jamais foi baliza para nada. Logo, o problema � grave e foi criado institucionalmente, o que � o passo mais certo para dar errado, agora sem trocadilho.
A import�ncia das for�as armadas n�o pode lhes retirar ou flexibilizar as regras de controle, que devem ser superiores e externas (especialmente civis). Na realidade, quanto maior a import�ncia, maior e mais rigorosa deve ser a vigil�ncia (exatamente por serem importantes). Situa��es como as verificadas atualmente no caso da interven��o no RJ s� mostram que a execu��o da atividade fim deve caber ao �rg�o especializado, mas o suprimento, a organiza��o da estrutura, finan�as, log�stica e tudo o mais que se refira a viabilizar a exist�ncia do �rg�o, deve ser atribui��o de �rg�os superiores e diversos.
� assim com “todo mundo” e simplesmente n�o faz sentido que seja diferente com as For�as Armadas.