Rafael, com a mãe Gabriela

Gabriela, m�e de Rafael, diz que descobriu que o filho tinha TDAH depois que procurou uma psic�loga: "Chegou em um ponto que ele n�o fazia mais nada. O tempo inteiro no celular"

Arquivo pessoal
"Os jogos s�o legais, engra�ados. Me comunico com meus amigos por eles, e hoje tenho contato at� com pessoas famosas. Mas nunca tive amigos de verdade", diz Rafael Ferraz de Souza, de 10 anos, sobre os games que as crian�as e adolescentes jogam. Por volta dos 6, ele come�ou a gostar de jogar no celular e, no in�cio, essa rela��o n�o foi t�o inofensiva assim. A m�e do garoto, Gabriela Ferraz Sena, de 31, precisava sair para trabalhar e deixava o menino aos cuidados da filha mais velha, ou contratava algu�m para isso. Acabou, por iniciativa pr�pria, oferecendo o aparelho para Rafael, como sa�da para que n�o desse trabalho em sua aus�ncia.

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Mas a decis�o acabou surtindo outro efeito. "Chegou em um ponto que ele n�o fazia mais nada. O tempo inteiro no celular. Passou a n�o interagir com os colegas na escola, tirava notas baixas, n�o queria outras brincadeiras ou atividades que n�o fossem o celular. Eu brigava com ele at� para comer", relata Gabriela. Foi com a orienta��o de uma psic�loga que Rafael foi diagnosticado com d�ficit de aten��o e hiperatividade. "Descobri at� que o erro tinha sido meu mesmo. Eu que o deixava jogar", lembra. N�o foram necess�rios terapia ou tratamento medicamentoso. A solu��o foi incentivar o garoto a fazer outras coisas.

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O processo de melhora vem de um ano para c�. E funcionou. Agora ele faz futebol, anda de skate, bicicleta, patins e, com a m�e mais tempo em casa (no momento n�o est� trabalhando), a rela��o com ela tamb�m melhorou. "Estou mais dispon�vel para ele. Sa�mos, vamos � pra�a. Agora ele tamb�m tem mais amigos. Aceitou a mudan�a", conta. Com as outras tr�s filhas, Gabriela transmite o aprendizado que adquiriu com Rafael. A mais velha, de 13 anos, e as outras duas, de 4 e de 2, n�o t�m tanto acesso ao celular - jogam, mas de vez em quando.

ALERTA 

Considerar o v�cio em games um transtorno mental �, para a psiquiatra e mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Priscilla Soares dos Santos Ladeia, uma forma de  alertar a popula��o e profissionais da �rea da sa�de para a import�ncia do tema e o impacto desse problema na qualidade de vida e sa�de das pessoas afetadas.

"A promo��o de debates e capacita��o para a preven��o, investiga��o de casos suspeitos, diagn�stico precoce e tratamento adequado s�o fundamentais. A decis�o n�o deve aumentar o preconceito e estigmas", diz a especialista, enfatizando a necessidade de ter um cuidado especial com crian�as e adolescentes.

A psiquiatra refor�a que controlar o tempo de jogo � uma medida necess�ria. Segundo especialistas, o limite de tempo para crian�as estarem em contato com aparelhos � determinado pela faixa et�ria, sempre com supervis�o de pais ou respons�veis.

Menores de dois anos n�o devem ter contato com telas ou videogames em nenhuma situa��o, dos dois aos cinco anos a recomenda��o � de at� uma hora por dia, dos seis aos 10 entre uma a duas horas di�rias e, dos 11 aos 18 anos, entre duas a tr�s horas por dia.

Quando se trata de um transtorno mental em espec�fico, � importante avaliar os sintomas gerais, e n�o focar apenas no tempo de tela, orienta Priscilla. "Claro que a exposi��o excessiva �s telas diz sobre algum problema. Mas � preciso avaliar outras quest�es, como o humor, a ansiedade, ou dificuldades na escola. Muitas vezes ficar no quarto na frente do computador � uma fuga. O que levou �quilo � o que interessa. Pode ser um quadro depressivo ou a crian�a est� sofrendo bullying, sem que os pais se atentem a isso", ensina a psiquiatra.

IMPACTOS

 Para falar de um v�cio ou dist�rbio de fato, � preciso observar quais os impactos dos jogos nos demais aspectos da vida. "Se a crian�a ou jovem, em um dia, fica mais tempo no computador, tudo bem. A quest�o � quando isso se torna uma regra. Quando h� dificuldade de se afastar desse h�bito, ou se divertir com outras coisas, e ficar fixado naquela atividade, com preju�zos na �rea acad�mica - como dificuldade de socializar na escola - ou nas rela��es familiares. Ver o jogo de maneira isolada � limitador", aponta Priscilla. "A crian�a ou o adolescente deve ser visto como um todo, em uma an�lise que n�o fique restrita ao tempo", acrescenta.

Diferente de puramente restringir, � fundamental estar com as crian�as e adolescentes e oferecer outras atividades prazerosas para eles. "H� que se ter clareza de que eles aprendem com refer�ncias concretas. Se os pais e cuidadores passam muito tempo no celular e em jogos, n�o h� como exigir deles uma postura distinta", recomenda.

A pr�tica de atividades f�sicas, exerc�cios de racioc�nio l�gico e coordena��o exercitam diferentes �reas cerebrais das crian�as e adolescentes, ajudando-o a enfrentar uma eventual depend�ncia aos jogos que, segundo Priscilla, � compar�vel ao que acontece em rela��o a �lcool e drogas.

N�o � f�cil interromper o comportamento repetitivo dos jogadores que envolve a busca incessante do prazer. “Para tanto, eles despendem cada vez mais tempo de vida com isso, como tamb�m buscam desafios maiores. No alcoolismo, doses maiores ou bebidas com maior teor alco�lico s�o buscadas, e algo parecido acontece com as drogas. Nos jogos, s�o longos per�odos de dedica��o e n�veis de dificuldade mais acentuados, que poderiam proporcionar uma excita��o e satisfa��o maiores", explica a psiquiatra.

Palavra de especialista

Larissa Figueiredo Gomes
psic�loga especialista em terapia cognitivo-comportamental

Impactos psicossociais

A depend�ncia de redes sociais tamb�m compromete o funcionamento da vida di�ria. Os preju�zos f�sicos se estendem a problemas de vis�o, priva��es de sono, fadiga, problemas com alimenta��o e desconforto musculoesquel�tico. Os impactos psicossociais relacionados ao uso excessivo dessas redes referem-se a depress�o, problemas nas rela��es interpessoais, diminui��o nas atividades e na comunica��o social e solid�o.

O sentimento de seguran�a proporcionado pelo anonimato da internet parece oferecer aos indiv�duos possibilidades menos arriscadas de envolver-se em uma rela��o virtual. Essa estrat�gia pode parecer, inicialmente, um m�todo bastante eficaz de socializa��o, mas, com o decorrer do tempo e o uso excessivo da rede, essa forma de comunica��o e de estabelecimento de amizades pode resultar em um decl�nio da vida social e tornar-se um terreno f�rtil para manifesta��o de outras patologias.

O que observamos � que esse p�blico, assim como os de depend�ncia de �lcool, possui pouca autocr�tica, pois n�o consegue descrever os impactos sofridos em v�rios aspectos de sua rotina.

Priscilla Soares dos Santos Ladeia, psiquiatra

Priscilla Soares dos Santos Ladeia, psiquiatra

Fernando Laudares/Divulga��o

"Muitas vezes ficar no quarto na frente do computador � uma fuga. O que levou �quilo � o que interessa"

Priscilla Soares dos Santos Ladeia, psiquiatra


Risco de se isolar do mundo

Outro fator dificultador � o fato de o indiv�duo com transtorno em jogos poder experimentar sensa��es de abstin�ncia, tais como irritabilidade e tremores, quando tenta interromper o h�bito ou mesmo diminuir a frequ�ncia ou intensidade do jogo, avalia Priscilla.

“Al�m disso, ao longo do processo de instala��o da depend�ncia, o sujeito abandona atividades de que gostava, al�m do risco de se isolar socialmente. Dessa forma, ele tem dificuldade em retomar essas atividades, que diante do v�cio deixam at� mesmo de ser prazerosas ou se tornam entediantes, bem como pode n�o conseguir reaver os la�os e fun��es sociais perdidos.”

Priscilla esclarece que aquelas pessoas que apresentam transtorno em jogos eletr�nicos buscam como recompensa, na maioria dos casos, experimentar sensa��es de prazer cada vez melhores. Nos jogos como bingo, ca�a-n�queis, jogo do bicho (jogos de azar), a aposta recai sobre uma quantia financeira e ganhos progressivos.

“Embora os processos sejam distintos, ambos envolvem sistemas de prazer e recompensa em n�vel cerebral. Enquanto transtornos mentais, ambos tamb�m geram preju�zos significativos na vida do afetado e ele tem dificuldade em interromper o h�bito, mesmo ap�s identificar os preju�zos nas v�rias esferas da vida pessoal e social”, esclarece.

A psiquiatra aponta que v�rios estudiosos t�m se dedicado a identificar fatores gen�ticos que possam contribuir para o desenvolvimento de dist�rbios em geral. Em rela��o aos jogos, ao menos dois estudos j� indicaram a rela��o da gen�tica com a depend�ncia. No entanto, � necess�rio aprofundar na investiga��o sobre qual parte do genoma seria respons�vel por essa manifesta��o.

A TARDE INTEIRA 

educadora física Alessandra Calijorne Mattarelle

Depois de uma fase dif�cil, a educadora f�sica Alessandra Calijorne Mattarelle hoje v� as vantagens dos games para o filho

Jair Amaral/EM/D.A Press
A educadora f�sica Alessandra Calijorne Mattarelle, de 51 anos, � m�e de Lucca, 22, Enzo, 18, e Iolanda, 14. � com o filho do meio, estudante de direito, que experimentou momentos de preocupa��o por causa da exposi��o aos jogos de computador. Foi por volta dos 14 anos que Enzo come�ou a gostar dos games. Chegava em casa depois da aula, almo�ava, e se sentava para jogar. Ali ficava a tarde inteira, algumas vezes at� meia-noite. Por mais que a m�e o incentivasse a praticar algum esporte (jogava futebol aos finais de semana), a predile��o mesmo era pelo universo eletr�nico.

“Fiquei com medo de que ele ficasse viciado, e isso de fato aconteceu. Ficou agitado, irritado, n�o dormia bem. Muitas vezes passava horas sem comer e, quando comia, comia errado. Acabou tamb�m ficando obeso. Mas fizemos por onde para que isso n�o se transformasse em uma doen�a mais s�ria que o prejudicasse quando ficasse mais velho. Estudamos a respeito, e a fam�lia esteve sempre por perto”, relata Alessandra.

Enzo conta que nunca foi de sair de casa para se divertir com os amigos. Com o perfil mais caseiro, o jogo para ele era uma de suas principais formas de lazer. “Consigo relaxar, esquecer dos problemas cotidianos. � uma distra��o para mim”, diz.

Hoje, as novas demandas que a vida apresentou para o jovem fizeram com que as coisas mudassem. Como � ligada � �rea de sa�de, Alessandra estimulou o filho a fazer corrida de rua, e essa foi uma ajuda preciosa. Por outro lado, ela consegue elencar alguns pontos positivos da rela��o de Enzo com os games. "Ele � observador, detalhista, atento �s pequenas coisas. Tem facilidade para lidar com a tecnologia, o pensamento � r�pido. Os jogos permitem isso, trabalham a a��o e rea��o", relata.