(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas RAMIRO BATISTA

O que absorvente gratuito tem a ver com Round 6 e nosso sub capitalismo

Como a s�rie violenta que fabula a competi��o capitalista, a decis�o de Bolsonaro p�e em discuss�o o papel do Estado e se � poss�vel liberalismo nesses tr�picos


12/10/2021 10:26 - atualizado 12/10/2021 18:22

cena do seriado Round 6
Round 6 � a nossa sensa��o de Netflix (foto: Divulga��o)
Quando  La Casa de Papel provocou como��o mundial , escrevi em algum lugar que o mundo era socialista, todos �ramos socialistas.

A s�rie catalisou afinidades profundas no desejo reprimido de tirar dos ricos para dar aos pobres, no grupo de jovens Robin Hoods modernos que tomava a Casa da Moeda espanhola para imprimir o dinheiro necess�rio �s suas utopias.

Coincidiu que Jair Bolsonaro tenha decidido vetar a distribui��o gratuita de absorventes higi�nicos para miser�veis na semana de estreia de outra como��o mundial que sacode os sof�s,  Round 6, tamb�m na Netflix .

E me ponho a pensar de novo no poder de f�bulas simplistas como essa para apertar os bot�es mais profundos do �dio visceral ao capitalismo. Na mesma propor��o que teve a do presidente para despertar os instintos mais b�sicos nacionais contra o liberalismo.

A s�rie sul coreana isola 456 endividados sem sa�da e amea�ados de morte por seus agiotas numa gincana mortal de disputas em brincadeiras infantis ao modo Jogos Vorazes , ao pre�o de ficarem milion�rios ou serem fuzilados. 

A viol�ncia brutal, numa sangueira de Tarantino sem o deboche, � proposital para fazer a apologia de que a sobreviv�ncia l� fora, no cotidiano de competi��o e trai��es do capitalismo, n�o � diferente. 

A certa altura, os miser�veis preferem voltar � arena, para o risco de morte, a viverem o tormento de suas rotinas de press�o e desigualdades, numa Coreia do Sul em crise, apesar de ter se transformado numa pot�ncia mundial em poucas d�cadas.

— Aqui pelo menos tenho uma chance. Mas e l� fora? N�o tenho nada. Prefiro ficar e morrer tentando a morrer l� fora como um cachorro.

A ideia de catarse orgasm�tica contra a mix�rdia do capitalismo opressor est� na base do discurso quase un�nime contra a ideia aparentemente �bvia de se  negar absorventes para meninas de fam�lias pobres  que perdem aula por menstrua��o ou se protegem com chuma�os de jornal ou miolos de p�o.

Num contexto desse, de tal como��o intelectual quanto uma estreia retumbante na Netflix, � quase risco de morte especular se isso � fun��o de Estado na gincana terr�vel das redes sociais.

Reinaldo Azevedo, uma de minhas b�ssolas de racioc�nio l�gico, coloriu com sua sofistica��o intelectual intimidante a pros�dia mais comum da insensibilidade governamental misturada � hipocrisia num governo que teria dinheiro de sobra para outras bobagens, como motociatas, cart�o corporativo ou fundo eleitoral.

— Eles n�o se importam — filosofou ao se referir a um tipo de elite que s� v� os pr�prios bot�es e a uma vis�o antiquada de liberalismo, que perdeu seu sentido j� no s�culo passado.

Nas an�lises mais generosas e menos filos�ficas de comentaristas respeitados, foi um caso apenas de estupidez pol�tica.

Tendo � filosofia, gosto da an�lise consequencialista da pol�tica, ando sem medo da morte nas redes sociais, n�o sou maluco de defender a estupidez de negar absorvente para meninas pobres num pa�s de desigualdades medievais e acho que o capitalismo � mesmo uma vida porca.

Mas n�o resisto ao risco de ser fuzilado ao especular se � o caso de o Estado dar tudo mesmo e se � poss�vel ainda discutir ideias no pa�s do bolsa fam�lia. Entre as quais, a que o brilhantismo de Reinaldo evitou: � poss�vel considerar pelo menos a ilus�o de chegarmos algum dia a um capitalismo de mercado no Brasil? 

Que chances tem, na terra eterna do jeca tatu, o liberalismo da livre iniciativa, da liberdade de competi��o e do Estado m�nimo sem Bras�lia, que Bolsonaro p�e em discuss�o, por c�lculo ou estupidez, ao defender decis�es heterodoxas como uso de armas e fim da multa por transporte de crian�a sem cadeirinha?

Se � preciso dar tudo mesmo, de feij�o a absorventes, de arroz a anticoncepcionais, de �leo a diazepan, de sab�o a absorventes e desodorantes, a que que ponto suportamos?

Outra quest�o que me parece estimulante, a partir do que me sugeriu a decis�o de Bolsonaro, o cinema coreano e o artigo de Reinaldo, � se � poss�vel construir um pa�s liberal e capitalista nesses tr�picos, onde as novidades intelectuais do mundo chegam com 30 anos de atraso e queremos acabar com o capitalismo antes de t�-lo.

Verdade que, como ele comenta, o liberalismo esteja ultrapassado e tenha ca�do de moda aqui, como quase tudo. Antes de sequer termos sabido do que se tratava o tal Consenso de Washington, do estado m�nimo. Que morreu por aqui no final dos 90 antes de tomarmos conhecimento de sua exist�ncia e de rir ao ouvir o PT chamar Fernando Henrique Cardoso de neoliberal.  

Muito antes da pandemia do coronav�rus, que exacerbou a interfer�ncia do Estado em tudo, da comida e os rem�dios ao direito de ir e vir, somos uma sociedade cartorial, monopolizada, de economia fascista, aquela que n�o anda sem governo, dependente de seus insumos, seus projetos, seu dinheiro via BNDES, subs�dios e desonera��es. 

Quem n�o depende do poder p�blico est� dentro dele, gozando de seus bons sal�rios e sua estabilidade, ou tentando entrar nele. Ou tomar dinheiro dele para seus neg�cios, como os pol�ticos e os empres�rios. 

Nossos jovens querem mais um concurso p�blico a encarar patr�o insens�vel, de resto brucutu mesmo, ou a produzir qualquer coisa. Se alguma competi��o h�, s�ria, � dentro das organiza��es p�blicas para galgar cargos, numa disputa quase a Round 6.

O sistema darwinista de competi��o que deu aos EUA o dom�nio b�lico, financeiro e tecnol�gico do mundo — com suas plataformas estupendas do tipo Google, Facebook, Apple, Amazon, Disney e tantos etceteras — s� existe dentro dos monop�lios privados ou na arena sem risco do servi�o p�blico, em que se briga e se trai por aumentos e cargos.

At� porque conhe�o bem o servi�o p�blico e seu grau de cumplicidade com o poder pol�tico no Executivo e no Judici�rio —  corporativistas, perdul�rios, ineficientes e avessos ao m�rito — desde sempre alimentei ilus�es de uma sa�da pelo liberalismo, base do empuxo de todos os pa�ses que dominaram outros em dire��o a suas potencialidades. 

A partir de um dos meus livros de cabeceira por um bom tempo,  A Pobreza e a Riqueza das Na��es , do professor de Harvard David Landes, sobre por que alguns pa�ses s�o ricos e outros t�o pobres. Elabora como que a cultura e o empreendimento individual em sociedades de liberdade para competir produziu milagres econ�micos desde o mundo �rabe at� o fen�meno dos pa�ses asi�ticos como a Coreia do Sul.

Outra refer�ncia foi Os Magnatas, hist�ria de quatro baluartes do petr�leo, da minera��o, dos transportes e das finan�as (Andrew Carnegie, John Rockefeller, Jay Goudl e J.P.Morgan) que mudaram o rosto dos EUA no final do s�culo XIX, quando constru�ram mais ferrovias do que necess�rio para escoar seus produtos e se financiaram sem pedir um centavo ao governo. ( Saiba mais sobre os dois livros aqui .)

No Brasil, depois de dois �nicos e malucos presidentes de direita real, J�nio Quadros e Fernando Collor de Mello, Jair Bolsonaro foi a mais consistente das ilus�es de que se poderia caminhar para um pa�s de livrre iniciativa, liberdade individual para empreender e m�nima presen�a do Estado.

— Vamos fazer a nossa revolu��o liberal,depois de 30 anos de governos social-democratas que afundaram o pa�s — dissera Paulo Guedes ao arrebanhar luminares do liberalismo para sua cruzada brancale�nica que foi fazendo fuzilados pelo caminho, como em Round 6.


Havia ideia, candidato, um projeto consequente e, pela primeria vez, uma milit�ncia de direita, no caldo das revolu��es de Facebook pelo mundo, os protestos do Passe Livre em 2013 — quando se tomou do PT o monop�lio das ruas  — e os cursos e prega��es de Olavo de Carvalho.

S� que, como se provou, era tudo engodo ou invi�vel. N�o s� pelo absoluto despreparo do candidato vitorioso para tocar uma empreitada desse tamanho, mas pela inviabilidade mesmo de um pa�s de voca��o africana e paternalista, que tudo espera de um governo paiz�o.

Que lhe d� de feij�o a aborventes, enquanto n�o espera o pr�ximo concurso p�blico, a pr�xima licita��o ou a pr�xima conversa com um pol�tico para enfiar jabutis em projetos e decretos. Que em geral pioram a maioria das reformas que entram no Congresso, no esp�rito desde a Constitui��o de 1988 de que legislar � criar benef�cios. 

De forma que esse sub capitalismo de fancaria n�o foi destino e nem tem perspectiva. E saibam os preocupados com a desigualdade, que nosso excesso de Estado mais alarga o fosso entre pobres e os que mamam no poder. S� fortalece a turma do topo da pir�mide enquanto se distribui absorventes, anticoncepcionais e diazepan para a base.

Claro que nossa mix�rdia como humanidade vai al�m do capitalismo de empresas. Tem a ver, entre outras coisas, com o consumismo desenfreado que � sua forma de alimenta��o e raz�o de ser. Mud�-lo requer mudan�a radical que n�o est� apenas na al�ada dos pol�ticos.

Tem a ver com uma revolu��o moral, �tica e de costumes, que restabelecesse o poder aglutinador, moralizador e destru�do da fam�lia, da religi�o e da alta cultura, sem perspectiva nas poucas pr�ximas d�cadas que me restam sobre a terra. Ou enquanto n�o se descobrir outra forma de alimentar uma popula��o que n�o cabe no espa�o f�sico que lhe foi destinado.

At� l�, num contexto desses, n�o d� para negar absorventes, falar em capitalismo ou liberalismo e pouca diferen�a faz a elei��o de qualquer dos candidatos a presidente dispon�veis no balc�o da campanha eleitoral.

Qualquer deles vai ter que se dobrar � sina com que Paulo Guedes e outros lun�ticos anteriores trombaram sem sucesso: distribuir dinheiro e benef�cios para as elites do empresariado, o estamento burocr�tico e os pol�ticos, em meio a algumas esmolas institucionais para a ind�stria cultural e os pobres.

Respeitarei quem defender esse modelo com bons argumentos, mas est� claro que n�o se sustenta, como n�o se sustentou. 

Lula, que o aprofundou com enorme compet�ncia para distribuir dinheiro p�blico a todos os n�veis da pir�mide, sem se preocupar com a receita, jogou uma bomba rel�gio no colo de sua sucessora Dilma Rousseff, que deu no que deu. Como qualquer um que for eleito jogar� no colo de quem lhe suceder, se insistir nele.

E vamos continuar distribuindo, de feij�o a absorventes, sabonetes e desodorantes, pelo resto da vida.

> Mais textos meus  no Facebook

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)