
No natal de 1914, durante a 1ª Guerra Mundial, na regi�o de Ypres, na B�lgica, houve uma tr�gua n�o-declarada de seis dias. Com trincheiras decoradas, soldados alem�es entoaram antigas cantigas e passaram a comemorar o nascimento de Jesus Cristo. Soldados ingleses e franceses jogaram uma partida de futebol na “terra de ningu�m”, sem que os alem�es nada fizessem, al�m de assistir ao jogo.
Do ponto de vista dos generais, a coopera��o m�tua era indesej�vel porque n�o ajudava a ganhar a guerra. Mas era altamente desej�vel do ponto de vista individual para os soldados de ambos os lados. Por patriotismo, at� queriam ganhar a guerra, mas individualmente preferiram voltar � vida normal. Um coronel brit�nico, ao visitar as trincheiras, ficou estupefato ao ver soldados alem�es caminhando ao alcance das armas inglesas.
"Nossos homens pareciam n�o ter notado isso. Tomei a decis�o de acabar pessoalmente com esse tipo de coisa t�o logo assumisse o comando; coisas como essas n�o poderiam ser permitidas. Evidentemente aquelas pessoas n�o sabiam o que era uma guerra. Ao que tudo indicava, os dois lados acreditavam na pol�tica viva e deixe viver."
Atiradores de ambos os lados exibiam seu virtuosismo mortal ao disparar contra alvos inanimados, pr�ximos aos soldados, como cantis e panelas. “� noite, sa�amos e nos posicion�vamos diante das trincheiras. Os soldados alem�es tamb�m est�o fora, de modo que atirar � algo contr�rio � etiqueta”.
Naquela guerra, soldados brit�nicos e alem�es ficaram muitos meses frente a frente entrincheirados, sem saber se seriam transferidos para outro front ou n�o. Sonhavam com o fim da guerra e a volta para casa. Era uma combina��o entre o desejo individual e o “altru�smo rec�proco”, que o natal sempre desperta. O sistema viva e deixe viver n�o foi obra de nenhum estrategista, era o mais natural no comportamento humano.
Quantos “memes” natalinos recebemos nos �ltimos dias? Falam de paz, amor, amizade, coopera��o, paz, bondade, caridade, ou seja, do altru�smo rec�proco dos seres humanos. O natal � um rito que consagra esses sentimentos. Os neodarwinistas, que estudam a origem e reprodu��o da esp�cie, classificaram como “meme”, que prov�m da palavra grega “mimeme”, a capacidade de o ser humano replicar e transmitir sua cultura.
Hoje, os “memes” de natal reproduzem o caldo de cultura da coopera��o humana. Nas disputas civis, como as que acabamos de ter nas elei��es, existe grande espa�o para a coopera��o. Aquilo que se parece como uma disputa de soma zero, com um pouco de boa vontade, pode ser transformado num jogo de soma n�o zero que beneficia ambos os lados.
Por exemplo, um bom casamento � um jogo de soma n�o zero, no qual os parceiros cooperam intensamente; por�m, quando isso deixa de ocorrer, os casais se separam. Mesmo quando h� o rompimento, existe uma ampla zona de coopera��o e a possibilidade de que n�o haja um jogo de soma zero. O bem estar dos filhos, por exemplo, � um bom motivo para isso.
O custo de uma disputa judicial, na qual cada um tenha que recorrer a um advogado diferente, tamb�m. S�o muitos os exemplos de coopera��o num ambiente de disputa e competi��o, como o da sociedade em que vivemos. Certos ritos consagrados, como o natal, servem para nos lembrar como isso � importante.
O recente processo eleitoral nos mostrou uma sociedade muito polarizada, tanto do ponto de vista ideol�gico quanto em rela��o aos interesses mais objetivos e imediatos. Entretanto, j� houve uma mudan�a de ambiente da �gua para o vinho – nada mais b�blico. As pessoas est�o mais alegres, mais esperan�osas, mais preocupadas com o outro.
O presidente Jair Bolsonaro continua inconformado com o resultado das urnas e n�o vai � posse do presidente eleito Luiz In�cio Lula da Silva, refugando o rito democr�tico de passagem da faixa presidencial. A elite do pa�s e a classe m�dia que o apoiaram, em sua maioria, por�m, reconhecem o resultado do pleito e n�o t�m interesse num pa�s conflagrado permanentemente, num jogo de soma zero, na base do “quanto pior, melhor", no qual todos perdem.
O Hanuk� � uma festividade judaica que celebra a vit�ria da luz sobre a escurid�o e a luta dos judeus contra os seus opressores, durante oito dias. O m�s de Kislev, no calend�rio judaico, corresponde a dezembro no calend�rio gregoriano.
Do ponto de vista filos�fico, celebrar o Hanuk� significa celebrar a vit�ria da luz sobre a escurid�o, a vit�ria da pureza sobre a degenera��o e da espiritualidade sobre o materialismo. As velas acesas no parapeito da janela fundam uma zona de passagem, entre o familiar e o fora, uma zona de troca entre o diferente e o privado.
A palavra i�diche Hanuk� nos remete a fundar, renovar, ensinar, reinventar o novo, apesar dos desejos de persistir no mesmo e no sempre.
Feliz Natal!