
Um cinquent�o erudito e magro como seu cavalo, acompanhado de um campon�s simples e gordo, em cima de um burro, vestido com uma roupa esquisita, segura uma lan�a e sai pelo pa�s em busca de um des�gnio incompreens�vel de reparar a injusti�a e desfazer agravos, proteger os fracos, respeitar as mulheres, oferecer um horizonte �s crian�as. 418 anos depois de publicado, o mais espetacular livro j� escrito em l�ngua espanhola, enlouquecido sonho de seu criador Miguel de Cervantes, continua necess�rio entender a hist�ria de Dom Quixote de La Mancha.
O mundo hist�rico em que viveram, o autor e o personagem, pode at� ter desaparecido em parte, mas o esp�rito de humanidade mais elevada que relata, pode bem ainda ajudar a melhorar as pessoas a enfrentarem a m� espiritualidade em que vivem as na��es.
A baixa qualidade das experi�ncias nacionais nos quatro continentes n�o � motivo de orgulho para os Estados, nem para seus governos, diante da maneira como enfrentam as dificuldades econ�micas, a defesa dos valores humanos e democr�ticos. Os pa�ses n�o observam as mesmas regras e normas de conduta, abra�am sistemas econ�micos ego�stas e excludentes, ambi��es territoriais de l�deres arcaicos e permanecem em seu interior a veemente luta interna pelo poder. Sem voca��o para a eternidade, perdidos no tempo e no espa�o, n�o conseguem abra�ar as causas de preserva��o da natureza e de eleva��o do respeito aos direitos humanos.
Falta clarivid�ncia e instrumentos capazes de fazer mudan�a que sejam capazes de combater a opress�o da necessidade e coibir a viol�ncia e o desamparo. A espetacular aus�ncia das autoridades e das institui��es nos bairros pobres e desassistidos s� � agravada quando aparecem, e ao inv�s de resolver, pioram as coisas pelo desaforo com que podem e costumam cometer arbitrariedades. Moscou, Paris, Istambul, Bras�lia, Beijing, Washington, Nova Delhi ou Cartum, n�o h� capital de pa�s onde a barbaridade vil n�o esteja presente vizinha dos pal�cios de governo.
Nenhum governo conseguir� perceber o que realmente importa, nem entender� as circunst�ncias humildes, inocentes, sem �nfase, em que vivem a maioria das pessoas. N�o h� dentro das na��es um entendimento sobre o que seria e como seria alcan�ada a justi�a para todos. Os sonhos e os ideais declinam consumidos por si mesmos diante de uma realidade que n�o alcan�ou o m�ximo das suas possibilidades virtuosas e n�o consegue mais sustentar o otimismo frente ao poder que regula a vida em todos os lugares.
A liberdade, ensina o Quixote, � individual e necessita de um m�nimo de prosperidade para ser verdadeira. Liberdade � felicidade. A liberdade, continua, � um dos mais preciosos dons que os c�us deram aos homens. Sem desfrutar de liberdade qualquer obriga��o, benef�cio ou favor recebidos s�o ataduras que n�o deixam o �nimo campear livre. Venturoso � aquele a quem o c�u deu um peda�o de p�o sem que lhe fique obriga��o de o agradecer a outro que o pr�prio c�u!
Os eventos que tocam o mundo atual continuam configurando a mesma estrat�gia pol�tica de sempre. O pa�s que n�o assume uma atitude amistosa com o outro, qualquer que seja a influ�ncia moral de sua pol�tica, for�a o outro a procurar aliados em outra parte. A balan�a do poder das na��es nunca admitiu que argumentos fundados em princ�pios �ticos sirvam para ampliar a liberdade de manobra e atrapalhem os interesses dos governantes.
A viol�ncia estatal em guerras visando a mera acumula��o de poder interno e a n�o estatal dentro da sociedade abandonada aumenta a cada dia. A ambival�ncia de falar em compromisso com a liberdade buscando dom�nio sobre o outro sustenta discursos pol�ticos que separam poder e princ�pios. Boa vontade e barganha � ilus�o de que fazer as coisas pela metade � o mesmo que fazer o necess�rio. Sem falar do dom�nio digital que assume cada vez mais o lugar do dom�nio humano.
Tocar a vida, roer o osso, ser impertinente. Quando os que tiram proveito da injusti�a se destacam, ao contr�rio dos que nada ganham sendo justos, � prefer�vel o del�rio dos lun�ticos do que confiar na exist�ncia de alguma ordem mundial. N�o se trata de reatualizar o passado, nem de desrealizar a realidade. � preciso sonhar com a harmonia internacional para espantar o pesadelo da desordem global.
NOT�VEL FIGURA HUMANA: Morreu, no Rio de Janeiro, o m�dico e sanitarista Domingos S�vio do Nascimento Alves. Coordenador de Sa�de Mental do Minist�rio da Sa�de de 1991 a 1996, foi um pioneiro e Quixote da luta pelos direitos e a prote��o aos doentes mentais brasileiros. Mineiro de Piedade do Rio Grande entendia o que era, verdadeiramente, uma ordem mundial.