
Eu n�o sou violenta. Nem de longe. Embora seja marrenta e ostente, por vezes, uma postura constru�da pelos anos de pancada da vida, braba, eu n�o sou assim. Sou doce, terna e emp�tica. Tanto que gasto in�meras sess�es de an�lise para dizer sobre como adoraria me priorizar, mas sempre acabo me sentindo culpada por validar o que sinto antes de acudir tudo e todos � minha volta. E, n�o raro, entendo que esse sintoma � reflexo da gordofobia.
Mas, a coluna n�o � sobre minha persona no div� e sim como a gordofobia � violenta. T�o violenta, que passa batido. Que � sutil a ponto de n�o ser notada. Que � cooptada o tempo todo por pautas como press�o est�tica, body positive, empoderamento feminino e dist�rbios alimentares.
Vou ser odiada pelo que vou dizer - e aqui temos mais um requinte da gordofobia - mas todos estes argumentos s� refor�am, ainda mais, essa opress�o, que estrutural e institucionalizada.
Vejam s�, tudo que citei: press�o est�tica, body positive, empoderamento feminino e dist�rbios alimentares s�o tent�culos da gordofobia, que deixa lastro para se sofisticar de forma a validar, classificar e amplificar estes discursos e soterrar as pessoas gordas ainda mais na invisibilidade, na falta de afeto e na desumaniza��o.
Qualquer pessoa sofre press�o est�tica. Qualquer pessoa pode n�o estar confort�vel com o pr�prio corpo. Qualquer pessoa pode se olhar no espelho e n�o se reconhecer no que v�. Isso � resultado da press�o est�tica Que d�i. Que machuca. Que � perversa pra caramba. Mas, trat�-la gordofobia quando se trata de pessoas magras � invalidar uma causa que tem outros furos.
Uma pessoa que n�o est� contente com o pr�prio corpo e ainda sim, � magra, vai ser atendida num hospital t�o logo der entrada. Uma pessoa gorda vai aguardar, na porta, por uma maca que a caiba. E vai morrer ali, esperando. Como j� vimos ocorrer este ano. Uma pessoa que sofre bulimia e � magra, ainda que n�o esteja fisicamente saud�vel e precise de cuidados, vai para uma entrevista de emprego e vai ser contratada. A pessoa gorda, possivelmente, ser� rejeitada. Lida como pregui�osa, como porca, como algu�m que 'n�o se encaixa nos padr�es da empresa', ainda que ela esteja saud�vel.
Uma pessoa que passou por um relacionamento abusivo e n�o transava porque a outra pessoa era abusiva est� numa situa��o lament�vel. Eu realmente sinto muito. Mas muitas pessoas gordas sequer conseguem se relacionar, porque n�o s�o lidas como pessoas. S�o lidas como aberra��es.
"Ah, mas pessoas que sofrem com dist�rbio de imagem ou alimentar n�o conseguem se ver bem".
Acredito. Mas refor�ar isso � transformar esse lugar que precisa de tratamento especializado em gordofobia � muito confort�vel.
Quando uma pessoa magra, que desfruta de todos os privil�gios sociais que a magreza oferece - ainda que sofra com problemas de sa�de f�sica e mental - se diz gorda, ela reivindica para si uma opress�o que n�o sofre. E, ao reivindicar isso, ela recebe para si toda empatia, amor e cuidado.
Est� errado? N�o! Mas ela s� recebe isso porque � magra. Ela s� desfruta de todos os privil�gios porque � magra, n�o porque tem algum problema de sa�de. E � isso que eu espero, de cora��o, que voc�s entendam.
N�o estou negando os problemas de ningu�m. Mas quando eles est�o no corpo magro, essa pessoa, que tem o corpo mais aceit�vel e amado do mundo, recebe um 'consolo' por ser quem se �. V�o dizer que ela � maravilhosa, que ela n�o precisa ficar triste, que ela 'n�o � gorda n�o, � maravilhosa'. E, enquanto essa cena acontece, corpos como o meu v�o ser escorra�ados em pra�a p�blica por apenas existirem.
E a pervers�o � justamente essa. O deslocamento de uma causa para a outra, a fim de invalidar a gordofobia como uma opress�o de fato e transform�-la numa quest�o de gente magra.
E n�o, n�o � uma hierarquia de opress�es. � um jeito de dizer que a gordofobia � uma quest�o estrutural e que, todo restante, n�o est� vis�vel como um corpo gordo.
Se sentir mal com o pr�prio corpo n�o te faz ser uma pessoa gorda e n�o te faz sofrer gordofobia. Assim como se amar, se sentir maravilhosa e empoderada n�o te blinda das agress�es di�rias contra a gordofobia.
As pessoas apanham na rua por serem gordas. Eu j� fui agredida por estar, existindo, sendo gorda. J� tive o muro da minha casa pichado numa tentativa de me agredir, por ser gorda. J� fui recusada em v�rias vagas de trabalho, por ser gorda. Sinto uma solid�o afetiva absurda, por ser gorda. N�o raro, recebo indica��es de cirurgias bari�tricas quando vou ao m�dico com fur�nculo nas costas.
Ent�o, eu tenho empatia pela sua luta feminista. Mas, pessoas iguais a mim est�o morrendo, enquanto pessoas magras, brancas e privilegiadas s�o celebradas o tempo todo no mundo. A gente n�o fala e n�o vive no mesmo lugar. E voc� n�o tem culpa de ser uma pessoa privilegiada, mas que tal, s� por algum momento, se perguntar: e se eu abrir m�o, nem que seja um pouco, de tanto privil�gio e acolher quem sofre opress�o?
Porque o setembro amarelo rola todos os anos, mas a empatia mesmo s� � cobrada se os corpos forem magros. A� aparece da cartola dist�rbios alimentares, relacionamentos abusivos, press�o est�tica, etc. E eu devo ser emp�tica pra caramba com isso. Mas, o que eu sofro, sendo esfolada viva todos os dias do ano n�o valem. Nem em abril. Nem em setembro. N�o tem m�s pra pessoa gorda. Nem espa�o no mundo.
Para voc�s, s� est� bom se o corpo gordo estiver sendo achacado. E se pessoas magras estiverem se dizendo gordas e recebendo toda empatia do mundo por isso - o que s� ocorre, claro, porque elas s�o magras. Se fossem gordas, de fato, estariam sendo cobradas do por qu� n�o emagrecem, afinal, � t�o f�cil, � s� fazer uma bari�trica, tirar a bunda do sof�, trancar a boca, se amar mais, cuidar da pr�pria sa�de,
Fato � que voc�s est�o pouco se fodendo para a sa�de das pessoas gordas Voc�s querem mais � ver gente gorda morrendo - de prefer�ncia, sem atendimento - para que toda narrativa caia na conta da press�o est�tica: ai, mas fulana se via feia. Cad� sua empatia?
E eu te pergunto: cad� a sua empatia quando o jovem Vitor morria sem atendimento depois de uma via sacra pelos hospitais p�blicos de S�o Paulo? Cad� sua empatia quando pessoas gordas est�o s� existindo, e voc� vem, armado at� os dentes, dizer: que romantiza��o da obesidade!
Cad� sua empatia quando a garota gorda diz que nunca foi beijada e nem desejada e voc� berra: emagrece que passa?! Cad� sua empatia quando as pessoas gordas s�o levadas, feito bichos, para hospitais veterin�rios, para passarem por exames?
Ai, mas voc� n�o tem empatia?
� o que eu ou�o quando digo que press�o est�tica, body positive e dist�rbio alimentar s�o pautas que ramificam da gordofobia, mas que n�o refletem a totalidade, porque sofr�-las - e sim, eu tenho muita empatia - coloca as pessoas em pedestais e desbanca sofrimentos gordos
Ai, mas eu n�o tenho direito de me sentir mal? De ter distor��o de imagem? Dist�rbio alimentar? Teeeeem, meu anjo. Voc� tem direito a tudo.
S� n�o tem direito de surfar numa pauta ou opress�o que n�o s�o suas. Tem, n�o s� direito, mas dever de entender que distor��o de imagem n�o � gordofobia. Que n�o se ver com o corpo que gostaria n�o te faz uma pessoa gorda, tampouco te faz sofrer o que uma pessoa gorda sofre. E sim, � preciso ter empatia com pessoas gordas e n�o pensar: emagrece que resolve.
Sabe porque: n�o resolve!
Quer voc�s queiram ou n�o, as pessoas gordas v�o seguir existindo. E ser violento com elas s� vai aumentar e amplificar a viol�ncia, mas n�o vai coibir a exist�ncia. V�o existir na viol�ncia, no auto isolamento, na falta de amor e acessos, mas v�o existir.
Ent�o, n�o adianta mandar gente gorda emagrecer. E nem tratar de forma violenta. Nem com pervers�o. Elas v�o continuar existindo. Achacar ou n�o, n�o vai te livrar do medo que voc� tem de engordar, exposto, ali, na sua cara.
E, ouso te dizer que, mesmo com toda viol�ncia, eu t� aqui. Em p�, firme, sendo absurdamente did�tica - mesmo que voc�s n�o mere�am isso - e existindo. Mesmo diante de todas as agress�es. Mesmo diante de todas as tentativas de cooptar a pauta. Mesmo diante de todo contorcionismo ret�rico que voc�s fazem para invalidar nossas viv�ncias.
Sabe quando eu vou ter empatia com gente magra, branca, padr�o e biscoiteira? No dia que n�o existir mais gordofobia e corpos como o meu n�o morrerem mais por falta de acesso ou afeto. At� l�, n�o contem comigo para essa palha�ada. Eu n�o sou violenta. Violenta � a gordofobia. Eu e meus textos somos s� uma face de como lidar com ela. E seguir existindo. Existindo.