
Imersos no caos da pandemia de COVID-19, os indiv�duos transg�neros se depararam com barreiras imensas. Isso porque, para al�m dos desafios di�rios, o acolhimento multidisciplinar e, tamb�m, a paralisa��o de tratamento hormonal em raz�o da suspens�o de medidas eletivas impactaram fortemente a vida das pessoas portadoras de disforia de g�nero. Nesse cen�rio, se o acolhimento familiar j� era fundamental, agora ela � tudo o que essas pessoas t�m.
Para Cl�cio Lucena, mastologista e professor do Departamento de Ginecologia e Obstetr�cia da Faculdade de Medicina da UFMG, em um contexto “normal”, ou seja, sem levar em conta a catastr�fica pandemia, o acolhimento familiar e social por parte de todos que convivem com esses indiv�duos j� � extremamente relevante. E isso tem a ver com o fato de que o principal ponto de apoio de qualquer pessoa � no �mbito familiar.
“Essa � uma condi��o que j� � estigmatizante e frustrante pela dificuldade de inser��o e de toda abordagem traum�tica que � o caminhar e o processo que esses pacientes v�o ter em sua readequa��o de g�nero. Ent�o, o seio familiar � extremamente relevante. Al�m de diminuir a frustra��o, a receptividade faz uma diferen�a grande na supera��o dos traumas e acima de tudo do estigma que essa popula��o constantemente vivencia”, comenta.

“Estamos vivendo um momento peculiar por causa da pandemia. Tudo foi afetado. A quest�o da sa�de teve um impacto maior, principalmente porque todo o setor foi remanejado para tratar a COVID-19. E, obviamente, a emerg�ncia se imp�s. Nesse caso, as situa��es eletivas foram adiadas em raz�o da prioriza��o da urg�ncia. Esses pacientes acabam se frustrando, porque havia um planejamento para realizar determinado procedimento ou tratamento. Isso foi impactado pela pandemia, com a suspens�o ou adiamento. Do ponto de vista do bem-estar ps�quico, eles acabaram ficando comprometidos.”
� um trabalho que passa em todo esse processo psicol�gico de acolhimento na sa�de pelo seio familiar, pela quest�o do ambiente social e profissional desses pacientes, destaca. A fashionista Priscila de Melo Santarelli Raposo, de 41 anos, entende bem isso. Ela conta que sempre notou que Manuela Santarelli Raposo, atualmente com 14 anos, era diferente. Para ela e o marido, o vendedor Vanderley Ernane Raposo Filho, de 39, no in�cio, foi um “susto”.
“Desde pequenininha, ela adorava tudo que era do universo feminino. Ela simplesmente ia para a aula de futebol e ficava im�vel, triste e n�o queria fazer nada. E quando ela entrou na puberdade, a Manu se tornou depressiva, triste e retra�da. Ela n�o sorria. Ela come�ou a sofrer muito bullying, porque era muito feminina. Bateram muito nela. At� ent�o, a minha desconfian�a era que ela era homossexual. Por�m, com a puberdade, ela come�ou a apresentar v�rias disforias, principalmente a respeito do genital.”
Conforme Priscila, Manuela sofria muito, chegando a querer arrancar o �rg�o genital. “Ela come�ou a se mutilar, se cortar e pensar muito em autoexterm�nio. Ela n�o sabia mais o que fazer, porque j� tinha ido em tr�s psic�logos e todos haviam dito que era coisa de crian�a. Mas como pode ser coisa de crian�a ela querer se matar? A�, aos 12 anos, assistindo v�deos no YouTube ela se descobriu uma menina transexual. Ela se abriu para mim e fiquei muito assustada a princ�pio. Conversei com o pai dela, ele aceitou, n�o muito bem em raz�o das quest�es machistas e preconceituosas enraizadas.”
Ela conta que acolheu a filha como uma joia a ser lapidada. “Fizemos do nosso lar o porto seguro para ela e ensinei que ela tem que se amar e se respeitar acima de tudo. E, tamb�m, respeitar o pr�ximo. Antes da pandemia, n�o tivemos acolhimento. Agora, muito menos. O ambulat�rio trans foi fechado. E ela precisa da hormoniza��o, porque com as mudan�as da puberdade, alguns gatilhos podem surgir. Tenho medo”, diz a m�e.
DISFORIA?
Transg�nero � um termo comum, mas disforia parece um termo de outro mundo? � quase a mesma coisa. Disforia de g�nero vem da pr�pria terminologia disforia, que significa ansiedade, depress�o e irritabilidade em rela��o ao g�nero, que � a identidade que cada um de n�s percebemos em rela��o � quest�o do nosso sexo biol�gico. Ou seja, como eu percebo a minha identidade de g�nero, explica Cl�cio Lucena.
“A gente sabe que isso hoje � muito mais amplo, tem-se uma diversidade de terminologias n�o apenas na quest�o bin�ria. N�o � s� homem ou mulher, h� uma diversidade. E a disforia de g�nero � um processo n�o t�o simples do ponto de vista de defini��o, existem crit�rios m�dicos, psicol�gicos e biol�gicos para defini��o do diagn�stico da disforia de g�nero. Em linhas gerais, � quando h� uma incongru�ncia, ou seja, uma diferen�a entre a percep��o do sexo biol�gico e a percep��o de como se enxerga a identidade de g�nero.”

Essa � uma condi��o que j� � estigmatizante e frustrante pela dificuldade de inser��o e de toda abordagem traum�tica que � o caminhar e o processo que esses pacientes v�o ter em sua readequa��o de g�nero
Cl�cio Lucena, mastologista e professor do Departamento de Ginecologia e Obstetr�cia da Faculdade de Medicina da UFMG
Ou seja, quando h� incongru�ncia entre o g�nero experimentado e o g�nero designado de uma pessoa. Outro fator que se leva em considera��o, segundo o especialista, � a dura��o dessa percep��o, porque isso pode ser uma coisa transit�ria. Mas, nesses indiv�duos com diagn�stico estabelecido de disforia de g�nero, a dura��o dessa percep��o tem que ser de pelo menos seis meses ou mais. Se um indiv�duo teve uma percep��o fugaz, uma situa��o muito pontual, que ele teve uma crise de identidade de g�nero, isso n�o enquadra no diagn�stico de disforia de g�nero.
Outro crit�rio defendido � o forte desejo pelas caracter�sticas sexuais do outro g�nero. O quarto crit�rio � o forte desejo de pertencer ao outro g�nero. O forte desejo de ser tratado como do outro g�nero e a forte convic��o de ter os sentimentos e rea��es t�picas do g�nero oposto aquele g�nero biol�gico ou g�nero de nascimento tamb�m s�o fatores considerados. “Essa defini��o em geral � feita por um acompanhamento psicol�gico para fazer esse tipo de defini��o de diagn�stico”, afirma.
Manuela Santarelli lembra bem de quando se descobriu. Ela n�o se enxergava no corpo que tinha, em seu corpo biol�gico. “Desde pequena, me identifico mais com o universo feminino. Quando me olhava no espelho, n�o enxergava quem eu realmente era, nunca me enxerguei como um menino, logo ver um menino no meu reflexo me fazia chorar, um gato no corpo de um cachorro. Com o tempo, fui enxergando quem realmente sou e queria ser.”
HORMONIZA��O
Ap�s o diagn�stico, � feita a interven��o interdisciplinar, com apoio psicol�gico, end�crino e ginecol�gico/urol�gico ou qualquer especialidade que tem familiaridade com o manejo dos horm�nios para fazer a institui��o ou a revers�o da quest�o hormonal do indiv�duo. “Ent�o, passa-se a ter o bloqueio do est�mulo hormonal original. Se o indiv�duo � biologicamente do g�nero feminino, ent�o ele tem ov�rios que v�o produzir os horm�nios femininos, e a gente tem que bloquear a estimula��o hormonal e fazer uma estimula��o com horm�nios masculinos.”
“H�, ent�o, duas situa��es. A gente antagoniza o horm�nio feminino e faz a estimula��o com o horm�nio masculino. E o inverso tamb�m acontece. Ou seja, o indiv�duo nasceu com g�nero masculino e quer se tornar do g�nero feminino, ele nasceu com test�culo e tem uma forte produ��o do horm�nio masculino, a gente vai usar drogas para bloquear a a��o e fazer uma estimula��o da chamada hormoniza��o cruzada. H� tamb�m interven��es diversas, com a cria��o do cabelo, as pr�prias fei��es faciais, do pesco�o, a quest�o do t�rax corporal, tem o refinamento ou delineamento corporal do sexo que � almejado, ente outros.”
Por fim, h� as cirurgias mais agressivas, conforme Cl�cio Leucena. S�o os procedimentos de mudan�as de sexo, com a cirurgia de readequa��o, a de genital e as mam�rias. Passada as fases cir�rgicas, pode-se fazer refinamentos est�ticos para adequar a apar�ncia desejada. Esses procedimentos s� podem ser feitos a partir dos 16 anos. E, por isso, Manuela ainda segue na ang�stia. “Ainda n�o tenho idade e conto com o SUS. Me sinto acolhida e amada pela minha fam�lia, mas � muito dif�cil.”
* Estagi�ria sob a supervis�o da editora Teresa Caram