
O buraco apareceu de repente: explodiu, deixando uma marca irregular na paisagem.
Em torno da borda da cratera, h� uma mistura confusa e cinza de terra, gelo e torr�es de permafrost. As ra�zes das plantas — rec�m-expostas ao redor da borda — mostram sinais de queimadura. D� uma ideia da viol�ncia com que se materializou esse buraco no meio do �rtico siberiano.
No ar, a sujeira rec�m-exposta se destaca contra a tundra verde e os lagos escuros ao redor. As camadas de terra e rocha expostas dentro do buraco cil�ndrico s�o quase pretas. Quando os cientistas chegam ao local, uma po�a de �gua j� est� se formando no fundo.Entre eles est� Evgeny Chuvilin, ge�logo do Instituto de Ci�ncia e Tecnologia Skolkovo, com sede em Moscou, na R�ssia. Ele voou para este canto remoto da Pen�nsula Yamal, no noroeste da Sib�ria, para dar uma olhada na cratera. Este buraco de 50 metros de profundidade pode conter pe�as-chave de um quebra-cabe�a que o tem incomodado nos �ltimos seis anos, desde que o primeiro desses misteriosos buracos foi descoberto em outro lugar na mesma pen�nsula.
O primeiro buraco tinha cerca de 20 metros de largura e 50 metros de profundidade. Foi descoberto em 2014 por pilotos de helic�ptero que voavam a 42 km do reservat�rio de petr�leo Bovanenkovo, %u200B%u200Bna Pen�nsula Yamal. Os cientistas que o visitaram — incluindo Mariana Leibman, cientista-chefe do Earth Cryosphere Institute, que estuda o permafrost na Sib�ria h� mais de 40 anos — o descreveram como algo inteiramente novo no permafrost. A an�lise de imagens de sat�lite revelou posteriormente que a cratera — agora conhecida como GEC-1 — se formou entre 9 de outubro e 1º de novembro de 2013.
A cratera mais recente foi identificada em agosto de 2020 por uma equipe de TV que passava de helic�ptero pelo local com uma equipe de cientistas da Academia Russa de Ci�ncias durante uma expedi��o com autoridades locais. Ela eleva para 17 o n�mero total de crateras confirmadas descobertas em Yamal e na pen�nsula vizinha de Gydan.
Mas o que exatamente est� causando o surgimento desses enormes buracos no permafrost ainda � um mist�rio. Tamb�m n�o se sabe exatamente o que eles significam para o futuro do �rtico e para as pessoas que vivem e trabalham l�. Para muitos dos pesquisadores que estudam o �rtico, eles s�o um sinal inquietante de que essa paisagem fria e em grande parte despovoada est� passando por mudan�as radicais.
Pistas no gelo
Pesquisas recentes, entretanto, est�o come�ando a fornecer algumas pistas sobre o que pode estar acontecendo. O que j� se sabe � que esses buracos n�o est�o se formando devido a algum deslocamento gradual de terra conforme o permafrost derrete e se move sob a superf�cie. As crateras est�o surgindo a partir de explos�es.
"� medida que a explos�o ocorre, blocos de solo e gelo s�o lan�ados a centenas de metros do epicentro", diz Chuvilin. "Estamos diante de uma for�a colossal, criada por alt�ssima press�o. O porqu� de ela ser t�o alta ainda � um mist�rio. "
Chuvilin faz parte de um grupo de cientistas russos que colaboram com colegas de todo o mundo. Eles t�m visitado essas crateras para coletar amostras e medi��es na esperan�a de entender mais sobre o que est� acontecendo sob a tundra.
Alguns cientistas compararam as crateras a criovulc�es — vulc�es que expelem gelo em vez de lava. Acredita-se que esses tipos de vulc�es existam em algumas das partes distantes do nosso sistema solar: em Plut�o, na lua de Saturno Tit� e no planeta an�o Ceres.
Por�m, � medida que mais crateras �rticas foram estudadas em v�rios est�gios de sua evolu��o, elas se tornaram conhecidas como "crateras de emiss�o de g�s". O nome d� uma pista de como elas se formam.
"A an�lise baseada em imagens de sat�lite mostra que uma explos�o cria um buraco gigante no lugar de um tipo de colina chamada pingo", diz Chuvilin. Pingos s�o colinas em forma de c�pula que se formam quando uma camada de solo congelado � empurrada para cima pela �gua, que conseguiu fluir por baixo dela e come�ou a congelar.
Conforme a �gua congela, ela se expande para criar um monte. Tamb�m conhecidos na R�ssia pelo nome local de "bulgunnyakhs", eles tendem a subir e descer com as esta��es.
Alguns pingos encontrados no Canad� t�m at� 1,2 mil anos. Na maior parte do �rtico, no entanto, esses montes tendem a desabar sobre si mesmos em vez de explodir.
� claro que os montes no noroeste da Sib�ria est�o se comportando de maneira diferente. Eles incham "muito r�pido, subindo v�rios metros" antes de explodirem de repente, explica Chuvilin. E em vez de �gua gelada, a eleva��o parece ser causada por um ac�mulo de g�s sob o solo.
"Pingos levam d�cadas para se formar e duram muito tempo", diz Sue Natali, ecologista do �rtico que estuda o permafrost e diretora do programa do �rtico no Woodwell Climate Research Center em Massachusetts. "Esses montes cheios de g�s se formam em quest�o de anos."
Um estudo de an�is de �rvores em salgueiros encontrados entre os destro�os jogados pela explos�o da primeira cratera descoberta sugere que as plantas estavam sob estresse desde os anos 1940. Os pesquisadores dizem que isso pode ter sido devido � deforma��o do solo.
"No entanto, h� evid�ncias de que o ciclo de vida das crateras de emiss�o de g�s pode ser muito curto, variando de 3 a 5 anos", diz Alexander Kizyakov, especialista da universidade Lomonosov Moscow, na R�ssia. Uma cratera que se formou no in�cio do ver�o de 2017, conhecida como SeYkhGEC, por exemplo, come�ou a deformar o solo em 2015, segundo imagens de sat�lite.

Alguma coisa no permafrost em Yamal e Gydan torna a regi�o propensa a ter esses montes explodindo. "Existem alguns tra�os caracter�sticos da paisagem ali", diz Natali. "� uma �rea onde existe uma camada muito espessa de gelo, chamada de gelo tabular, que forma uma capa sobre o permafrost. Tamb�m existem �reas de solo descongelado cercadas por permafrost — uma esp�cie de sandu�che de permafrost — e dep�sitos muito profundos de g�s e petr�leo."
Uma cratera recentemente examinada por Chuvilin — um buraco de 20 metros de largura conhecido como cratera Erkuta — parece ter se formado no local de um lago seco.
Quando o lago desapareceu, deixou para tr�s um peda�o de solo descongelado conhecido como talik, onde o g�s se acumulou.
Mas Chauvilin diz que n�o est� claro de onde vem o g�s. "A quest�o principal na pesquisa de crateras � identificar a fonte de g�s que se acumula sob a superf�cie do permafrost", diz Chuvilin.
"� intrigante que possa estar acontecendo um processo geoqu�mico novo ou at� ent�o desconhecido que nunca ter�amos imaginado", diz Natali, que faz parte dos esfor�os para retratar a evolu��o desses montes e como o g�s chega l�.
Os pesquisadores corajosos o suficiente para descer de rapel nas crateras encontraram n�veis elevados de metano na �gua acumulando no fundo, sugerindo que o g�s pode estar borbulhando de baixo para cima.
Uma das principais teorias � que esses dep�sitos profundos de g�s metano sob o permafrost encontram um caminho at� a 'bolsa' formada por solo descongelado abaixo da calota de gelo.
Outra ideia � que altos n�veis de di�xido de carbono dissolvido na �gua nesses bols�es descongelados come�am a borbulhar quando a �gua come�a a congelar, e a �gua restante n�o consegue reter o g�s dissolvido.
Uma fonte alternativa de metano e di�xido de carbono poderia ser microorganismos prosperando no bols�o descongelado de solo. Eles teriam quebrado o material org�nico e liberado os gases, diz Chuvilin. A an�lise do metano em uma cratera pareceu confirmar isso, mas a atividade dos micr�bios produtores de metano, no entanto, foi considerada baixa nos lagos no fundo das crateras recentemente formadas — mesmo para as condi��es frias onde s�o encontrados.

Mas o metano tamb�m pode estar vazando do pr�prio gelo. Os gases podem ficar presos dentro dos cristais de �gua no permafrost para formar um estranho material congelado conhecido como hidrato de g�s. � medida que derrete, o g�s � liberado.
"Pensa-se que pode haver diferentes mecanismos de forma��o que dificilmente podem ser descritos por um �nico modelo", diz Chuvilin. "Muito depende do meio ambiente e da paisagem." Pelo menos uma cratera foi encontrada no leito de um rio, ele aponta.
Independentemente da fonte, acredita-se que o g�s se acumule na bolsa descongelada do solo, empurrando a s�lida calota de gelo tabular para cima por 5 ou 6 metros at� que se rompa.
Quando finalmente estouram, lama e gelo acima do bols�o preenchido com g�s, junto com muito do material na pr�pria se��o descongelada, s�o arremessados %u200B%u200Bpara fora a at� 300 metros de dist�ncia. A for�a � t�o grande que blocos de terra de at� um metro de di�metro s�o lan�ados para fora, deixando uma cratera com um parapeito elevado, uma boca larga e um orif�cio cil�ndrico mais estreito — considerado uma bolsa descongelada — que fica para tr�s.
Os pastores de renas locais relataram ter visto chamas e fuma�a ap�s a explos�o de uma cratera em junho de 2017 ao longo das margens do rio Myudriyakha. Os alde�es nas proximidades de Seyakha — um assentamento a cerca de 33 km ao sul da cratera — disseram que o g�s continuou queimando por cerca de 90 minutos e as chamas atingiram metros de altura.
Nesta regi�o do mundo escassamente povoada, o fato de ocorrer uma cratera t�o perto de um assentamento tem causado preocupa��o. A regi�o tamb�m est� repleta de oleodutos para a infraestrutura de petr�leo e g�s.
"Ainda n�o sabemos se isso � algo que pode representar um risco para as pessoas no �rtico", diz Natali. Ela e seus colegas t�m tentado responder a essa pergunta, procurando por sinais de outras crateras em imagens de sat�lite de alta resolu��o.
"Assim que encontramos algo que se parece com uma cratera, estamos usando imagens de s�rie temporal de alta resolu��o [fotos de sat�lite do mesmo local tiradas em momentos diferentes] para tentar descobrir quando elas se formaram", diz ela.
Seu trabalho sugere que existem mais crateras na regi�o que se acreditava anteriormente. "At� agora, confirmamos duas novas localiza��es de crateras. Considerando que em 2013 n�o sab�amos nada sobre elas, parece muito prov�vel que haja mais por a�. "
A equipe de Natali tamb�m encontrou mais 17 potenciais crateras no in�cio deste ano, mas a an�lise de imagens de alta resolu��o os levou a concluir que podem ser outro tipo de forma��o, e n�o as crateras de emiss�o de g�s. "� dif�cil validar totalmente os dados at� estarmos no local", acrescenta Natali.
Ela e sua equipe esperam reunir dados suficientes para automatizar o processo de pesquisa. O objetivo � criar um algoritmo que possa prever crateras antes que se elas formem, procurando por %u200B%u200Bmontes de emiss�o de g�s em imagens de sat�lite.
Desvendar exatamente o qu�o comuns essas crateras s�o atualmente � um processo lento. Ap�s seu nascimento violento, a maioria parece desaparecer na paisagem quase t�o rapidamente quanto surgiu.
O vazio deixado pela explos�o perto de Seyakha — que media 70 metros de largura em alguns lugares e mais de 50 metros de profundidade — foi inundado de �gua em apenas quatro dias devido � sua proximidade com o rio.
Outras crateras demoram mais para inundar, mas em cerca de no m�ximo um ou dois anos as bordas do buraco escuro sofrem eros�o e se enchem de �gua. Se tornam quase indistingu�veis dos milhares de outros pequenos lagos redondos que pontilham a paisagem. Exatamente quantos desses lagos s�o as resqu�cios das crateras de emiss�o de g�s ainda n�o est� claro.
"� prov�vel que alguns dos lagos no permafrost sejam crateras de emiss�o de g�s inundadas", diz Kizyakov. "� muito cedo para dizer o qu�o comum isso � como um mecanismo de forma��o de lagos."
Alguns pesquisadores tentaram identificar antigas crateras de emiss�o de g�s medindo as subst�ncias dissolvidas em lagos, mas n�o conseguiram identificar nenhum padr�o.
Mudan�as clim�ticas
Descobrir o qu�o comuns esses eventos s�o n�o � apenas uma quest�o de curiosidade. H� uma preocupa��o crescente de que o aparecimento das crateras no noroeste da Sib�ria possa estar relacionado a mudan�as mais amplas que ocorrem no �rtico devido �s mudan�as clim�ticas.
As temperaturas da superf�cie do ar no �rtico est�o esquentando a uma taxa duas vezes maior que a m�dia global, o que est� aumentando o degelo do permafrost durante os meses de ver�o.
Isso, por si s�, est� transformando a paisagem do �rtico, levando a deslizamentos de terra conhecidos como decl�nios de degelo.
"Em nenhum outro lugar do planeta as mudan�as clim�ticas est�o causando uma mudan�a na estrutura f�sica do solo", diz Natali.
Enormes quantidades de carbono est�o presas dentro do permafrost �rtico — cerca de duas vezes mais do que a quantidade atualmente na atmosfera. Esse carbono est� na forma de restos congelados de plantas e outros materiais org�nicos, junto com o metano que ficou preso dentro dos cristais de gelo — os hidratos de g�s que Chuvilin mencionou anteriormente.
� medida que o solo descongela, ele permite que os microorganismos quebrem a mat�ria org�nica, liberando metano e di�xido de carbono como subprodutos, enquanto o metano preso no gelo tamb�m se solta.
Esse vazamento de metano do permafrost tem o potencial de acelerar o aquecimento global, j� que o g�s � um potente causador do efeito estufa Isso cria um c�rculo vicioso que pode causar ainda mais derretimento.
Mas em Yamal um processo ainda mais complexo acontece. Se os cientistas descobrirem que os dep�sitos de metano aprisionados no subsolo pelo permafrost est�o come�ando a se infiltrar pelas camadas normalmente impenetr�veis %u200B%u200Bdo permafrost, pode ser um sinal de que a calota de gelo congelada sobre a tundra est� se tornando mais perme�vel. Isso poderia introduzir novos n�veis de incerteza sobre como as mudan�as no �rtico impactar�o o aquecimento global.
"As crateras s�o um indicador muito chocante do que est� acontecendo no �rtico de forma mais ampla", diz Natali. "Quando voc� olha para as mudan�as que est�o acontecendo nesta paisagem, algumas est�o ocorrendo gradualmente e outras de forma abrupta."
Embora o mist�rio das crateras de Yamal ainda n�o esteja completamente resolvido, o que foi desvendado at� agora sugere que talvez dev�ssemos observ�-las cuidadosamente no futuro.
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.
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