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Estado de Minas

'Precisamos normalizar o fim da norma'

Como a normatividade � uma pris�o e tentam manter nossos corpos encarcerados nela


01/06/2022 06:00 - atualizado 01/06/2022 13:28

Foto em preto e branco de Jéssica com escritos no corpo
J�ssica Balbino: 'n�o precisamos normalizar, precisamos quebrar com a cadeia da normatividade' (foto: Lu Alves/Divulga��o)

 
“Precisamos normalizar tal coisa (...)”. Dia ap�s dia, tu�te ap�s tu�te, esbarro em frases como essa, aos montes, por a�. E, h� algum tempo, tem me deixado exausta e me colocado para pensar, inclusive, sobre as quest�es relacionadas aos nossos corpos dissidentes. A quem interessa normalizar as coisas e os corpos? 

A normatividade � a pris�o dos dias atuais. Passamos anos, qui�� uma vida inteira, buscando jeitos de ingressar numa caixa que n�o nos cabe - seja por sermos grandes demais, gordos demais, viados demais, l�sbicas demais, disruptivos demais - pra caber nesses lugares j� pr�-reservados, acordados, dentro da norma. 

A normatividade � a moeda de troca dos dias atuais. S� � poss�vel fazer transa��es - e existir - dentro dela. Qualquer passo fora e, voil�, voc� n�o � mais desejado, bem quisto, humanizado. 

Contudo, venho me questionando: pra que tanto esfor�o em caber num lugar que � t�o violento? Pra que tanto empenho de pertencimento a um espa�o que nos nega uma vida inteira?

Assim, penso que recusar a norma � contrariar o que est� posto. � parar de buscar, via de regra, o que chamamos de “aceita��o”. Ser aceito por quem? E pra qu�?

No texto “Clube de Admiss�o”, da poeta argentina Checa Kadener, uma mulher gorda, ela critica, duramente, a normatividade, revelando que nunca entrou inteiramente nela. “A normatividade � evidente assim, passeia todos os dias diante dos nossos narizes, nos olha com raiva, nos pede coisas que nunca quisemos dar, e nos castiga, pela d�vida de que podemos n�o cumprir suas regras.
 
Muitas vezes pensei em desautoriz�-la, tacar fogo no clube, inclusive cuspi na sua porta, mas nada disso faz sentido enquanto continuamos rasgando nossas vestimentas para poder fazer parte dela. E ent�o pedimos a inclus�o, pedimos que ampliem os requisitos de entrada, para que n�o fiquemos de fora, para celebrar o auge de pertencer”. 

Do lado de c�, me identifico e, cada dia mais, me recuso a pertencer a normatividade, tomando ojeriza aos dizeres “precisamos normalizar tal coisa”. N�o. N�o precisamos normalizar, precisamos quebrar com a cadeia da normatividade. E quando digo cadeia, penso mesmo em pris�o, afinal, tudo que � normativo: a sexualidade, os corpos, os comportamentos, s�o pequenas pris�es em que a moeda � se adequar. 

A normatividade n�o permite desobedi�ncia, surpresa, diversidade. Por isso, n�o precisamos normalizar nada. Precisamos � como nos diz um amigo querido, Th�ssio Ferreira, “tem � que abolir o conceito de normal, essa aberra��o”. 

Pois, sim! O conceito de normal � o que beira a aberra��o. O que encaixota nossos territ�rios aos que nos colonizam. N�o existe nada mais colonial do que o conceito da normatividade, que nos obriga horas em academia, de clareamento dental, genital, de vida. Que nos deixa cada vez mais magros, cada vez mais brancos, cada vez mais sumidos em meio � multid�o. 

Nossa beleza - que reside, exclusivamente, no que � �nico - fica sumida e engolida a cada esfor�o que fazemos para nos adequarmos �s normas. 

Quando olhamos do lado de c�, de fora da norma, nos surpreendemos com o quanto podemos ser livres e, ent�o, criarmos nossos pr�prios espa�os, onde podemos experimentar a vida, nossos corpos, nossa sensualidade, nossos afetos e tudo mais que quisermos em uma perspectiva que � s� nossa, sem o atravessamento do olhar do outro. 
 
Um homem escreve no corpo de Jéssica Balbino, que está de sutiã, as palavras 'dieta' e 'livre'
J�ssica Balbino: 'assim, penso que recusar a norma � contrariar o que est� posto' (foto: Lu Alves/Divulga��o)
 
Quando ent�o percebemos isso, j� n�o nos interessa pertencer. Tampouco entrar na linha de produ��o dos corpos normais. Esse pensamento vai ao encontro do que eu disse no texto “A import�ncia do fracasso para que possamos existir”. E quando falo dessa exist�ncia, falo, sobretudo de nos misturarmos ao que � normativo. De nos mesclarmos ao que tentam evitar. De sairmos do espa�o guetificado ao que nos destinam: os “fora da norma”, os corpos “fora do padr�o”. Os corpos “sem lugar”. Os habitantes do “n�o-lugar”. 

Fa�o esse texto para que pensemos e entendamos a import�ncia de podermos ter uma exist�ncia que n�o precise, necessariamente ser pol�tica e/ou combativa da norma. N�o a queremos, mas essa recusa pode ser s� uma recusa e n�o um lugar a ser habitado, pelo qual, novamente, ser� preciso brigar. 

Que possamos ser nossos corpos dissidentes, n�o-normativos e que possamos existir, misturando e confundindo as linhas invis�veis que nos separam e desumanizam. Que essa recusa, seja, enfim, uma forma de sermos, apenas. Que possamos, enfim, habitar nossas subjetividades com tudo que nos foi negado, com tudo que negamos. E que, enfim, possamos. 

Gosto de pensar n�o mais em incendiar a norma - que sim, � uma aberra��o, bem mais que nossos corpos - mas de apenas confund�-la, com a pluralidade das nossas exist�ncias. 

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