Na Fundamenta��o da Metaf�sica dos Costumes, Kant nos alertava de que se a provid�ncia quisesse que n�s f�ssemos felizes n�o nos teria dado a intelig�ncia. Muitas vezes acreditamos que a intelig�ncia e os atributos dela s�o o que de mais especial podemos ter, afinal, somos seres racionais e pensantes. Nesse af� e nessa cren�a quase ilimitada na raz�o, muitos de n�s deixam de cultivar o lado das percep��es, das intui��es e do n�o cartesiano.
N�o temos d�vida que a intelig�ncia conduziu o homem a descobertas incr�veis e proporcionou uma qualidade de vida impens�vel h� cem anos. No entanto, na medida em que envelhecemos, precisamos nos dedicar ao laborioso e po�tico trabalho de emburrecer. O que antes era medido, cronometrado e parametrizado precisa ir cedendo lugar ao belo, ao surpreendente e ao inesperado.
Muitas vezes, o excessivo pensamento cartesiano faz com que queiramos planejar cada detalhe da nossa exist�ncia, n�o deixando qualquer lugar para as surpresas. E assim, a vida pode se tornar cada vez mais pesada e menos provida de sentido. E a depress�o, que sempre est� � espreita, pode aparecer sem maiores explica��es.
O envelhecimento � um momento privilegiado para retomarmos nossa capacidade de sonhar, de acreditar e de fazer reais planos que outrora n�o foram poss�veis de serem realizados porque est�vamos demasiadamente presos aos restritos limites da intelig�ncia cartesiana e do peso do julgamento dos outros.
Se nos preocuparmos demais com o que os outros pensam ou se analisarmos todos os fatos da exist�ncia de modo anal�tico n�o sobrar� nenhum espa�o para o sonho, para a alegria trivial e para as ben��os. Estaremos nos condenando a viver uma vida anestesiados de n�s mesmos, apartados daquilo que, ao lado da racionalidade, nos faz quem somos: que s�o os nossos sentimentos, as nossas expectativas, os nossos desejos, os nossos sonhos - associados com nossos medos -, as nossas inseguran�as, as nossas dificuldades existenciais e da luta que travamos dentro de n�s mesmos.
O emburrecimento, no sentido que damos a ele aqui, � essa capacidade de se surpreender com as coisas simples da vida, de buscar aquilo que conforta a alma, ainda que n�o seja o caminho mais indicado a ser seguido. � a nossa coragem de sermos rid�culos, se assim quisermos ser, sem medo dos julgamentos. Alguns, mais vision�rios que n�s, tamb�m chamam tais atitudes de sabedoria.
Na maior parte da nossa vida estamos o tempo todo analisando consequ�ncias de nossas a��es, por mais simples que elas sejam, porque acreditamos que precisamos da aprova��o das pessoas para sermos amados e que se n�o agirmos conforme a expectativa do outro n�o manteremos o amor e o respeito que acreditamos receber das pessoas. O que o emburrecimento pode nos trazer – e nisto a idade ajuda – � a indecifr�vel capacidade de n�o nos avaliarmos a partir do olhar dos outros, mas dos nossos pr�prios desejos e aspira��es.
Emburrecidos, somos mais leves e felizes, pois j� n�o nos dedicamos tanto a analisar, julgar e criticar, nem a n�s mesmos, nem ao mundo que nos cerca. Emburrecidos, temos a possibilidade de alcan�ar o infinito, j� que nossa raz�o n�o ficar� colocando o g�rmen da d�vida em tudo o que fazemos. Emburrecidos, n�o perderemos tempo com o medo de sermos aprovados ou n�o. Emburrecidos, entenderemos que nossas atitudes n�o precisam espelhar o que o mundo aprova, mas sim o que acreditamos que nos trar� mais tranquilidade numa fase da vida em que outros problemas realmente relevantes nos trar�o novos desafios.
Nossa energia vital, al�m de finita, tende a decrescer com o aumento da idade; assim, � importante que racionalizemos onde a dispenderemos. Emburrecer talvez seja a sabedoria de consumir tempo e dedica��o para sanar as dificuldades que realmente valem a pena e n�o quest�es sem relev�ncia, que em nada auxiliam em nossa evolu��o.
Os emburrecidos deixam um pouco de lado os jornais e passam a ler mais poesia, pois entendem que aquilo que alimenta o esp�rito � mais valioso que qualquer informa��o que amanh� j� ser� velha. Apenas pessoas emburrecidas entendem quando Ariano Suassuna afirmava que se quis�ssemos de fato falar com Deus, dever�amos Lhe oferecer poesias e flores e n�o sacrif�cios e penit�ncias. S� os emburrecidos conseguem sair da caverna de Plat�o e enxergar a luz, que s� pode ser vista por um olhar capaz de se surpreender como se fosse sempre a primeira vez.