
� um momento provavelmente conhecido: faz s� 1 minuto e meio que voc� botou o celular no bolso, mas, sem perceber, o seu dedo est� novamente rolando a tela em busca de likes ou de outras novidades da timeline. Mas n�o h� nada interessante. Afinal, s� se passaram 90 segundos.
Ou: em meio � monotonia da noite, um giro sem compromisso pelas ofertas na internet. Aparece um produto em promo��o. No fundo, voc� sabe que ele vai ter quase nenhuma utilidade, mas a tenta��o de aproveitar os 15% de desconto � mais forte. E � t�o bom receber o e-mail de confirma��o da compra...
Para a psiquiatra norte-americana Anna Lembke, instantes assim v�m permeando a vida moderna de um modo excessivo e contribuindo para uma constante sensa��o de insatisfa��o, em que picos de empolga��o ficam cada vez mais raros.
Lembke � a chefe da cl�nica especializada em v�cios na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e autora de Na��o Dopamina: Por que o Excesso de Prazer Est� Nos Deixando Infelizes e o que Podemos Fazer para Mudar (Editora Vest�gio, 2022).
O livro se debru�a sobre o funcionamento da dopamina, um neurotransmissor do c�rebro cuja descoberta � relativamente recente — foi feita em 1957 pelo neurofarmacologista sueco Arvid Carlsson, pesquisa que lhe rendeu um Pr�mio Nobel no ano de 2000.
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Esse mensageiro qu�mico do c�rebro � conhecido erroneamente como "horm�nio do prazer".
Na realidade, suas caracter�sticas est�o ligadas � motiva��o ou est�mulo refor�ador, com destacada atua��o no sistema de recompensa cerebral. A sensa��o de prazer tem outros componentes qu�micos envolvidos.
A dopamina, no entanto, � uma mol�cula fundamental em um processo maturado durante milh�es de anos de evolu��o: o corpo instintivamente evita a dor. Procura o oposto.
"Quando a dopamina � liberada e seus n�veis sobem em resposta a algo que ingerimos ou fizemos, o corpo sente prazer, recompensa, euforia. E, ent�o, claro, n�s sempre estamos buscando recriar essa sensa��o", diz Lembke em entrevista � BBC News Brasil.
Um experimento com ratos d� uma ideia de como algumas atividades e subst�ncias fazem disparar o neurotransmissor acima dos n�veis basais:
- Chocolate: +55%
- Sexo: +100%
- Nicotina: +150%
- Coca�na: +225%
- Anfetaminas: +1.000%.

Mas o nosso organismo sempre tenta restabelecer um equil�brio interno, chamado de homeostase. Ou seja, se o n�vel de dopamina foi para as alturas, o corpo tenta compensar o outro lado da balan�a.
"� aquela 'descida' ap�s qualquer experi�ncia prazerosa. �s vezes essa descida ocorre de forma �bvia, como a ressaca depois de uma bebedeira. Mas outras vezes � muito mais sutil", diz a psiquiatra.
"Essencialmente, � a dopamina em queda livre, que n�o volta apenas a n�veis basais, mas cai para abaixo deles. Ent�o, para cada prazer, h� um custo. E o custo � uma sensa��o tempor�ria da abstin�ncia de uma subst�ncia. Algo universalmente traduzido em ansiedade, irritabilidade, depress�o e fissura pela droga de prefer�ncia."
A toler�ncia
Com repetidas exposi��es a esses est�mulos que tanto nos atraem — sejam subst�ncias ou comportamentos — come�a um processo conhecido no mundo do v�cio: a toler�ncia.
O c�rebro passa a necessitar doses maiores e mais frequentes para obter a mesma sensa��o das primeiras vezes.
Lembke trata na cl�nica em Stanford casos graves de abusos de subst�ncias ou de depend�ncia em sexo ou apostas, mas observa que os atrativos surgidos com a internet e a tecnologia digital massificaram e banalizaram a din�mica dos disparos de dopamina e da compuls�o.
Ela acredita que todos n�s podemos aprender com casos graves de depend�ncia, "vers�es extremas do que todos n�s somos capazes".
"A riqueza, a abund�ncia e a tecnologia da nossa �poca faz com que quase toda experi�ncia humana tenha o potencial de v�cio, de uma droga. As m�dias sociais s�o conex�o humana em forma de droga. O que torna algo viciante? Algo que dispara dopamina no sistema de recompensa do c�rebro de forma r�pida", diz ela.

"E n�s temos acesso f�cil, quantidade ilimitada, grande pot�ncia e novidades ilimitadas. A dopamina responde a todas essas condi��es."
"As pr�prias not�cias s�o uma esp�cie de droga da novidade, certo? � a percep��o de que o mundo tem a todo momento eventos transformadores. Mas depois de um tempo n�s precisamos de mais e mais eventos chocantes para sentir algo. N�s passamos de horrorizados para entorpecidos — e � algo preocupante porque fala da natureza antissocial que circunda o v�cio, em que o dependente se torna indiferente ao sofrimento dos outros."
A pr�pria autora admite no livro que n�o � imune �s compuls�es. No caso dela, ocorreu uma "fixa��o nada saud�vel" com livros de erotismo soft.
Lembke descreve que sua rotina come�ou a ser ocupada por romances gen�ricos de 50 Tons de Cinza em vez de socializar, cozinhar, dormir e dar aten��o � fam�lia — ela afirma que at� o intervalo entre uma consulta ou outra na cl�nica em Stanford tinha que ser usado para saciar a vontade.
Lembke diz que n�o foi f�cil fazer essas revela��es sobre si mesma.
"Na verdade foi um grande risco. Olha, eu sou professora em Stanford e m�dica. A expectativa sobre n�s � que nunca sejamos vulner�veis, n�o �? Mas eu conto tantas hist�rias reais dos meus pacientes, e eles deram permiss�o para isso [ningu�m � identificado]. Ent�o, se eles tiveram coragem o suficiente, eu poderia ter tamb�m."
Abrace o desconforto
A psiquiatra da Universidade Stanford acredita que a ideia de eliminar a dor a qualquer custo como paradigma trouxe desvantagens para a sociedade.
Lembke se refere tanto � fuga autom�tica de desconfortos como o t�dio e a monotonia quanto ao uso indiscriminado de medicamentos para combater a dor - algo que teve grande papel na crise dos opioides, que vitimou centenas de milhares de norte-americanos nas �ltimas d�cadas.
"Evitar a dor nos priva de experi�ncias que constroem os calos mentais para encarar desafios futuros. E eu falo de dor de uma forma ampla: emocional, espiritual, todos os diferentes tipos de sofrimento f�sico e psicol�gico."
A retomada do contato com o desconforto � exemplificada no livro por algo frugal: a terapia do banho gelado (e, de fato, pesquisas sugerem benef�cios da �gua fria n�o s� para melhorar a circula��o, mas tamb�m para aliviar depress�o).

"Junto com o acesso crescente a medicamentos e a comportamentos que nos apartam das experi�ncias tradicionais de dor, n�s desenvolvemos uma narrativa em que a dor deve ser evitada em n�s ou nos nossos filhos", afirma.
"Como resultado, pais se tornaram temerosos de deixar que seus filhos experimentem qualquer tipo de sofrimento, com medo de que eles acabem no div� ou com algum dist�rbio psicol�gico. Mas o fato � que proteger as crian�as de experi�ncias desafiadoras � priv�-las da oportunidade de construir uma fortaleza mental que elas necessitam no mundo."
Mas uma pergunta paira: n�o ser� justamente a vida moderna, com toda a sua press�o e desafios, que imp�e peso sobre todos que a habitam e dessa forma precisamos de algo para sanar essas dores?
Ela responde: "Eu concordo que n�s vivemos em um mundo muito estranho e em uma �poca muito estranha, e que a vida em tempos modernos � dif�cil por raz�es paradoxais".
"Acho que medicamentos psicotr�picos t�m representado uma maneira para nos adaptar a um mundo para o qual a nossa evolu��o ainda n�o chegou. Mas, em geral, eu acho que esses rem�dios s�o prescritos de forma excessiva, sem o reconhecimento de seus lados negativos, incluindo o potencial para se viciar ou nos privar de sentir as intensas emo��es que nos tornam humanos."
"A sugest�o no livro � que, em vez de usar medicamentos para nos adaptar a esse novo mundo � tentar mudar as nossas experi�ncias nele."
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