
A democracia americana, hoje em reconhecida crise, testemunhou duas situa��es exemplares. Nas elei��es americanas de 2000, ao final da apura��o o resultado de um pleito em que votaram 101 milh�es de eleitores ficou pendente dos resultados da Fl�rida, onde Bush teria vencido por 527 votos, mas onde Gore alegou que milhares de votos deixaram de ser contados. Iniciada a recontagem, a Suprema Corte, de maioria Republicana, interrompeu o processo e declarou Bush vitorioso.
Imediatamente Gore se manifestou dizendo que discordava da decis�o, mas aceitava o resultado. Com este gesto a democracia americana viveu mais 20 anos de paz.
Vinte anos depois, numa situa��o muito menos controversa, o candidato derrotado no voto popular e no col�gio eleitoral contestou o resultado e incentivou o ataque ao pr�dio do Congresso no momento da homologa��o do resultado. As feridas abertas pelo comportamento de Trump e seus seguidores mais fan�ticos abriram feridas no sistema pol�tico americano que permanecem abertas ainda hoje.
Os resultados das elei��es brasileiras s�o incontest�veis porque nosso sistema eleitoral � talvez o mais moderno e impessoal do mundo e porque, posto sob suspeita, o processo foi um dos mais monitorados e fiscalizados de nossa hist�ria. Para quem acha que a democracia � um valor supremo e o �nico sistema de governo que respeita a dignidade humana, recusar a legitimidade dos eleitos � claramente apostar contra a democracia e a favor da ditadura. N�o h� outra palavra para definir este comportamento, seja ele violento ou pac�fico.
Dito isto, vem a segunda parte da hist�ria. Ningu�m governa de fato uma sociedade com apenas metade mais um dos seus membros. Governos nas sociedades democr�ticas da era da informa��o precisam de um amplo consentimento social para realizarem as tarefas que se esperam deles. N�o dispondo deste consentimento passam seus mandatos se defendendo e tocando as rotinas apenas para permanecerem no poder.
O Brasil � uma sociedade em crise profunda, pol�tica, econ�mica, social e mesmo civilizacional. Nosso desafio urgente � realizar grandes transforma��es em v�rias esferas da vida do pa�s e isto requer a lideran�a de um governo capaz de compreender a natureza dos problemas e de inspirar a maioria dos cidad�os. Apesar da necessidade que temos hoje de nos unirmos em torno do governo para afastar as amea�as que nos tem rondado ultimamente, o governo Lula ter� que fazer mais do que tem feito at� agora se quiser o apoio das grandes maiorias.
Parece dispens�vel dizer isto a um homem com a experi�ncia do Lula, mas a sabedoria nos diz que h� grande diferen�a entre vencer elei��es e governar. Os verdadeiros l�deres sabem que se ganham elei��es com os seus, mas que s� se governa com os seus mais os outros. Governar para a maioria significa em parte ser fiel � sua hist�ria pessoal, porque isto � uma prova de car�ter, mas tamb�m abrir-se para o outro lado simultaneamente com palavras, gestos, fatos e atitudes. A pol�tica n�o pode ser um jogo de soma zero, em que uns ganham e os outros perdem. Isto � elei��o, n�o � governo.
At� agora o governo Lula � uma alian�a restrita entre o PT e seus sat�lites com o chamado Centr�o para aprovar os atos do governo no Congresso. No entanto, o Congresso e a sociedade n�o s�o a mesma coisa. O que basta para o apoio e a ades�o parlamentar n�o basta para conquistar o consentimento das maiorias na sociedade.
A barb�rie de 8 de janeiro reabre ao governo uma janela de compreens�o e de consentimento. Se o governo, no entanto, usar esta pausa apenas para voltar a afirmar a hegemonia dos seus e n�o para abrir-se para todos os brasis que existem, certamente vai fracassar e adiar mais uma vez nossa viagem para um outro futuro.