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Estado de Minas EROTISMO E RELIGIOSIDADE

'Sem nenhuma estrid�ncia': Ad�lia Prado e a mulher comum

'� inevit�vel que eu volte a ela, principalmente quando penso nas rela��es do feminismo com a literatura produzida por mulheres'


31/08/2021 06:00 - atualizado 31/08/2021 08:43

(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA PRESS)
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/DA PRESS)

 
Eu n�o demorei a entender que o meu lugar no mundo s� se daria por meio da palavra. Eu n�o acredito muito em signos, n�o tenho religi�o, minha f� no universo n�o � inabal�vel. Mas da palavra, eu nunca duvidei. Desde nova minha obsess�o eram os livros, as estantes sendo preenchidas com gosto e prazer. Passei pela fase das enciclop�dias, que eu devorava com fervor, a dos atlas, para os quais eu criava mem�rias visuais rigorosas, e a das cole��es de literatura brasileira, que pode ser comprovada pelo meu ensaio fotogr�fico favorito, produzido pela minha m�e, em que com cerca de 6 anos eu poso lendo Capit�es de Areia, do Jorge Amado. 

Eu fui transformando a literatura nessa coisa indissoci�vel de mim mesma, nesse sentimento de pertencimento, nesse lugar poss�vel de sobreviv�ncia. E fiz dela o meu nocaute. Porque � quase sempre essa a sensa��o, mesmo quando parece n�o ser. Fui tamb�m moldando algumas prefer�ncias, dentre elas a poesia. Sou, antes e sempre, uma leitora de poesia. N�o existe nenhum outro texto que me ofere�a um lugar de arrebatamento t�o grande quanto o texto po�tico. 

Lembro da primeira escritora que despertou em mim esse sentimento de encantamento, a sensa��o de que ali dentro daquelas palavras eu poderia fincar as bases do meu territ�rio: a Ad�lia Prado. Foi lendo “Bagagem”, seu primeiro livro, que tudo ficou n�tido; eu sabia pra onde ir. Essa sensa��o se repetiu algumas outras vezes, com maior ou menor intensidade, como nos casos de Hilda Hilst, Alejandra Pizarnik, Clarice Lispector, Concei��o Evaristo, Ang�lica Freitas, Patti Smith, Adelaide Iv�nova, Ad�lia Lopes, Lygia Fagundes Telles, Anne Carson e muitas outras que passar�o por aqui. Mas eu guardo com muito carinho e reconhecimento a singularidade daquela sensa��o, a primeira p�gina de Ad�lia, a ep�grafe, o “modo po�tico” abrindo caminho pros versos inscritos na mem�ria afetiva do que eu reconhe�o como palavra:

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta esp�cie ainda envergonhada.
Aceito os subterf�gios que me cabem,
sem precisar mentir.
N�o sou feia que n�o possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora n�o, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor n�o � amargura.
Minha tristeza n�o tem pedigree,
j� a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil av�.
Vai ser coxo na vida � maldi��o pra homem.
Mulher � desdobr�vel. Eu sou.

Agora, enquanto escrevo, sinto a mesma alegria emocionada da primeira leitura. Desde ent�o eu mudei muito, descobri outros lugares de interesse, amplifiquei minhas refer�ncias, deixei outras para tr�s, estudei, ensinei, aprendi. Dirigi meu caminho acad�mico para a constru��o de um referencial te�rico e art�stico de mulheres e busquei novas maneiras de olhar, dizer e sentir. A poesia da Ad�lia foi ficando guardada num lugar afetivo, de lembran�a, sem ganhar ares de protagonismo nas minhas pesquisas. Mas � inevit�vel que eu volte a ela, principalmente quando penso nas rela��es do feminismo com a literatura produzida por mulheres. 
 

'O desconforto que causam suas vozes po�ticas de mulheres comuns, feias, religiosas, tradicionais, donas de casa, m�es, que desejam, pulsam, fazem sexo, carregam bandeiras, inauguram linhagens e fundam reinos.'

 

Eu ou�o muito a cantilena de que a obra da Ad�lia Prado � beata demais para ser feminista. Que a religiosidade que atravessa sua obra empalidece a for�a de uma literatura mais engajada, ou que a centralidade do casamento e do amor (e todas as suas met�foras) a jogue para um lugar “feminino” demais - veja s� que ironia. 

E eu mesma acreditei nisso por um tempo, deixando a obra de lado para buscar autoras que se encaixassem melhor no objeto de an�lise feminista que eu procurava. Hoje, quando volto � Ad�lia, me espanto com a riqueza das possibilidades de leitura. O desconforto que causam suas vozes po�ticas de mulheres comuns, feias, religiosas, tradicionais, donas de casa, m�es, que desejam, pulsam, fazem sexo, carregam bandeiras, inauguram linhagens e fundam reinos.

A poesia da rotina n�o nos parece suficiente porque por muito tempo era esse espa�o da casa o nosso grande inimigo. Casa como tudo que ela representa e sempre representou: um lugar da solidifica��o dos papeis de g�nero e das opress�es cotidianas. Mas, obviamente, ela n�o representa s� isso, bem sabemos. Ela �, tamb�m, lugar de exist�ncia, de ‘sementes, muito mais que ra�zes’: “n�o fica em bairro esta casa/infensa � demoli��o./Fica num modo tristonho de certos entardeceres,/quando o que um corpo deseja � outro corpo para escavar./Uma ideia de ex�lio e t�nel”. 
 

'Uma mulher dizendo sobre sua carne, sobre o sexo, sobre o desejo que anima seu esp�rito, e tudo muito entrela�ado aos seus atos de devo��o a um deus tradicional, aquele da igreja cat�lica e das missas de domingo. Meu interesse pelos estudos do corpo na poesia produzida por mulheres nasceu a�, nesse misto de mist�rio e paix�o que mais tarde outros l�xicos transformaram em j�bilo e dor.'

 
 
A mistura dos componentes er�ticos com aqueles abertamente religiosos � um marco importante da constru��o po�tica da autora. As tradicionais figuras interioranas que desfilam por suas p�ginas, com um linguajar prosaico quase familiar fazem com que o efeito da efervesc�ncia o corpo sexual e erotizado seja ainda mais intenso. E isso n�o � pouco. Uma mulher dizendo sobre sua carne, sobre o sexo, sobre o desejo que anima seu esp�rito, e tudo muito entrela�ado aos seus atos de devo��o a um deus tradicional, aquele da igreja cat�lica e das missas de domingo. Meu interesse pelos estudos do corpo na poesia produzida por mulheres nasceu a�, nesse misto de mist�rio e paix�o que mais tarde outros l�xicos transformaram em j�bilo e dor. 

Ad�lia, assim como Clarice, sofreu das violentas constata��es can�nicas de que ser mulher e ter voz � limite, n�o lugar. Escrever o que se sente tomou ares de sina maldita. Tem gente que olha pedra e s� v� pedra mesmo. Isso, sim, deve ser alguma forma de maldi��o. 
 

*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)

 

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