
Pensando no escrever nesse texto, lembrei de como eu achava fascinante a Carrie Bradshaw escrever uma coluna no jornal, em Sex and the city. A personagem de Sarah Jessica Parker durante muito tempo alimentou muitos dos meus ideais de mulher jovem: o desejo de escrever como uma ocupa��o profissional; as roupas incr�veis; a rotina sexual e a exposi��o aberta dos desejos. Tudo ali parecia um jeito muito festivo de existir e, principalmente, muito livre. E talvez eu tenha que admitir mais do que gostaria, que essa ideia de liberdade me acompanhou durante muito tempo.
Uma liberdade puramente individual, incorporada a todos os padr�es que permitem o tr�nsito socialmente confort�vel: o bom emprego, o bom corpo, o apartamento dos sonhos, viagens de f�rias, caf�s no meio da tarde, muitas roupas pouco acess�veis. O grande marcador desse conceito de ‘ser uma mulher livre’ era o sexo. Elas sempre estavam �s voltas com muitos parceiros, numa rotina sexual, digamos, empoderada - para usarmos uma palavra um pouco limitada, tanto quanto aquela nossa pretensa grande revolu��o.
'Uma liberdade puramente individual, incorporada a todos os padr�es que permitem o tr�nsito socialmente confort�vel: o bom emprego, o bom corpo, o apartamento dos sonhos, viagens de f�rias, caf�s no meio da tarde, muitas roupas pouco acess�veis. O grande marcador desse conceito de 'ser uma mulher livre' era o sexo. Elas sempre estavam �s voltas com muitos parceiros, numa rotina sexual, digamos, empoderada - para usarmos uma palavra um pouco limitada, tanto quanto aquela nossa pretensa grande revolu��o.'
Quando eu fazia meu mestrado, em meados de 2008, tive aula com uma professora maravilhosa (que veio a ser minha orientadora querida), dessas que tornam a aula um lugar de epifanias recorrentes. Suely, uma ador�vel senhora de mais de 70 anos � �poca, especialista em literatura inglesa e ch�s da tarde, falava efusivamente sobre Jane Austen e de quanto ela era bem mais revolucion�ria que todas as mo�as de Sex and the city juntas.
Ela lembrava de como a personagem Samantha, a mais livre sexualmente e menos conservadora nos costumes, foi conduzida para um lugar de adoecimento e reden��o, tendo que passar pela experi�ncia de um c�ncer para ver valor num relacionamento e numa vida mais tradicional. A gente se fascinava com os paralelos ali criados, e eu nunca me esqueci desse dia e do quanto essa fala iria reverberar nas outras tantas quest�es que cresceram em mim alguns anos depois.
Esse n�o � um texto para criticar a s�rie e nem falar o �bvio, de que ela sofreu muito a a��o do tempo. At� porque eu ainda acho um produto divertido de entretenimento. Na verdade, esse nem � um texto sobre a s�rie. Meu pre�mbulo gigante � para dizer sobre como nosso entendimento sobre liberdade mudou. A liberdade que usamos como base fundante do pensamento feminista, � dela que eu falo.
' Um dos principais foi a constata��o reiterada de como minha ideia de liberdade est� assentada no meu confort�vel lugar de mulher branca. E por mais que eu sustente um discurso que se pretende maior do que isso, usufruo em maior ou menor escala de todas as benesses que esse lugar me d�.'
E eu me vejo num grande impasse, hoje, ao escrever e pensar o feminismo. Os feminismos. N�o h� d�vida de que sou o que sou em raz�o de tudo que li e vivi a partir desse lugar de me reconhecer enquanto feminista. As pequenas desconstru��es di�rias; as leituras que movem todas as certezas de lugar; os encontros com outras tantas mulheres inquietantes e fundamentais; os desencontros e reencontros com o meu corpo e meus desejos; as reviravoltas em torno do que um dia chamei de liberdade.
Mas tem um lugar escorregadio, em que tenho tentado firmar o p� para enxergar a mim mesma e em como tornar as tantas teorias que devoro em pr�ticas poss�veis, reais e justas. Talvez o meu desconforto tenha se acentuado, ou finalmente tenha ganhado uma forma concreta, depois de ler “Um feminismo decolonial”, da Fran�oise Verg�s. Sobre esse livro ainda vou escrever em breve (ele vale uma coluna inteira), mas muitos foram os disparadores que me acertaram em cheio ali. Um dos principais foi a constata��o reiterada de como minha ideia de liberdade est� assentada no meu confort�vel lugar de mulher branca. E por mais que eu sustente um discurso que se pretende maior do que isso, usufruo em maior ou menor escala de todas as benesses que esse lugar me d�.
'Despida de um punhado de certezas, repenso, reflito, corrijo a rota na busca pelos caminhos por onde percorrer, sempre lembrando a mim mesma do que j� disse aqui num dos primeiros textos: ser feminista � lutar pela dissolu��o da estrutura capitalista, colonial e patriarcal que impede que todas as mulheres possam usufruir das conquistas que, individualmente, em algum momento possam ter nos libertado.'
Amadurecer querendo ser uma mulher sexualmente ativa e livre, dono do meu corpo e da minha independ�ncia, foi e � uma conquista relevante. Mas, n�o raro, ela veio acompanhada da sensa��o de miss�o cumprida. De um “chegamos l�”, esvaziado de reflex�o e de sensibilidade para ler o mundo em volta. Um “chegamos l�” recheado pela minha branquitude autossuficiente, arrogante e muito integrada �s estruturas de poder. Brindamos � liberdade sexual como um ponto de chegada, mas esquecemos a liberta��o do padr�o de corpo pelo caminho. Da liberta��o das m�es. Das mulheres racializadas.
A ang�stia est� em como mobilizar espa�os de transforma��o real e imediata, sem me deixar anestesiar pela obviedade da minha limita��o de a��o, sempre amparada pelo razo�vel conforto do lugar de onde profiro meu discurso. Como professora, eu sempre acreditei no questionamento como lugar promissor de aprendizagem. Despida de um punhado de certezas, repenso, reflito, corrijo a rota na busca pelos caminhos por onde percorrer, sempre lembrando a mim mesma do que j� disse aqui num dos primeiros textos: ser feminista � lutar pela dissolu��o da estrutura capitalista, colonial e patriarcal que impede que todas as mulheres possam usufruir das conquistas que, individualmente, em algum momento possam ter nos libertado.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)