
No texto da semana passada escrevi sobre o amor. Na verdade, sobre como escolher amar � essa revolu��o toda, sim. E hoje me peguei pensando de novo nisso. Escrever uma coluna semanal � um desafio, voc� fica ali imersa numa rotina acelerada, as coisas todas acontecendo ao mesmo tempo.
'�s mulheres, j� est� delimitado um lado; somos cora��o e isso � sistematicamente classificado como uma fraqueza, ainda que o tenhamos recebido quase como um t�tulo outorgado, uma sina, um fardo.'
Numa dessas avalanches de pensamentos, tentando aproveitar uma ideia ou outra para esse texto, fui ao amor e voltei, como um c�rculo que sempre se fecha sobre si mesmo. Um caracol de fogo, diria Hilda Hilst. O lugar do sentimento � sempre melindroso. Ficamos nesse embate da raz�o com o cora��o, declarando de antem�o que a exist�ncia pac�fica dessa dupla � invi�vel.
�s mulheres, j� est� delimitado um lado; somos cora��o e isso � sistematicamente classificado como uma fraqueza, ainda que o tenhamos recebido quase como um t�tulo outorgado, uma sina, um fardo.
Aos homens, toda a for�a do ser racional, a cabe�a pensante, o poder frio da escolha calculada. Obviamente todo produto dessa divis�o ilus�ria confirmaria nosso destino menor, mais fr�gil, menos capaz.
Isso vai desde o mito da DR (discuss�o de relacionamento) sempre iniciada pela parceira chorosa, hist�rica, sentimental at� as produ��es art�sticas e intelectuais levadas menos a s�rio, pois intensas e sens�veis demais.
E hoje n�o estou aqui para discutir com profundidade a estrutura violenta que sustenta esse edif�cio t�o pesado do patriarcado. Venho para reivindicar meu direito inegoci�vel de ocupar o lugar do sentimento desbragado, da intensidade das paix�es, da sensibilidade aflorada e do choro incontido, sem que isso inviabilize a minha exist�ncia enquanto algu�m que pensa, reflete e faz escolhas.
'Bethania, declamando versos como quem morre, como quem ama, apropriando-se desse lugar da mulher intensa sem nenhum pudor.'
Sempre fui fascinada pelas mulheres que extrapolam tudo, o tempo todo. Essa incandesc�ncia que ilumina e aquece. Gal, sentada no banco com seu viol�o, pernas abertas, a saia puxada, o olho fixado cantando “Da maior import�ncia” e repetindo como mantra que voc� n�o teve pique (e n�o sou eu quem vai).
Bethania, declamando versos como quem morre, como quem ama, apropriando-se desse lugar da mulher intensa sem nenhum pudor. Tulipa, que foi a performance mais transformadora que eu vi na vida, um pertencimento ao pr�prio corpo que ecoava no grito, na voz. Clarice, ensinando os modos de sentir. Hilda, revelando palavra dilacerante com sua escrita das entranhas.
Quando comecei minha vida acad�mica tentei ao m�ximo camuflar meu texto pessoalizado e cheio de emo��o. Em busca da escrita objetiva, fui criando estruturas de frases que freassem minha sanha por adjetivos, minha tara por adv�rbios e meu carinho especial pelos travess�es e per�odos longos.
'O sil�ncio da mulher guarda uma s�rie de clich�s culturais, sociais e institucionais sobre o nosso papel. Adestradas dentro do inaud�vel, circulamos dentro de espa�os confinados, sem que nossas vozes ultrapassem a linha imagin�ria da norma, do poder, da autoridade.'
Mas n�o durou muito. Logo eu percebi, como pesquisadora, que todo processo de investiga��o de um objeto era uma investiga��o de mim mesma, todo processo de constru��o de texto era uma constru��o de mim mesma. E me permiti usar mais adjetivos do que a m�dia, porque eu sentia demais cada palavra e precisava achar um l�xico que coubesse aquela sobra.
O sil�ncio da mulher guarda uma s�rie de clich�s culturais, sociais e institucionais sobre o nosso papel. Adestradas dentro do inaud�vel, circulamos dentro de espa�os confinados, sem que nossas vozes ultrapassem a linha imagin�ria da norma, do poder, da autoridade. Por isso a urg�ncia do sentir e do dizer sobre si e sobre o que vemos no mundo. A explos�o de um discurso que busca a flu�ncia e a ocupa��o dos lugares, a dissolu��o das estruturas, a liberdade, a resist�ncia, a voz.
“Porque h� o direito ao grito.
Ent�o eu grito”*
P.S: A frase/verso acima est� em “A hora da estrela”, livro de Clarice Lispector que trouxe uma das personagens mais bonitas da literatura brasileira: Macab�a.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universit�ria nos cursos de Comunica��o, Artes e Educa��o)