No texto da semana passada, convidei uma amiga muito querida para trazer um relato sobre maternidade e afetos na inf�ncia. Eu n�o sou m�e. E ainda que eu tenha a vontade de ser, o que conhe�o desse lugar � a observa��o do maternar de mulheres pr�ximas, al�m de algumas leituras tem�ticas e situa��es que se imp�em no dia a dia.
'As m�es s�o um grupo negligenciado nas pautas feministas. Em alguns segmentos, praticamente invisibilizado. Em outros, pouco compreendido, sufocado pelas urg�ncias de um tempo que n�o respeita as transforma��es do corpo, as ang�stias, as turbul�ncias emocionais, a descoberta de novos sentires e olhares.'
As m�es s�o um grupo negligenciado nas pautas feministas. Em alguns segmentos, praticamente invisibilizado. Em outros, pouco compreendido, sufocado pelas urg�ncias de um tempo que n�o respeita as transforma��es do corpo, as ang�stias, as turbul�ncias emocionais, a descoberta de novos sentires e olhares.
N�o � raro que ou�amos sobre a solid�o da mulher pu�rpera, que se v� diante de uma realidade transformada e n�o encontra acolhimento em nenhuma das bases com as quais ela acreditava poder contar. Muitas vezes h� um abandono muito real e imediato do parceiro ou parceira que n�o consegue, sabe ou quer lidar com um beb�, e todo o trabalho f�sico e emocional que essa nova exist�ncia representa.
Nas rela��es heteronormativas, os relatos s�o abundantes e muito violentos. Mulheres que s�o abandonadas pelos maridos imediatamente ap�s o parto, seja pela recusa destes em ocupar o lugar da paternagem ativa, seja pela repulsa que passam a ter pelos corpos de suas parceiras. Nossos corpos-recept�culos n�o servem mais quando n�o atendem ao ideal do objeto de desejo e prazer. E n�o servem mesmo quando atendem ao grande prop�sito social da procria��o.
'� muito comum em campanhas como as do ''Agosto Dourado'', que se coloque o ato de amamentar como o o�sis do amor, a confirma��o da boa m�e, o c�u estrelado do v�nculo maternal. Com isso, cria-se uma ideia �nica do que seja o processo de amamenta��o e reitera-se esse lugar cruel de um amor condicionado � perfeita execu��o dessa tarefa.'
Nesse m�s - o agosto dourado - tenho visto e acompanhado muitas postagens sobre amamenta��o nas redes sociais. S�o relatos m�ltiplos sobre esse processo t�o importante para m�es e crian�as. Mas uma postagem, em especial, me chamou a aten��o; a da Mari Rios, pediatra feminista que tem um perfil muito interessante no instagram (@umamaepediatra).
O texto iniciava assim, com letras em destaque: “Amamentar n�o � amor”. E na sequ�ncia, ela brincava com a nossa revers�o de expectativa: “t� passada?”. E provavelmente muita gente estava. Mas o texto que se seguia era, al�m de muito sens�vel, extremamente elucidador.
� muito comum em campanhas como as do “Agosto Dourado”, que se coloque o ato de amamentar como o o�sis do amor, a confirma��o da boa m�e, o c�u estrelado do v�nculo maternal. Com isso, cria-se uma ideia �nica do que seja o processo de amamenta��o e reitera-se esse lugar cruel de um amor condicionado � perfeita execu��o dessa tarefa.
Dentre tantas culpas que uma m�e parece estar destinada a carregar, n�o conseguir amamentar, ter pouco leite, sofrer dores intensas no ato, optar pelo uso de mamadeira e f�rmulas s�o algumas das mais constantes. Eu acompanhei amigas que passaram por dolorosas experi�ncias de amamenta��o e amam profundamente suas crian�as; ofereceram a elas o melhor que puderam, se preocuparam, insistiram, tentaram, decidiram. Mas n�o sem sofrimento, n�o sem julgamentos, n�o sem (mais uma) dor. Amamentar carece, tantas vezes, de boa informa��o e ter acesso a ela ainda � um privil�gio grande.
Nossos corpos tornam-se t�o p�blicos em momentos t�o �ntimos e particulares, mas s�o ostensivamente repudiados quando usam desse mesmo espa�o coletivo para existirem. N�o precisamos ir longe para relembrar os casos de mulheres sendo impedidas de amamentar em locais p�blicos como shoppings ou menos longe ainda, com o alarde em torno da imagem dos mamilos jorrando leite no bel�ssimo cartaz do novo filme do Almod�var.
A imagem foi republicada em v�rios perfis, sempre com o alerta de que poderia ser derrubada pela rede a qualquer hora. E de fato foi. O artista respons�vel pela arte do cartaz, Javier Ja�n, j� previu a possibilidade de censura quando colocou a imagem no ar.
Depois do grande burburinho, a rede social de retratou e restaurou as publica��es com o cartaz, com a justificativa de que, apesar de haver uma pol�tica contra nudez, existem algumas exce��es quando o contexto � claramente art�stico. Obviamente vale dizer que essas pol�ticas t�o rigorosamente cumpridas s� se aplicam a mamilos femininos, n�o havendo nenhum tipo de inc�modo p�blico e social diante das imagens de mamilos masculinos.
A fot�grafa Ana Harff (@anaharff) tem um projeto lindo de retratos de corpos nus e diversos, e numa das pe�as intitulada “Autorretrato 2020” ela exibe seu par de seios desnudos, reais, grandes, marcados por estrias num super close que ocupa a tela; mas no lugar dos seus mamilos ela insere um recorte dos mamilos peludos de um homem. Uma maneira de driblar o algoritmo (que � feito � imagem e semelhan�a da sociedade na qual existe, machista e patriarcal) e de mostrar o qu�o absurda � a censura automaticamente imposta ao corpo da mulher.
Mamilos femininos s�o sempre tratados como essa amea�a perturbadora. Removidos de cada postagem quando suas pontas n�o aparecem recobertas por uma tarja preta, um simp�tico x, uma dupla de m�os. Ou mesmo assim. Quando recobertos pela boca de um beb�, se tornam mais ofensivos ainda. Haja esfor�o l�gico para compreender uma sociedade que destina mulheres � maternidade, mas n�o as suporta quando se tornam m�es.
Nossa nudez s� interessa quando nos desumaniza. E n�o tem nada mais humano do que uma m�e.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)