
No ringue eleitoral que est� sendo a batalha pela Casa Branca, Joe Biden vai ganhar por pontos a chance de olhar para a frente. Muitas li��es se apresentam ao observar a estrat�gia constru�da pelo Partido Democrata. Porque o problema de ganhar por pontos �, se comparada ao boxe, as pessoas acharem que devia ganhar quem demonstrasse mais combatividade. Contudo, como a elei��o n�o � uma luta de boxe, n�o h� d�vida de que Biden venceu, mas Trump quase n�o perdeu.
Para muitos burocratas de seu partido, Biden ganhou bem: por ter tido o sangue-frio de n�o confrontar Trump nas �reas mais sens�veis, n�o oferecer nenhuma agenda inovadora, n�o ter nenhum arroubo populista, n�o formular nenhuma vis�o bem-acabada sobre que papel o povo ter� no seu governo. Ganhou porque formou uma gigantesca coaliz�o e minimizou ao m�ximo a tomada de riscos. A ess�ncia de Biden � o retorno ao mundo pr�-Trump. Voltar ao Acordo de Paris, voltar a respeitar a OMC, voltar a contribuir com a ONU, voltar a ser uma superpot�ncia respons�vel e que se esfor�a para ser decente e bem-intencionada. Tudo parece muito louv�vel.
Todavia h� tamb�m a vis�o de que Biden ganhou mal: porque n�o fosse o coronav�rus e a bem-sucedida e justificada amplia��o da vota��o por correio, a chapa democrata n�o geraria o entusiasmo necess�rio para obter uma mudan�a de rota. O resumo da �pera � que se a chapa de Biden � a que recebeu mais votos na hist�ria das elei��es americanas, a chapa de Trump terminar� como a segunda que mais votos recebeu. � frente, assim, do que Obama recebeu na elei��o de 2008 e estabeleceu o recorde at� aqui.
Ou seja, Trump demonstrou que sua cartilha populista de direita espetaculosa n�o apenas colocou uma parte dos ricos no bolso, mas tamb�m conseguiu mobilizar as classes m�dias e populares, dando-lhes uma identidade para a qual a direita moderada, o centro e a esquerda n�o est�o conseguindo articular muito bem uma alternativa. Como Biden n�o formulou uma vis�o bem-acabada da plataforma que prop�e e a defendeu, foi Trump quem colocou palavras em sua boca.
Biden tem uma hist�ria de vida humanamente bonita e � uma pessoa decente, tem a chance de exercer um mandato em que a dec�ncia n�o signifique apenas a “indec�ncia que conspira em sil�ncio,” como falava Bernard Shaw. Afinal, essa foi uma das marcas dos anos pr�-Trump e que levaram aos trumpismos. Ao inv�s de olhar para tr�s Biden, precisa olhar pra frente e propor uma nova era.
A alternativa n�o pode ser apenas a nega��o est�tica e �tica do populismo midi�tico de direita. Tem que nascer uma proposta que melhore de fato a qualidade de vida das pessoas desesperan�adas. Para que o novo governo n�o fique preso � conversa il�gica de quem promete parar a melhoria de vida do outro para melhorar a do cr�dulo eleitor.
Sem a proposi��o de uma nova �tica p�blica que fundamente as rela��es sociais para o s�culo 21, as variantes do trumpismo seguir�o fortes como alternativa para quem sente e sofre com as complica��es do mundo atual e ingenuamente pensa que ningu�m est� lucrando com a confus�o.
Grande parte do erro que os analistas americanos cometem ao tentar entender o que passa nas elei��es vem da utiliza��o de uma �tica de cor de pele – que gostam de chamar de ra�a – para determinar as instabilidades eleitorais. Quem v� o mundo desse jeito acaba fazendo com que o mundo funcione um tanto quanto desse jeito. O ser humano � antes de tudo uma pessoa �nica. Se fossem usadas as lentes de emprego e renda, classe, mobilidade social e regi�o geogr�fica, os comentaristas pol�ticos errariam menos.
N�o que o racismo n�o exista e que certas pessoas n�o se animem a votar por instiga��es racistas – afinal, a segrega��o saiu da lei, mas n�o da cabe�a de muitos. Contudo, h� outras clivagens bem mais importantes para a maioria das pessoas, que as une e as separa de m�ltiplas maneiras. E � bom que seja assim, j� que n�o � desej�vel aos EUA deixarem de ser democr�ticos.
A coluna “O contrassenso de Trump”, de 16 de agosto, j� previa que as pesquisas de inten��o de votos estavam calibradas de forma errada, sem perceber que a inten��o de votar em Trump estava aqu�m dos votos que acabaria recebendo nas elei��es. N�o � que as pesquisas eram mal-intencionadas. A forma de entender a realidade � que � um pouco tosca. E essa forma est� gravada no modo como a escolha da amostragem � fundamentada para as pesquisas.
De toda forma, uma grande conflu�ncia de imponder�veis fez com que em 2020 uma maior parte dos eleitores decidisse testar algo diferente do estilo e da agenda Trump. Bem ou mal, Biden ganhou. Tem agora quatro anos para ajudar o mundo, antes que a coisa piore.
Com Henrique Delgado