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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

'Israel x Palestina' e as nossas eternas falsas premissas

O notici�rio sobre o conflito entre Israel e Palestina em curso tem mostrado como temos dificuldade de dar �s coisas a complexidade que elas t�m.


11/10/2023 06:00 - atualizado 11/10/2023 09:50
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bandeira dividida ao meio pela diagonal por uma rachadura, tendo a metade de cima parte da bandeira da Palestina em vermelho, preto, branco e verde e na parte de baixo a bandeira de Israel em azul e branco, com a estrela de Davi.
Antes de agitar bandeiras, � preciso se dar ao trabalho de entender porque elas foram hasteadas. (foto: Istok)

 

Tem um livro muito interessante e que vale a pena ler chamado “Side by Side: parallel histories of Israel-Palestine”, de autoria de Sami Adwan, Dan Bar-On e Eyal Naveh, em parceria com o Peace Research Institute in the Middle East. Desafortunadamente n�o tem tradu��o para o portugu�s que eu conhe�a, mas se voc� se desenrola minimamente com o ingl�s, vale a leitura.

 

A ideia do livro � simples e genial: ele come�a dos dois lados. As duas capas s�o capas “da frente” e voc� escolhe por que lado come�ar a ler. Se come�ar a ler por uma capa, vai ler a vers�o israelense dos principais fatos hist�ricos desde a Declara��o de Balfour e depois a instaura��o do Mandato Brit�nico da Palestina at� os anos 1990 (a edi��o que eu tenho � de 2012). Se come�ar a ler pela outra capa, vai ler a vers�o palestina dos mesmos fatos hist�ricos, de modo que o livro tem dois cap�tulos I, dois cap�tulos II e assim sucessivamente.

 

O surreal � que parece que se est� falando de coisas completamente diferentes e n�o s�o. Os nomes mudam, as refer�ncias mudam, as consequ�ncias mudam e a no��o de certo e errado tamb�m. Desta pequena introdu��o tiramos uma conclus�o importante: a Hist�ria tem seu m�todo cient�fico (que s�o modelos historiagr�ficos), mas em muitas situa��es acaba sendo o relato de um fato e n�o o fato em si.

 

Isto porque, normalmente, quem conta a Hist�ria � quem venceu a guerra. Al�m disso, quem conta a Hist�ria � um ser humano, com todos os seus enviesamentos intranspon�veis. Ou seja, h� de se ter algum cuidado com a fonte e entender que a fonte tem um lugar de fala. E est� tudo bem com isso, pois o ser humano � assim e n�o vai mudar.

 

Par�ntesis 1: trazendo para exemplos dom�sticos tupiniquins, podemos citar: foi golpe ou n�o foi golpe em 2016? Foi golpe ou n�o foi golpe em 1964? Foi aboli��o ou n�o foi aboli��o em 1888? Para todas essas perguntas a resposta �: depende de quem vai responder. Entendeu?

 

Voltando: Partindo dessa premissa, anda me causando muito espanto a forma tacanha com que a imprensa brasileira e, por ricochete, as pessoas em geral (nos debates, nas redes sociais e onde possam reverberar suas tend�ncias) t�m tratado o conflito entre Israel e Palestina. F�ssemos um pouco mais cuidadosos, ter�amos uma certa cautela em nos posicionar sobre um conflito que come�a em 66 d.c.

 

Eu n�o escrevi errado! Esse conflito come�ou em 66 d.c. (no ano 66 depois de Cristo). �, no m�nimo, um tanto quanto pretensioso da nossa parte fazer afirma��es categ�ricas (e, portanto, simplistas) sobre algo com um n�vel de complexidade com o qual n�o somos acostumados a lidar.

 

Firmada mais essa premissa, ainda temos o fato de que n�s, brasileiros, desconhecemos conflitos territoriais fronteiri�os. As fronteiras brasileiras sempre foram s�lidas e mesmo quando entramos em guerra contra o Paraguai (que � uma vergonha para a Hist�ria brasileira que ignoramos solenemente), a quest�o n�o era de fronteira.

 

Par�ntesis 2: o Paraguai sente at� hoje os reflexos dessa guerra, dada a dimens�o das viola��es praticadas pelo Brasil. At� hoje os paraguaios se referem a n�s como “imperialistas” e nos veem com certa desconfian�a. Por surreal que pare�a, somos imperialistas de algu�m...

 

Voltando: ou seja, a gente n�o tem viv�ncia real e nem hist�rica de disputas territoriais, de modo que fica mais dif�cil ter a percep��o da constru��o das viv�ncias e constru��es culturais a partir do territ�rio. Isso �, em parte, o que nos ensina a Geopol�tica, dado que estruturas f�sicas (naturais ou n�o) s�o capazes de modular povos inteiros e formatar culturas, costumes, leis e Estados. N�o sabemos o que � isso, pois n�o faz parte da nossa Hist�ria.

 

� preciso somar, ainda, que existe uma confus�o infantil entre os atores envolvidos neste conflito que s� pode ser proposital. Eu continuo firmemente tentando acreditar que n�o � pura ignor�ncia, at� porque, se for, � muito preocupante. A confus�o � que h� 4 atores envolvidos no conflito e n�o 2.

 

De um lado, o povo de Israel e o governo de Israel e, de outro, o povo palestino e o Hamas. O governo de Israel n�o se confunde com o povo de Israel. Assim como o povo palestino n�o se confunde com o Hamas. Misturar essas coisas � inadmiss�vel para quem pretende pelo menos pensar um problema.

 

E � interessante que quem faz essa confus�o l� fora � exatamente quem faz quest�o de separar essa diferen�a aqui dentro. Vi gente que sempre fez quest�o de frisar que o atual governo do Brasil n�o o representa tratar o povo palestino como se fosse o Hamas e o povo de Israel como se fosse o seu governo.

 

Par�ntesis 3: � o tipo de “confus�o” que n�o se justifica. O Brasil � sede de uma das maiores organiza��es criminosas do mundo: o PCC. Por causa disso, todos n�s somos criminosos e devemos ser eliminados por algum “pa�s do bem”? Acho que n�o, n�? Ou ent�o somos governados pelo PT. Ent�o por causa disso, todo brasileiro � petista e endossa e concorda com tudo o que seus dirigentes fazem? Eu tamb�m acho que n�o. E esse “n�o” � t�o �bvio que neg�-lo beira a m�-f�.

 

Voltando: Ora, � preciso coer�ncia. E com essa coer�ncia, � poss�vel fazer recortes e ultrapassar esse embate de futilidades que estamos vendo na internet e que amesquinha o sofrimento real de tantas pessoas. A partir disso, � poss�vel entender que o problema � muito mais complexo do que pode parecer ser.

 

E, mesmo assim, � poss�vel afirmar que o Hamas praticou uma atrocidade contra o povo de Israel. Ao mesmo tempo, � poss�vel afirmar que em Gaza h� milh�es de palestinos que n�o t�m a menor inger�ncia neste conflito (e tamb�m n�o o querem) e que est�o sofrendo as consequ�ncias com a pr�pria vida.

 

Tamb�m ao mesmo tempo � poss�vel afirmar que ver o governo de Israel (e n�o o seu povo) cortar suprimentos b�sicos como �gua, energia e produtos m�dicos por tempo indeterminado de todo o povo da Palestina � estarrecedor. Fosse tomada uma medida como essa por Daniel Ortega, estariam todos gritando o nome que tem: genoc�dio. E n�o � genoc�dio do Hamas, mas do povo palestino.

 

Par�ntesis 4: curiosamente, aqueles que ignoram laconicamente este fato s�o, em regra, os mesmos que condenam com veem�ncia os ataques russos contra postos civis na Ucr�nia, a evidenciar uma civilidade de ocasi�o ou por conveni�ncia.

 

Voltando: Tamb�m ao mesmo tempo � poss�vel afirmar que os ataques em massa promovidos pelo Hamas contra o povo de Israel t�m nome: terrorismo. Tamb�m � poss�vel afirmar, por fim, que o apoio ou a cr�tica do povo de Israel �s medidas de seu governo s�o sin�nimos de que h� muito mais complexidade do que afirma��es bin�rias e fechadas.

 

S� para ter uma ideia, o grupo mais � extrema-direita que eu conhe�o � “apoiador” do Hamas! Sim, n�o apoiam o povo palestino, mas o Hamas. E sabe o motivo? Porque, para eles, Israel � o “MST que deu certo” no Oriente M�dio.

 

E se voc� pegar o mapa do Mandato Brit�nico da Palestina, assumido pelo Reino Unido em 1923 com a queda do Imp�rio Otomano depois da I Guerra Mundial e depois a divis�o da ONU de 1947, � exatamente isso mesmo. Israel “tomou posse” como um bom e velho l�der do MST de uma terra que julgava (apesar de os documentos dizerem o contr�rio) ser legitimamente sua. E depois fez outro movimento para expandir a “ocupa��o” em 1967.

 

De novo as palavras... se voc� perguntar para um membro do MST, ele vai dizer que � uma “ocupa��o”. Se voc� perguntar para o dono da fazenda, ele vai dizer que � “invas�o”. Por que naquele territ�rio a percep��o palestina seria diferente da percep��o do fazendeiro brasileiro?

 

E advinha em favor de quem o MST brasileiro se posicionou? Do fazendeiro... ou, se quiser contextualizar, do povo palestino.

 

Por fim, e eu j� abordei aqui na coluna esta quest�o quando tratei das rela��es entre Brasil e Venezuela, � preciso reafirmar a nossa capacidade prec�ria de pensar o mundo. Ainda agimos em p�blico como se existissem bandidos e her�is soltos por a� se digladiando para salvar ou aniquilar a paz mundial.

 

Nesse palco, n�o h� her�is e nem bandidos, mas interesses em jogo. � preciso parar (s� parar) de acreditar que algu�m neste tabuleiro joga por “amor � camisa”, por irresigna��o absoluta e irrestrito senso de dever. No plano internacional n�o tem lei, n�o tem governo, n�o tem regra e n�o h� limite: tudo � puro instinto de sobreviv�ncia e jogo de for�a, onde o mais forte vence sempre, ainda que com uso da covardia.

 

� nada rom�ntico, mas � realista. E, sendo realista, os �nicos inocentes dessa hist�ria s�o os mortos, os feridos, os que est�o sem comida, sem �gua, sem suprimentos, os que perderam familiares, os que perderam suas casas e sua dignidade. E isso tudo n�o respeita fronteira e nem nacionalidade, assolando de um lado e do outro quem quer que n�o tenha um bom discurso para chamar de seu.

 

Em suma: a gente precisa com muita urg�ncia parar de ter esse pensamento manique�sta, no sentido de eleger um para colocar no pedestal do “bom”, do “bem”, do “her�i” e do “mocinho” e eleger outro para colocar no pedestal do “mau”, do “mal”, do “vil�o” e do “bandido”. Pensar assim s� d� “carta branca” para o mocinho fazer atrocidades em nome do bem e impede de se buscar, ainda que minimamente, compreender a causa do vil�o ser tachado de vil�o.

 

� preciso ter cuidado com r�tulos. No meio do conflito, Jesus foi colocado no pedestal do vil�o, perseguido, ca�ado e condenado; Ant�nio Conselheiro tamb�m foi colocado nesse mesmo lugar e aniquilado por isso; Cop�rnico foi outro a destilar a sua vilania contra a sociedade por meio dos seus sacril�gios; Zumbi dos Palmares era criminoso e desestabilizada a sociedade.

 

Por sua vez, o Estado, em nome do bem, praticamente dizimou os Tutsi em Ruanda e apenas uma pessoa foi responsabilizada internacionalmente; o povo arm�nio viu quase 2 milh�es dos seus dizimados entre 1915 e 1923 e absolutamente nada aconteceu, tendo o governo otomano (hoje turco) se resumido a negar o fato e est� tudo bem... em nome do bem; assim tamb�m foi o Holodomor Ucraniano levado a efeito pelo governo sovi�tico em 1931/33; assim tamb�m na B�snia no recente 1995, onde mu�ulmanos foram dizimados pelo ex�rcito S�rvio. Tudo em nome do bem, tudo em nome da paz.

 

Cansei. E imagino que voc� tamb�m. Mas se pelo menos deu para ter uma pequena no��o de que a quest�o � muito (muito!) mais complicada do que pode parecer, valeu a pena se desgastar um pouco mais. 

 

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