
Prestes a completar 32 anos, a biom�dica Jaqueline Goes de Jesus ainda n�o se sente 100% confort�vel com os holofotes que iluminaram sua carreira nos �ltimos meses.
Graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Sa�de P�blica e doutora em patologia humana e experimental pela Universidade Federal da Bahia, a pesquisadora integra o time de especialistas que fez o sequenciamento gen�mico do primeiro caso de covid-19 detectado no Brasil em apenas 48 horas, um recorde que s� foi igualado pelo Instituto Pasteur, na Fran�a.
O projeto, que ganhou destaque nacional e internacional, contou com uma parceria entre o Instituto de Medicina Tropical da Universidade de S�o Paulo (USP) e o Instituto Adolfo Lutz, tamb�m na capital paulista.
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Dali em diante, a vida de Goes de Jesus virou de cabe�a pra baixo: ela foi homenageada na Assembleia Legislativa da Bahia, se tornou personagem da Turma da M�nica e, mais recentemente, virou at� boneca Barbie, numa linha produzida para celebrar mulheres que estiveram na linha de frente do combate � covid-19.
"Tudo isso ainda � muito estranho. Eu sou apenas uma cientista, que fa�o parte de um grupo de pesquisa, e �s vezes sinto que as homenagens ficam muito direcionadas s� para mim", diz a biom�dica.
Mas os colegas de laborat�rio, como a cientista Ester Sabino, a convenceram sobre a import�ncia de assumir esse papel de relev�ncia.
"Com o tempo, percebi que represento outras quest�es que v�o al�m da ci�ncia. Eu sou mulher, nordestina, negra e ocupo uma posi��o de destaque que dificilmente vemos no Brasil", analisa.
Goes de Jesus espera que seu trabalho possa servir de exemplo e inspira��o para as futuras gera��es de pesquisadores brasileiros.
"Eu n�o tive refer�ncias cient�ficas na minha inf�ncia. E jamais pensei que, fazendo gradua��o em biomedicina, poderia ser cientista", conta.
"Isso � muito grave, porque n�o damos oportunidades para as pessoas serem aquilo que elas desejam de verdade", completa.
A biom�dica tamb�m chama aten��o para o pouco investimento em ci�ncia no Brasil e como isso impactou n�o apenas a condu��o da pandemia atual, mas estimula a ida de jovens pesquisadores para o exterior — ela pr�pria foi recentemente para o Reino Unido, onde continua a fazer estudos com v�rus.
"Para fazer ci�ncia no Brasil, a gente tem que se esfor�ar quatro vezes mais", lamenta.
Nessa entrevista exclusiva � BBC News Brasil, Goes de Jesus ainda falou sobre o est�gio da pandemia de covid-19 no pa�s e mostrou preocupa��o com o relaxamento nas medidas restritivas em v�rias cidades.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Antes de 2020, a senhora j� havia trabalhado e fazia pesquisas com o HIV e com os agentes infecciosos por tr�s de dengue e zika. O que mudou em seu trabalho com a chegada do Sars-CoV-2?
Jaqueline Goes de Jesus - A mudan�a foi muito mais no quesito de reconhecimento do nosso trabalho do que no trabalho em si. � �bvio que a demanda aumentou muito.
O Brasil, apesar de n�o ter ficado entre os primeiros no n�mero de genomas do coronav�rus sequenciados, sem d�vidas foi o pa�s que mais trouxe avan�os na Am�rica Latina. Isso tanto pelo trabalho do nosso grupo quanto de outras equipes que trabalham com isso. A gente tamb�m tem a FioCruz e os laborat�rios de sa�de p�blica fazendo essa vigil�ncia gen�mica.
Eu diria que n�s tivemos um reconhecimento maior no �mbito social e pol�tico. E talvez isso veio � tona para a popula��o, que pode finalmente conhecer o trabalho de um cientista. Isso abre as portas para uma s�rie de outras discuss�es que eram e s�o extremamente necess�rias, no sentido do reconhecimento da ci�ncia.

BBC News Brasil - Numa perspectiva mais geral, a pandemia exigiu respostas r�pidas para problemas muito complexos. Como a senhora v� a transforma��o da ci�ncia durante esses �ltimos meses?
Goes de Jesus - A pandemia trouxe um senso coletivo muito maior para a �rea da ci�ncia. Eu costumo dizer que na ci�ncia a gente tem como �nico produto, ou um dos principais, a publica��o cient�fica. � ali que voc� resume seu projeto, seu trabalho e o desenvolvimento de uma linha de pesquisa.
Durante a pandemia, houve um compartilhamento maior desses resultados, com uma acelera��o na quantidade de publica��es e do �ndice de produtividade dos pesquisadores. Em grande parte dos pa�ses, os grupos conseguiram colaborar mais, mesmo que de maneira informal. O fato de muitas pesquisas sobre o coronav�rus serem desenvolvidas e publicadas faz com que exista uma acelera��o do conhecimento a respeito do v�rus e da doen�a. E isso contribui, j� que a gente utiliza esses trabalhos para basear as a��es necess�rias para conter o problema.
Eu ainda acho que n�s precisamos avan�ar muito mais nesse sentido. � urgente trazer novos conhecimentos. E, muitas vezes, essa urg�ncia n�o � compat�vel com o tempo que uma revista leva para publicar o artigo.
Eu passei por essa situa��o quando n�s fomos divulgar o sequenciamento dos primeiros casos de covid-19 no Brasil. Naquele momento, essa informa��o era muito importante e n�o pod�amos esperar a publica��o cient�fica completa para revelar esses dados.
Mas, posteriormente, n�s tamb�m tivemos uma dificuldade enorme em publicar o trabalho numa grande revista, com um alto fator de impacto, porque aquela informa��o j� n�o era mais uma novidade, n�o havia uma exclusividade nela. Isso atrapalha um pouco a vida do cientista e talvez precisemos pensar nessa velocidade com que os conhecimentos s�o gerados e divulgados.
BBC News Brasil - Mas a senhora acha que � poss�vel aliar o melhor dos dois mundos? Ou seja, manter o processo rigoroso da publica��o cient�fica, com revis�o dos dados por especialistas independentes, e mesmo assim acelerar esse processo?
Goes de Jesus - Sim. Sou uma jovem pesquisadora e tenho recebido muitos trabalhos para fazer essa revis�o. Quando n�s abrimos esse leque para novos cientistas, que nunca tinham sido convidados para realizar esse trabalho, aumentamos o n�mero de revisores e conseguimos ampliar a velocidade do processo.
A pandemia trouxe um novo contexto e � necess�rio que se revejam essas quest�es. Muitos trabalhos acabam esperando meses e meses para serem rejeitados ou publicados. O pesquisador perde todo esse tempo para a revista dar um parecer. Talvez a pandemia traga isso de legado e exponha a necessidade de abrir o universo da revis�o por pares e trazer um pouco mais de celeridade ao processo.
BBC News Brasil - C omo foi o trabalho de receber a amostra do primeiro caso de covid-19 no Brasil e fazer o sequenciamento gen�tico em poucas horas?
Goes de Jesus - N�s realmente fizemos o sequenciamento num tempo muito curto, mas isso n�o aconteceu porque a nossa equipe era hiper, master, ultra competente. N�o que todos os pesquisadores n�o fossem competentes, claro, mas fazer tudo em 48 horas refletiu, na verdade, o processo de prepara��o que fizemos para que isso fosse poss�vel.
N�s j� t�nhamos montado toda a estrutura para que, quando o primeiro caso fosse confirmado, n�s j� tiv�ssemos os equipamentos e os reagentes prontos no laborat�rio. Ou seja, as 48 horas refletem, na verdade, dois meses de prepara��o e toda uma cadeia de trabalho e treinamento.
Eu particularmente j� fazia sequenciamentos desde 2016, com o v�rus zika. Meus colegas de laborat�rio tamb�m j� tinham essa experi�ncia. E a gente manteve a parceria com o Laborat�rio Estrat�gico do Instituto Adolfo Lutz, por conta de um projeto anterior que eu desenvolvia com dengue.
N�s estreitamos os la�os e, a partir da�, surgiu a oportunidade de fazer o genoma do Sars-CoV-2. Ent�o a gente j� tinha se organizado antes, junto com o pessoal do Adolfo Lutz, e sab�amos que a possibilidade de o primeiro caso ser detectado em S�o Paulo era grande. Quando isso efetivamente aconteceu, colocamos a m�o na massa e realizamos todo o processo laboratorial.
Contamos tamb�m com o apoio dos epidemiologistas e bioinformatas do Reino Unido. Temos um contato muito pr�ximo com eles e todo esse processo de montagem do genoma e publica��o aconteceu em conjunto. Meu rostinho ficou conhecido por uma quest�o de facilidade de comunica��o, mas existe uma equipe muito grande por tr�s de tudo.
Com o sequenciamento dos primeiros casos e a import�ncia disso para a sa�de p�blica, veio a necessidade de fazer a vigil�ncia gen�mica, que � o monitoramento dos novos casos, para entender se h� a introdu��o ou a emerg�ncia de novas variantes, como o v�rus est� se dispersando, quais as medidas tomadas e como fazer o controle da transmiss�o viral.

BBC News Brasil - Esses primeiros casos s�o simb�licos e, como a senhora relatou, eles mostram esse preparo e organiza��o de toda a equipe. Mas como o trabalho de voc�s se desenvolveu a partir dali?
Goes de Jesus - Os primeiros casos foram feitos em parceria com o Instituto Adolfo Lutz. Depois desse primeiro momento, dividimos o grupo e parte do laborat�rio continuou com o sequenciamento gen�tico, inclusive implementando novas tecnologias com capacidade de processamento maior.
Enquanto isso, o grupo da Dra. Ester Sabino, do qual eu, a Ingra Morales, a Fl�via Salles e a �rika Manuli fazemos parte, deu continuidade aos casos que estavam chegando a pedido da Secretaria de Laborat�rios P�blicos do Minist�rio da Sa�de, que naquela �poca era coordenada pelo Dr. Julio Croda.
Ent�o a gente tinha essa demanda espec�fica. O Instituto Adolfo Lutz ficou com a demanda estadual e n�s, no Instituto de Medicina Tropical da USP, continuamos a fazer o sequenciamento gen�tico para tentar trazer o m�ximo de informa��es. E foi assim que conseguimos publicar o primeiro artigo de grande porte, na revista Science em julho do ano passado. Ali mostramos a gera��o de quase 500 novos genomas, analisados entre mar�o e junho de 2020.
Conseguimos medir tamb�m o impacto das v�rias medidas que haviam sido tomadas pelo Brasil, ou pelos diferentes Estados. At� porque a gente n�o teve uma a��o unificada para a implementa��o das medidas n�o-farmacol�gicas de mitiga��o da pandemia. E as medidas adotadas em alguns lugares estavam tendo impacto significativo na transmiss�o do coronav�rus em diferentes centros.
BBC News Brasil - O Brasil vive um problema de baixo investimento em ci�ncia, com cortes significativos nas verbas nas �ltimas d�cadas. A senhora acredita que a hist�ria da pandemia poderia ter sido diferente no pa�s se tiv�ssemos mais investimento na pesquisa e no desenvolvimento?
Goes de Jesus - Com certeza. Acho que temos uma quest�o ideol�gica que envolve o investimento em ci�ncia. Isso acontece em qualquer pa�s, e no Brasil n�o � diferente. Quando existe um alinhamento governamental que entende que ci�ncia � extremamente importante e faz investimentos nela, a gente j� tem o primeiro passo.
Se o governo investe na ci�ncia, a probabilidade de ele seguir as orienta��es do que a ci�ncia traz como resposta � muito maior. E aqui n�o estou falando s� da sa�de, mas tamb�m da �rea econ�mica, social, de infraestrutura…
E o pa�s consegue ter esse retorno do investimento, porque de fato temos um aumento do conhecimento. Nesses casos, o governo entende aqueles resultados obtidos atrav�s da pesquisa e implementa isso na forma de pol�ticas p�blicas e de novas diretrizes, baseadas justamente em ci�ncia.
Se o Brasil tivesse investido muito em ci�ncia, ou pelo menos um pouquinho mais, � prov�vel que ter�amos um maior alinhamento governamental. E aqui n�o estou falando apenas da esfera federal, mas tamb�m de Estados e munic�pios.
Esse maior investimento faria com que tiv�ssemos um retorno cient�fico, no sentido de entender melhor o que est� acontecendo ou de fazer pesquisas para encontrar as respostas. A partir desse novo conhecimento, poderiam ser implementadas medidas para reduzir a transmiss�o do v�rus e, na cadeia dos resultados, a gente teria obviamente um impacto muito menor da pandemia na sa�de dos brasileiros.
Eu sou uma defensora nata da ci�ncia, n�o poderia ser diferente. Mas existe um racioc�nio l�gico por tr�s disso. A gente sabe que os pa�ses mais desenvolvidos s�o aqueles que apostam e investem na ci�ncia.
E o Brasil ainda n�o conseguiu encontrar esse casamento entre ci�ncia e a��es governamentais, seja do ponto de vista de investimento ou de entender aquelas informa��es e como implement�-las por meio de diretrizes, campanhas e a��es.
BBC News Brasil - Um fen�meno relacionado a esse baixo investimento em ci�ncia � a chamada "fuga de c�rebros", em que os cientistas brasileiros saem do pa�s e v�o para a Europa ou os Estados Unidos. A senhora, inclusive, se mudou recentemente para o Reino Unido. � poss�vel ser cientista no Brasil ou, para continuar na �rea, � preciso ir para o exterior?
Goes de Jesus - A fuga de c�rebros �, de fato, um fen�meno muito forte. Grande parte dos pesquisadores que eu conhe�o e que tiveram oportunidade de estudar fora, em pa�ses onde existe um investimento maior em ci�ncia, fizeram isso. Para fazer ci�ncia no Brasil, a gente tem que se esfor�ar quatro vezes mais.
E a�, quando a gente sai do Brasil, seja para uma temporada ou para realmente estabelecer resid�ncia, percebemos a diferen�a na nossa produtividade. Produzimos muito mais quando estamos fora por conta do investimento em recursos.
� poss�vel, sim, fazer ci�ncia no Brasil. Eu fa�o isso h� dez anos, desde a inicia��o cient�fica. Mas n�o � f�cil, e a gente tem que driblar uma s�rie de dificuldades. Os reagentes n�o chegam no prazo esperado, n�o existe legisla��o, n�o temos um fluxo de log�stica, e tudo isso impede que o pesquisador tenha uma efici�ncia maior em seu trabalho.
Um indiv�duo que fez mestrado e doutorado passou por uma gradua��o e ainda dedicou seis anos de sua vida para chegar num n�vel de pesquisador, onde ele consegue ter os pr�prios recursos para trabalhar. � um investimento muito caro, de tempo e de dinheiro.
E a�, quando temos esses doutores, que poderiam trazer muito resultado e conhecimento para nosso pa�s, eles n�o s�o remunerados da forma correta e n�o t�m oportunidades nas universidades. O Brasil ainda abarca a ci�ncia s� no �mbito das universidades p�blicas estaduais e federais. N�s temos pouqu�ssimos centros privados que fazem pesquisa.
Tudo isso contribui para que o indiv�duo procure oportunidades fora do pa�s, at� porque isso n�o falta. Eu tenho um alerta configurado no meu e-mail e, todos os dias, eu recebo tr�s, quatro, cinco vagas dentro da minha �rea no exterior. E no Brasil a gente fica competindo por uma vaga...
BBC News Brasil - Essas dificuldades que a senhora descreveu ajudam a desenvolver uma versatilidade e uma capacidade de adapta��o no cientista brasileiro? Essas habilidades s�o valorizadas no exterior?
Goes de Jesus - O Brasil � uma boa escola para isso. Eu n�o gosto de romantizar o sofrimento, seja ele qual for. Mas, uma vez que voc� passa por um processo de forma��o no Brasil, em que � preciso driblar tantas dificuldades e dar o famoso jeitinho, n�s conseguimos resolver situa��es extremamente inusitadas.
Fora do Brasil, principalmente nos pa�ses que t�m investimentos em ci�ncia, isso n�o acontece. Da�, quando voc� se encontra numa dificuldade no exterior, � muito mais f�cil de manejar aquela situa��o, at� porque ela � costumeira no Brasil. � nossa rotina.
Ent�o aqui no Reino Unido, quando acontece uma situa��o diferente, os pesquisadores nativos ficam um pouco perdidos. E a gente j� est� tentando resolver, ajeita de um lado, ajeita de outro, e conseguimos trazer solu��es que n�o s�o obviamente as melhores, mas pelo menos resolvem aquilo por um per�odo de tempo.
BBC News Brasil - No in�cio da entrevista, fal�vamos sobre como a pandemia ajudou de alguma maneira a popularizar a ci�ncia. E a senhora � parte desse processo e virou at� personagem da Turma da M�nica e boneca Barbie. Como foi participar desses projetos e aliar a pesquisa a esse universo pop?
Goes de Jesus - Tudo isso ainda � muito estranho. Eu sou apenas uma cientista, que fa�o parte de um grupo de pesquisa, e �s vezes sinto que as homenagens ficam muito direcionadas s� para mim
Mas teve uma coisa que ouvi de alguns colegas que me ajudou a entender um pouco mais essa situa��o e ver algum sentido nisso tudo. Eu represento outras quest�es que n�o apenas a ci�ncia. E essa representatividade tem um apelo muito grande no Brasil. Com o tempo, percebi que represento outras quest�es que v�o al�m da ci�ncia. Eu sou mulher, nordestina, negra e ocupo uma posi��o de destaque que dificilmente vemos no Brasil. Agora, talvez, isso � mais discutido e conseguimos trazer mais pessoas com essas caracter�sticas para os holofotes.
Mas, durante toda a minha vida, eu sempre vi homens brancos de meia idade sendo respons�veis por falar na m�dia e por representar grupos que, talvez, envolvessem pessoas diversas. Mas era sempre aquela mesma figura da pessoa considerada mais apropriada para aparecer.
Trazer a Dra. Jaqueline Goes para esse universo pop tamb�m � uma quebra de paradigma. � voc� mostrar a vis�o de que o mundo mudou e n�s precisamos acompanhar essa mudan�a. N�s temos pesquisadoras jovens, negras, mulheres que ocupam posi��o de destaque tamb�m, mas que nunca foram vistas dessa forma. � importante, porque trazemos representatividade.
Eu recebo muitas mensagens de escolas pedindo para que eu fa�a palestras ou participe de um bate-papo com as crian�as. Muitas vezes eu n�o consigo dar conta de tudo, mas eu fa�o um esfor�o muito grande para comparecer a esses eventos online. Porque s�o as crian�as de hoje, inspiradas nessa representatividade, que v�o mudar o futuro. A gente precisa investir nisso.
Eu n�o tive refer�ncias cient�ficas na minha inf�ncia. As minhas primeiras refer�ncias s� vieram na �poca do mestrado, quando eu j� estava graduada. Tudo isso agora � diferente. E jamais pensei que, fazendo gradua��o em biomedicina, poderia ser cientista. Isso � muito grave, porque n�o damos oportunidades para as pessoas serem aquilo que elas desejam de verdade. �s vezes, � s� o que coube para ela naquele momento.
Calhou de eu cair na ci�ncia e gostar, mas nunca foi a minha pretens�o. E tamb�m acho que essa n�o era a pretens�o de muitos dos meus colegas. Trazer isso para o universo pop, inclusive com outras cientistas, como foi o caso da homenagem com a Barbie, significa que n�s carregamos essa representatividade. A crian�a olha para uma boneca e pensa que pode ser como ela. Isso � algo diferente do que eu vi durante toda a minha vida.
No in�cio, eu n�o queria aceitar, ficava muito com essa coisa de que trabalhamos em grupo e todos deveriam receber a homenagem. A minha ideia mudou quando ouvi da minha supervisora, a Dra. Ester Sabino, uma pessoa muito s�bia, que era importante eu trazer essas outras representatividades extremamente urgentes para nossa sociedade.

BBC News Brasil - Os cientistas est�o acostumados a trocar ideias e informa��es com os colegas, numa linguagem acad�mica e, muitas vezes, pouco acess�vel. Como dialogar com o p�blico geral?
Goes de Jesus - Vou falar algo que nunca comentei em entrevistas. Essa semana, eu estava refletindo com um amigo e cheguei � conclus�o de que isso faz parte da minha trajet�ria. Eu sou professora. E, enquanto professora, preciso pegar algo que � muito complexo e trazer para o universo do estudante, que est� aprendendo sobre aquilo pela primeira vez.
Comecei a dar aula com 16 anos em uma escola infantil. A partir dessa experi�ncia de ensinar para as crian�as, depois passar pela gradua��o dentro da universidade, de ser professora universit�ria e participar de um projeto de aulas online, a gente vai desenvolvendo essas habilidades.
Precisamos pegar algo complexo e passar para diferentes p�blicos. Para isso, precisamos de experi�ncia e confian�a, al�m de usar ferramentas como as compara��es, falar de maneira calma… Isso facilita muito quando falamos de ci�ncia para a popula��o. At� porque precisamos trazer algo que seja da realidade daqueles indiv�duos.
N�o adianta ir pra m�dia e usar termos t�cnicos. Precisamos destrinchar aquele conhecimento e transform�-lo em algo que seja f�cil para o p�blico degustar. No momento em que se gosta daquilo, fica f�cil buscar mais informa��es. E isso aconteceu durante a pandemia. Eu vi as pessoas procurando por ci�ncia e por conhecimento como buscavam por resultados de jogos de futebol. Ainda n�o � o ideal, mas � muito gostoso de ver isso acontecer.
BBC News Brasil - Em rela��o � pandemia, a senhora j� v� alguma luz no fim do t�nel? Existe alguma perspectiva de fim da crise sanit�ria, quando pensamos na realidade brasileira?
Goes de Jesus - Eu vivo uma realidade no Reino Unido que � completamente incompat�vel com a brasileira. Aqui, a vacina��o avan�ou e temos praticamente 80% da popula��o completamente imunizada. Isso muda a forma como a gente vive.
Falando do Brasil, eu ainda tenho um receio pelo surgimento de novas variantes. Esse � um grande receio, ali�s. Ent�o, sempre que as pessoas perguntam sobre perspectivas, eu respondo que � muito complicado falar de previs�o. Como cientista que entende o processo de dissemina��o viral e o surgimento de novas variantes, eu pensaria [num fim para a pandemia] em 2024. E sei que n�o � uma previs�o muito agrad�vel. E tenho at� receio de falar isso para as pessoas, para que n�o seja usado fora de contexto ou recebido como como grande verdade.
Sobre o modo como os brasileiros est�o levando a pandemia, abrindo tudo sem que as pessoas estejam completamente vacinadas, � muito complicado. N�s temos grandes centros com uma boa porcentagem da popula��o com as duas doses, mas, em outros lugares, estamos longe de alcan�ar isso. � dif�cil dizer que, em 2022, j� estaremos livres da pandemia, com todo mundo vacinado.
Isso porque n�s temos a possibilidade de surgirem novas variantes e o Brasil j� mostrou que � capaz de fazer isso. Tivemos a P.1 [a atual Gama] e diversas outras que se desenvolveram no pa�s. E esse � o grande empecilho para que estejamos tranquilos no ano que vem.
Enquanto brasileira, se eu pudesse dizer o que precisa ser feito agora seria continuar com as restri��es, deixar em funcionamento apenas o que � estritamente necess�rio, n�o incentivar eventos e aglomera��es e acelerar a vacina��o.
Precisamos investir na compra de vacinas. A gente sabe que tem como comprar mais doses se houver uma inten��o real do governo de fazer isso. E ouvimos o presidente falar que vai reduzir o or�amento para compra de vacinas em tantos por cento no ano que vem. N�o! A gente precisa aumentar esse percentual, n�o reduzi-lo. A epidemia n�o acabou.
A gente volta mais uma vez para a quest�o dos governos que investem e acreditam na ci�ncia. � algo que se retroalimenta. Infelizmente, n�o temos isso no Brasil.
� complicado fazer previs�es sobre o fim da pandemia, mas eu diria no final de 2023, in�cio de 2024, se n�o tivermos novas variantes surgindo com tanta velocidade como temos observado.
BBC News Brasil - Quais foram os principais erros cometidos na condu��o da pandemia no Brasil e o que podemos aprender com eles?
Goes de Jesus - Acho que a gente errou em n�o ouvir a ci�ncia. Enquanto cientistas, trouxemos informa��es e conhecimentos de forma muito r�pida para o governo e a sociedade brasileira. No in�cio da pandemia, eu me recordo de ter sido convocada, junto de outros pesquisadores, para dar direcionamento em rela��o ao que deveria ser feito no pa�s.
A minha sugest�o era que n�s fiz�ssemos um controle maior nos aeroportos e fech�ssemos as fronteiras. Assim, a gente poderia ao menos conter a introdu��o de novas variantes do v�rus, de modo a mitigar aquilo que j� tinha entrado no Brasil com os primeiros casos.
Infelizmente, nada disso aconteceu. Essa reuni�o foi final de mar�o de 2020. Pouqu�ssimas das nossas recomenda��es foram acatadas. Depois disso, trouxemos o estudo na Science em julho falando das medidas n�o-farmacol�gicas e o impacto que elas tiveram na redu��o da pandemia. Ainda assim, vimos muitas cidades seguindo o caminho contr�rio, de n�o estabelecer a quarentena e o lockdown, de n�o preconizar o uso de m�scara, e com governantes dizendo que tudo era uma baboseira.
Infelizmente, por mais que nossos governantes n�o acreditassem ou tivessem uma opini�o contr�ria, a figura deles como exemplo era necess�ria para que a gente tivesse outro curso na pandemia. Erramos em n�o ouvir a ci�ncia.
E continuamos a errar. O Brasil est� fazendo uma s�rie de reaberturas que n�o eram para acontecer neste momento. N�o sei se n�s aprendemos com esses erros ainda.
Mas tamb�m vejo pelo lado positivo, em que aprendemos muito sobre preven��o de epidemias, dissemina��o de doen�as por via respirat�ria, sobre quest�es de higiene... Se a gente come�ar a olhar outras doen�as relacionadas � falta de higiene, veremos que a preven��o para covid-19 ajudou a evitar outras doen�as.
E, agora, boa parte da popula��o entende que, quando temos recursos, interesses pol�ticos, econ�micos e sociais no desenvolvimento de uma vacina, ela pode ficar pronta em tempo recorde. O mundo inteiro se debru�ou no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 e temos v�rias delas j� aprovadas.
BBC News Brasil - Pensando em representatividade e inspira��o, como uma crian�a ou um jovem pode virar cientista no futuro? Qual caminho devem seguir?
Goes de Jesus - Essa � uma pergunta dif�cil. As pessoas t�m uma ideia de que cientista s� trabalha na sa�de. E eu gosto de lembrar das outras �reas, inclusive as ci�ncias sociais. Se tornar cientista, para mim, � algo que vem de dentro. Voc� precisa ter um instinto curioso.
As crian�as s�o cientistas por natureza. Elas trazem essa curiosidade e querem descobrir o ambiente e tudo ao redor. Para aqueles jovens que continuam com desejo de explicar os fen�menos sociais, pol�ticos, de sa�de e da �rea das exatas, o passo principal � fazer uma gradua��o em algo que agrade. Se voc� gosta de engenharia, vai fazer. E, dentro dessa �rea, procure grupos de estudo que trabalham com um t�pico de seu interesse.
N�o adianta se envolver com �reas nas quais voc� n�o tem aptid�o ou afinidade. Tem que gostar. Se n�o, n�o flui. Ser cientista n�o � uma posi��o em que voc� trabalha das 8 �s 16 horas e, no outro dia, aparecem outras demandas. Voc� vive a pesquisa. �s vezes voc� est� tomando banho e se lembra de algo que poderia ter feito no experimento e n�o fez. Ou sonha com o experimento que far� no dia seguinte.
Voc� � sempre cientista, seja no laborat�rio, em casa ou numa festa com os amigos. Est� sempre pensando e buscando entender os fen�menos. Primeiro, � preciso ser curioso. Depois, seguir a carreira, fazer gradua��o, entrar em grupos de pesquisa para mestrado e doutorado. E, claro, ter sempre essa vontade de explicar as coisas dentro de si.
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