
“� muito comum recebermos pacientes com manifesta��es extrapulmonares, como cefaleia persistente, perda de olfato, altera��o de paladar, dores musculares e nas articula��es, al�m de neuropatia perif�rica e complica��es infecciosas”, atesta a m�dica Adele Vasconcelos, coordenadora da Emerg�ncia do Hospital Santa Marta, em Bras�lia. “No come�o, a gente achava que era uma coisa pulmonar. Mas � uma doen�a sist�mica”, diz o infectologista Jorge Casseb, professor e pesquisador do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP).
Para o v�rus, poder se espalhar por v�rios tipos de c�lulas � uma vantagem evolutiva, explica o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fl�vio Guimar�es da Fonseca. “Ele fica menos especialista, e isso amplia a capacidade de infectar diferentes tipos celulares”, afirma.
Desde os primeiros estudos sobre o Sars-CoV-2, o micro-organismo j� foi detectado, al�m do sistema respirat�rio, em tecidos do cora��o, rins, f�gado, intestino, est�mago e c�rebro. Embora n�o haja relatos de ter sido encontrado no p�ncreas, foram observados casos de pancreatite aguda em alguns pacientes, e suspeita-se de que o v�rus tamb�m possa desencadear diabetes, doen�a intimamente associada a esse �rg�o.
Desde os primeiros estudos sobre o Sars-CoV-2, o micro-organismo j� foi detectado, al�m do sistema respirat�rio, em tecidos do cora��o, rins, f�gado, intestino, est�mago e c�rebro. Embora n�o haja relatos de ter sido encontrado no p�ncreas, foram observados casos de pancreatite aguda em alguns pacientes, e suspeita-se de que o v�rus tamb�m possa desencadear diabetes, doen�a intimamente associada a esse �rg�o.
Receptor espalhado
O sucesso infeccioso do Sars-CoV-2 pode ser explicado pela enzima conversora da angiotensina 2 (ACE2), receptor presente por todo o organismo. Como um mecanismo de chave e fechadura, a prote�na spike do coronav�rus se liga ao ACE2 para conseguir entrar nas c�lulas. Da� a facilidade de infectar diversos tecidos e �rg�os.
No fim de agosto, um estudo de pesquisadores da Universidade de S�o Paulo (USP) publicado na revista The Lancet mostrou, pela primeira vez, a presen�a no Sars-CoV-2 no tecido card�aco. O artigo � o relato do caso de uma crian�a de 11 anos com s�ndrome inflamat�ria multissist�mica relacionada � COVID-19. Ela desenvolveu insufici�ncia card�aca e morreu no dia seguinte � interna��o. A aut�psia revelou o v�rus nos pulm�es e no cora��o da v�tima. “Apesar da evidente inflama��o sist�mica e da progress�o final para fal�ncia de m�ltiplos �rg�os, os achados cl�nicos, ecocardiogr�ficos e laboratoriais indicaram fortemente que a insufici�ncia card�aca foi o principal determinante do desfecho fatal”, escreveram os autores.
De acordo com o estudo, a aut�psia tamb�m apontou miocardite, pericardite e endocardite, com inflama��o intensa e necrose de fibras musculares. Os pesquisadores notaram tamb�m que a infec��o das c�lulas que revestem o endoc�rdio pode fazer com que o v�rus se dissemine para outros �rg�os, pela corrente sangu�nea. Ainda n�o se sabe se os danos card�acos, detectados em outros pacientes mundo afora, s�o passageiros ou persistentes. “Al�m dos efeitos agudos, precisamos aprender mais sobre as implica��es de longo prazo do v�rus no cora��o”, observa Kirk U. Knowlton, do Instituto Cardiol�gico Intermoutain em Salt Lake City, nos EUA, que, recentemente, publicou um artigo baseado em descobertas de mais de 100 estudos sobre o tema.
Doen�as neurol�gicas
Logo no in�cio da pandemia, come�aram a surgir relatos de pacientes que perderam o olfato e o paladar, evidenciando que o v�rus tamb�m impacta o sistema nervoso central (SNC). Por�m, as manifesta��es n�o ficaram por a�. “S�ndrome de Guillain-Barr�, encefalomielite, neuropatias perif�ricas isoladas, AVC, altera��es funcionais e cognitivas”, enumera Augusto C�sar Penalva de Oliveira, pesquisador do Instituto de Infectologia Em�lio Ribas, de S�o Paulo. O m�dico est� � frente de um estudo que pretende avaliar, a longo prazo, os efeitos do Sars-CoV-2 no c�rebro e no SNC. Atualmente, h� 47 pacientes na pesquisa, mas a ideia � chegar a 100. Dos volunt�rios, dois desenvolveram parkinsonismo (sintomas da doen�a de Parkinson).
O pesquisador conta que todos os sete coronav�rus humanos s�o capazes de contaminar o SNC, embora a maioria n�o cause danos. Nas epidemias de Sars-CoV (2002/2003) e Mers (2012), os primos mais pr�ximos do Sars-CoV-2, por�m, foram detectadas doen�as neurol�gicas. A interrup��o das pesquisas p�s-surtos impede saber se os efeitos passaram ou se mantiveram a longo prazo. Uma dica de que os sintomas podem persistir, diz Oliveira, � o modelo experimental de rato utilizado no estudo de um tipo de coronav�rus causador de doen�a respirat�ria benigna. No animal, o v�rus causa encefalomielite, inflama��o do c�rebro e da medula espinal. A condi��o se mant�m at� o rato ser sacrificado, um ano depois da infec��o.
“A gente tem visto manifesta��es neurol�gicas tanto na fase aguda quanto mais tardiamente”, conta o infectologista. Uma paciente do estudo teve quadro respirat�rio leve e, dois meses depois, come�ou a apresentar problemas de mem�ria e no sistema motor. Passados tr�s meses da infec��o inicial, os m�dicos coletaram o l�quor — fluido que faz uma “limpeza” do c�rebro e circula pela medula espinhal. O Sars-CoV-2 estava l�. “Isso indica que h� uma persist�ncia do v�rus no sistema nervoso central. N�o sabemos o quanto de persist�ncia. Mas, pelo modelo de rato, a gente suspeita que pode ser muito prolongada.” Parte dos sitomas foi revertida .
Sem padr�o
Segundo Oliveira, o SNC pode ser afetado por mecanismos diversos. Tanto pela infec��o direta do v�rus, que entra no c�rebro pelo trajeto do nervo do bulbo olfat�rio, quanto pela corrente sangu�nea. Uma vez instalado, o micro-organismo pode provocar diretamente os danos, mas h� outros meios — alguns desconhecidos — pelos quais a COVID-19 afeta o c�rebro, como a resposta imunol�gica exagerada (a tempestade de citocinas) e trombos causados por co�gulos.
Uma preocupa��o do infectologista do Em�lio Ribas � que n�o h� um padr�o claro da infec��o no SNC. “As altera��es s�o muito plurais. Tem paciente que vai apresentar fen�menos inflamat�rios cl�ssicos, outros, n�o. Alguns t�m altera��o na resson�ncia, no l�quor; em outros, a resson�ncia � normal, o l�quor � normal, mas eles t�m os sintomas. O mecanismo pelo qual o v�rus agride o sistema nervoso central n�o � claro. Possivelmente, s�o altera��es microestruturais. Ent�o, para estud�-las, temos de i�ar o anzol um pouco mais profundamente”, observa.
Tr�s perguntas para Fl�vio Guimar�es da Fonseca, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia e pesquisador do CT Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
� normal um coronav�rus atingir tantos �rg�os e sistemas?
N�o, n�o � normal. Esse coronav�rus tem uma particularidade. Tudo tem a ver com o tipo de receptor que ele usa para infectar uma c�lula, que � o ACE2. Esse � um receptor muito distribu�do em v�rios tecidos diferentes, e, se o v�rus tem acesso a esses v�rios tecidos, acaba tendo a possibilidade de infect�-los. E ele parece capaz de infectar mesmo c�lulas que n�o t�m o ACE2. Saiu um estudo pr�-cl�nico da Unicamp mostrando que ele � capaz de infectar at� linf�citos. � uma surpresa atr�s da outra. Em princ�pio, eu diria que isso � completamente diferente do comportamento de outros v�rus respirat�rios. H� ainda o fato de que um v�rus que causa uma desregula��o inflamat�ria intensa. Ent�o, �s vezes voc� v� acometimento card�aco, renal, at� na aus�ncia do v�rus. Um subproduto da superinflama��o que acontece no indiv�duo infectado grave.
Ent�o, as sequelas n�o estariam ligadas diretamente ao v�rus, mas � inflama��o causada pela resposta do sistema imunol�gico?
As duas coisas j� foram vistas. O v�rus � capaz de infectar c�lulas al�m daquelas do sistema respirat�rio, desde que tenham esse receptor ACE2, e tamb�m pode causar a fal�ncia de outros �rg�os por uma desregula��o inflamat�ria. � o que acontece, por exemplo, na dengue grave. Existem outros v�rus que causam fen�menos semelhantes, a chamada tempestade de citocinas, uma hiperinflama��o do organismo. A presen�a desses m�ltiplos fatores inflamat�rios acaba causando sequelas em outros �rg�os, al�m dos afetados diretamente pelo v�rus.
Apesar de ser uma doen�a recente, � poss�vel imaginar que, em alguns casos, a COVID-19 se torne cr�nica?
Eu n�o diria cr�nica, mas uma infec��o prolongada. J� existem alguns ind�cios de que algumas pessoas podem ficar infectadas por um per�odo muito longo, acima de 50 dias. A gente ainda n�o entende o mecanismo que gera essa infec��o prolongada, como que o v�rus se mant�m sem ser eliminado pela resposta imune em pessoas saud�veis do ponto de vista imunol�gico. Mas existe essa possibilidade. � diferente de uma doen�a cr�nica, permanente. A gente ainda n�o tem ind�cios de cronifica��o com o Sars-CoV-2, tem de infec��o prolongada.