A morte de um ente querido � sempre dolorida. � normal expressar tristeza nesse momento e � importante se permitir sentir e vivenciar o sofrimento
Um �ltimo olhar, um �ltimo “eu te amo”, um �ltimo abra�o, um �ltimo “adeus”. Quando algu�m querido se vai, o desejo � de que pudesse ter a chance de fazer cada uma dessas coisas ao menos mais uma vez. A dor de perder a presen�a constante de um filho, pai, m�e, av� ou av� � grande e tende a se estender a diversos outros sentimentos. Aos poucos, a ang�stia se ameniza, deixando a saudade como a maior das lembran�as.
“O luto �, em geral, um momento no qual podemos nos voltar para n�s mesmos, recalibrar as nossas emo��es e os nossos pensamentos para que se possam criar estrat�gias e formas de viver de outra forma, de reassumir a rotina e recriar a nossa vida. � normal sentirmos tristeza diante da perda e � importante se permitir sentir e vivenciar esse sofrimento. Mas o que � importante entender, tamb�m, � que depois que esse momento de crise passa, � necess�rio se recuperar e seguir em frente com as suas pr�prias vidas e prop�sitos.”
� o que afirma a psiquiatra Kelly Pereira Robis. Portanto, buscar formas de lidar com o momento � de suma import�ncia para que a vida n�o passe a se limitar � perda e � aus�ncia da pessoa amada. � preciso seguir com as lembran�as de quem se foi e os ensinamentos deixados por elas, mas com a percep��o de que a vida continua e ainda h� algu�m em vida com miss�es, prop�sitos e sonhos. O primeiro passo � se permitir sofrer, aceitar a emo��o e entender que esse sentimento � l�cito e natural para todo ser humano.
O segundo ponto, de acordo com a psiquiatra, � n�o deixar de se cuidar, n�o deixar de se alimentar bem, n�o deixar de dormir bem e de ficar perto de pessoas de quem gosta, n�o deixar de se envolver em situa��es em que pode se permitir pedir ajudar e, tamb�m, n�o deixar de pedir ajuda. “Se voc� est� em uma situa��o dif�cil, muitas vezes, pedir ajuda a algu�m e inform�-la sobre as suas necessidades pode ser um pouco mais leve do que simplesmente se obrigar a dar conta de tudo. Apesar disso, n�o h� uma receita, cada pessoa sofre e vive o luto � sua maneira.”
Isso porque, a partir de cada individualidade, o luto ser� sentido. H� quem negue o ocorrido, quem busque se prender aos sentimentos ou mesmo se fechar em um “mundo solit�rio”. E � importante que cada um passe pelo momento da forma que consegue para que as marcas e estigmas deixados n�o se tornem ainda mais profundos. E justamente por isso n�o h� um tempo certo para que toda dor se v�. � relativo e adaptativo para cada perda e pessoa especificamente.
“A forma como as perdas ocorrem, seja de forma abrupta ou um pouco mais insidiosa, pode influenciar na forma como enfrentamos determinado sofrimento, mas tamb�m pode influenciar na nossa capacidade de utilizar estrat�gias eficazes ou n�o para lidar com o problema especificamente. As situa��es que acontecem de forma muito abrupta e acidental favorecem uma sensa��o de dissocia��o da realidade. Por isso, muitas pessoas parecem relatar que est�o vivenciando um sonho, como se aquilo fosse muito diferente da realidade � qual elas est�o acostumadas.”
Segundo ela, podem surgir sintomas ansiosos ou pensamentos depressivos recorrentes. O transtorno de estresse p�s-traum�tico, em que a pessoa come�a a ter sentimentos e emo��es de ansiedade diante da lembran�a de um acidente que uma pessoa muito querida e pr�xima vivenciou, tamb�m pode ocorrer.
� quando, ent�o, o luto tende a se tornar patol�gico, sem qualquer liga��o com o tempo de sofrimento, mas sim a forma como ele foi sentido. Para Carolina Oliva, psic�loga cl�nica especialista em luto materno e de fam�lias, o risco de n�o se viver o luto e n�o sentir todos os sentimentos e emo��es que ele exige pode trazer consequ�ncias horr�veis ao enlutado. “A pessoa pode desenvolver quadros de depress�o, n�o o momento depressivo caracter�stico do luto, mas a patologia. H�, tamb�m, a possibilidade de desenvolver transtornos de ansiedade ou s�ndrome do p�nico, o que � grave.”
Expor e “p�r para fora” � uma forma de esvaziar essa dor, � uma forma de entender que � um momento que voc� est� vivendo, porque se a pessoa ignora e n�o vive o luto, ela n�o elabora a nova vida sem o ente querido e n�o consegue continuar, podendo at� atentar contra a pr�pria vida, destaca a psic�loga. “Por isso, � importante que as pessoas enlutadas procurem ajuda de familiares, amigos, grupos de apoio e especialistas, a fim de lidar com o luto de forma menos traum�tica, sem que essa dor vire uma ‘bola de neve’ ou um problema maior”, explica.
SOBREVIVENTE
A psic�loga cl�nica Carolina Oliva perdeu um de seus grandes amores h� cerca de oito anos, o pequeno Jo�o. “Estava gr�vida de 34 semanas quando senti que meu beb� estava mexendo um pouco menos que o normal. Liguei para o meu m�dico e ele disse para eu ficar calma e que estava tudo certo. Naquele momento, me senti tranquila. Fui, ent�o, fazer um ultrassom que j� estava marcado e sentia que algo n�o estava bem”, lembra.
A psic�loga cl�nica Carolina Oliva teve que buscar uma ressignifica��o da dor ap�s perder o filho com 34 semanas de gravidez (foto: Denise Santos/Divulga��o)
“Estava angustiada. Durante o exame, o m�dico me disse que n�o havia mais batimentos card�acos e que o Jo�ozinho tinha falecido com oito meses na barriga. Estava tudo pronto para receb�-lo. Estava tudo lavadinho. Est�vamos esperando muito aquele beb�, n�s o quer�amos muito. Ele foi um sonho muito especial na minha vida desde quando recebi o teste positivo e descobri que seria m�e. Ent�o, foi muito dif�cil, e tudo mudou, porque as pessoas mudam quando perdem algu�m, assim como os relacionamentos e comportamentos. As datas comemorativas eram as piores, mas busquei entender e ressignificar.”
E, aos poucos, a dor foi virando saudade. Carolina se permitiu engravidar novamente e o pequeno Rafael veio ao mundo para dar um pouco mais de aconchego. “Ele n�o substituiu o Jo�o, ele n�o tapou o buraco do Jo�o. Pelo contr�rio, ele veio para me ensinar muita coisa, porque vivendo aquele momento, fui entendendo o porqu� de ter passado por aquilo, apesar de ser bem dif�cil de entender. E fui me sentindo melhor. Tenho saudade, tenho paz dentro do meu cora��o, mas a dor se foi. Hoje, consigo entender a breve miss�o do Jo�ozinho aqui na Terra.”
Ela procurou um apoio psicol�gico. “Entendi que precisava de ajuda e todas as pessoas do mundo precisam de ajuda nessa fase, nesse momento t�o dif�cil. As pessoas confundem pedir ajuda com ser fraca, como se falar e sentir tudo que tem que sentir fosse algo negativo, e � justamente o contr�rio. Quem fala elabora bem, quem fala cura a dor, quem fala consegue encontrar um caminho para aquela dor. E, hoje, percebo que a minha dor n�o existe, hoje s� existe amor, muito amor, e saudade”, relata.
TABU
Falar sobre a perda � dif�cil. Isso porque relembrar a morte de algu�m querido tende a trazer lembran�as que podem doer no corpo e na alma. Al�m disso, aquele que escuta, muitas vezes, pode n�o compreender o luto ou, em busca de confortar o enlutado, entoar frases como “vai ficar tudo bem”, “n�o precisa ficar assim”, "voc� precisa ser forte”, “ele n�o ia gostar de te ver assim”, o que machuca e isola sentimentos. Aos poucos, sentir parece proibido, sofrer parece errado e ouvir parece constrangedor. Cria-se, ent�o, um tabu, o qual, segundo Carolina Oliva, precisa ser quebrado.
Medo da morte e de falar sobre a morte. � essa a marca deixada na sociedade. Um estigma que faz as pessoas pensarem que falar da morte a atrai. “E as coisas n�o s�o nada assim”, lembra Carolina. Justamente por isso, ela se dedica a cuidar de pessoas e fam�lias enlutadas. “� o meu papel, que, al�m de social, se tornou uma grande miss�o na minha vida. N�o aceito ver fam�lias se desconstruindo, se quebrando por conta desse tabu t�o grande, n�o falar sobre a perda.”
E � assim que, agora, Carol, como � conhecida por amigos e pacientes, busca ensinar, por meio de cursos, psicologia e educa��o, como as pessoas enlutadas encontram os caminhos da ressignifica��o da dor e da hist�ria de cada um deles, da constru��o de uma nova etapa e de uma nova vida mesmo faltando um pedacinho t�o importante, seja ele um filho, um marido, uma m�e ou irm�o. “Ent�o, transformei todas as minhas dores em luta para que todas as pessoas que passam pelo luto possam passar de uma forma mais leve, mais cuidadosa.”
*Estagi�ria sob supervis�o da editora Teresa Caram