
O conceito de imunidade coletiva (ou de rebanho) tem sido adotado para falar de diferentes assuntos. Em geral, ele � utilizado para explicar a prote��o indireta contra uma infec��o que � obtida por pessoas suscet�veis de uma popula��o quando h� uma taxa elevada de pessoas n�o suscet�veis (imunes � infec��o, seja por vacina��o ou por terem sido infectadas antes).
A experi�ncia hist�rica nos mostra que em muitas doen�as infecciosas (var�ola, poliomielite, sarampo, difteria, caxumba etc.) os imunizados s�o resistentes a novas infec��es pelo mesmo agente infeccioso e, se a propor��o de imuniza��o � suficientemente alta, ajudam a criar uma barreira que interrompe as cadeias de transmiss�o.
Assim protegem indiretamente as pessoas n�o imunizadas e, �s vezes, permitem a elimina��o ou at� mesmo a erradica��o da infec��o.
Atualmente, no caso das vacinas contra covid-19, o termo imunidade de rebanho � cada vez mais usado para se referir a um conceito um pouco diferente: o limiar de imunidade de rebanho (HIT).
Este limite refere-se � propor��o m�nima de pessoas imunes em uma popula��o que � necess�ria para atingir uma diminui��o nas infec��es, aproximando-se da propor��o m�nima de pessoas em uma popula��o que deve ser vacinada para proteger toda a popula��o.
Nesse sentido, Anthony Fauci, assessor-m�dico-chefe da Presid�ncia dos Estados Unidos e um dos imunologistas de maior prest�gio do mundo, disse no fim de 2020 que seria necess�rio vacinar entre 70 e 85% da popula��o dos Estados Unidos para alcan�ar "imunidade de rebanho" contra o novo coronav�rus.
Fauci esclareceu que era preciso ser "prudente" com esses c�lculos e que, "realmente n�o sabemos qual � o n�mero real". Mas sua prud�ncia n�o impediu que a "febre" dos tais 70% se espalhasse na m�dia (e em governos) de muitos pa�ses.
Tampouco evitou a decep��o que se deu quando os pa�ses com altas taxas de vacina��o (especialmente Israel) experimentaram picos significativos na transmiss�o em meados de 2021, mesmo t�o pr�ximos da taxa de 70% de vacinados.
Como se calcula o patamar da imunidade coletiva?
De forma simplificada, o patamar da imunidade coletiva depende, essencial, do n�mero b�sico de reprodu��o (R0). Este n�mero representa os casos secund�rios que, em m�dia, s�o gerados por uma pessoa infectada quando a popula��o inteira est� suscet�vel (ou seja, no in�cio da epidemia).

A ideia, bastante intuitiva, � que se uma pessoa infectada s� contamina uma outra pessoa (R0 = 1), a transmiss�o se mant�m est�vel. Mas se algu�m contamina mais de uma pessoa (R0 > 1), a transmiss�o aumentar�. E pelo contr�rio, se contamina menos de uma pessoa em m�dia (R0 < 1), porque boa parte da popula��o n�o � suscet�vel, a transmiss�o perder� for�a at� acabar.
Assim, o ponto inicial da imunidade coletiva (HIT) pode ser calculado como uma fun��o de R0: HIT = (1-1/R0). Esse patamar mostraria a propor��o cr�tica de pessoas a serem vacinadas (assumindo que a efetividade vacinal seja de 100%) para se atingir a imunidade de rebanho.
Cada agente infeccioso tem o seu pr�prio R0. Geralmente, ele � maior em infec��es transmitidas por aeross�is (part�culas menor que as got�culas) do que naquelas transmitidas por got�culas respirat�rias ou pelo contato direto com a pele, por exemplo.
No caso do Sars-CoV-2 (coronav�rus que causa a doen�a covid-19), antes do espalhamento da variante delta e outras, o R0 era estimado em cerca de 3,3 casos secund�rios por cada infec��o. Ou seja, cada pessoa infectada transmite o v�rus para outras 3,3 pessoas, em m�dia. Esses dados permitiram o c�lculo de um HIT de 0,70 (HIT = (1 - 1 / 3,3) = 0,70). � a� que est� a famosa taxa de vacina��o de 70% para se atingir a imunidade do rebanho.
Mas com a variante delta, o R0 cresceu (ou seja, cada pessoa doen�a infectava ainda mais pessoas). Cresceu e muito. Algumas estimativas falavam em algo entre 6 e 8. Com esses novos n�meros, a propor��o cr�tica de pessoas a serem vacinadas chegaria a taxas pr�ximas a 90% para se atingir imunidade de rebanho.
S� que estes n�meros s�o imposs�veis de atingir quando, primeiro, uma parte significativa da popula��o, os menores de 12 anos, n�o s�o est�o sendo vacinados. E em segundo lugar, outra parte da popula��o decide (por diversos motivos) n�o se vacinar.
Efic�cia da vacina contra a infec��o: um elo que faltava
Os c�lculos acima assumem a premissa (falsa) de uma efic�cia de vacina perfeita (100%) para proteger contra infec��es. O termo infec��o aqui se refere a qualquer tipo de infec��o (assintom�tica, sintom�tica leve ou grave, com ou sem hospitaliza��o).
Ou seja, contavam com a vacina para prote��o contra a infec��o. No entanto, as vacinas atuais foram projetadas para serem eficazes contra a covid-19 grave ou com sintomas, e n�o contra a infec��o em si (ou seja, � para evitar morte ou interna��o, e n�o para evitar contrair o v�rus).
Se mudarmos a f�rmula para incluir este componente, ter�amos: HIT = (1 - 1 / R0) / E, onde "E" � a efic�cia da vacina contra a infec��o. Em estudos preliminares em Israel (antes da circula��o da variante delta), estimou-se que a efic�cia da vacina��o com esquema completo contra infec��o seria em torno de 80% e, portanto, HIT = (1 - 1/3, 3) / 0,80 = 0,87. Em resumo, um patamar de 87% dif�cil de ser alcan�ado.

Mas, al�m disso, esta f�rmula j� indica que se a efic�cia da vacina for inferior a (1 - 1 / R0), a imunidade coletiva n�o pode ser alcan�ada nem mesmo vacinando 100% da popula��o. E, infelizmente, para a variante delta, a efic�cia da vacina contra a infec��o foi estimada entre 35% e 80%, com um decl�nio potencial na efic�cia ao longo do tempo.
Com esses n�meros, mesmo as estimativas de efic�cia mais favor�veis %u200B%u200B(e improv�veis) n�o seriam maiores do que os (1 - 1 / R0) pr�ximos a 90% que s�o estimados com delta. Por consequ�ncia, na presen�a de delta, a imunidade de rebanho seria inating�vel com as vacinas e diretrizes de vacina��o atuais.
Al�m disso, h� outros fatores importantes que, mesmo em menor grau, complicam a tentativa de se alcan�ar esse patamar m�nimo de imunidade de rebanho. Por exemplo, a probabilidade de estar infectado n�o � a mesma entre os diferentes grupos et�rios da mesma popula��o (na realidade, R0 n�o � uma fun��o do n�mero m�dio de casos secund�rios gerados por uma pessoa infectada m�dia; ele depende de como esses indiv�duos interagem entre si e com outros grupos sociais).
Por outro lado, a vacina��o n�o ocorre de forma aleat�ria em uma popula��o m�dia e o impacto na transmiss�o pode variar dependendo se a estrat�gia de vacina��o utilizada � voltada para popula��es com maior ou menor capacidade de transmiss�o (jovens tendem a ter maior capacidade de transmiss�o pelo maior n�mero de intera��es sociais, por exemplo).
Todos eles s�o aspectos complexos que os leitores podem se aprofundar em alguns trabalhos cl�ssicos sobre imunidade de rebanho, como os de Fox et al., de 1971, ( neste link ) ou os de Paul Fine de 1993 ( neste link ) e de 2011 ( neste link ).
Quando a imunidade do rebanho n�o existe nem � esperada
Ter a ajuda de "HIT = 70%" teria sido bom para n�s. Mas mesmo assim, e ainda sem atingir essa cifra, a vacina��o j� permitiu que a onda do ver�o no hemisf�rio norte tenha sido bem diferente das anteriores. Al�m disso, ainda temos muitas estrat�gias para o controle da pandemia (como uso de m�scaras em lugares fechados). A mais imediata e importante ainda � vacinar.
Vacinar o m�ximo poss�vel da popula��o e o mais r�pido poss�vel. Todas as vacinas autorizadas na Europa, por exemplo, mostraram efic�cia extraordin�ria contra coronav�rus graves, hospitaliza��o e morte. E, at� agora e apesar da variante delta, essa prote��o se manteve.
� fundamentalmente uma prote��o individual, n�o tanto coletiva. Somente pessoas vacinadas o ter�o. Mas � mais importante agora do que nunca porque, devido ao pr�prio combate da vacina��o contra casos graves, as restri��es ser�o reduzidas.
Com isso, os n�o vacinados ter�o cada vez menos a prote��o gen�rica que as medidas n�o farmacol�gicas t�m oferecido at� agora (distanciamento f�sico entre as pessoas, m�scaras, ventila��o adequada).

Tamb�m � importante tentar melhorar a efic�cia da vacina. O elemento "E" da f�rmula para calcular imunidade de rebanho. Vacinas de segunda gera��o ou vacinas mais adaptadas �s novas variantes podem ajudar nesse sentido.
Uma terceira dose das vacinas que estamos usando tamb�m pode ajudar. Mas, por enquanto, precisamos de mais evid�ncias cient�ficas para fundamentar essas estrat�gias.
Especialmente sobre as terceiras doses que devem demonstrar n�o apenas que os anticorpos neutralizantes aumentam, mas o quanto elas reduzem a transmiss�o (se o fizerem) e o quanto de covid-19 grave elas reduzem no mundo real em compara��o com as diretrizes anteriores. S�o aspectos que devem continuar sendo estudados. At� mesmo para preparar a log�stica em torno da necessidade potencial. Por outro lado, tamb�m se deve evitar rea��es exageradas sem informa��es suficientes.
Por fim, uma �ltima estrat�gia importante � n�o se ater excessivamente �s taxas de vacina��o (da tal imunidade de rebanho) para barrar a transmiss�o do v�rus, mas ser guiado por essas taxas para implementar ou n�o restri��es � circula��o de pessoas. Principalmente os dados de interna��o, mas sem perder de vista os dados de transmiss�o.
Se a transmiss�o aumentar, haver� casos mais graves. Especialmente em pessoas n�o vacinadas, mas tamb�m em pessoas vacinadas. Mesmo com a efic�cia muito alta das vacinas contra covid grave, muitas pessoas infectadas acabariam resultando em hospitaliza��es, UTIs e mortes.
*Salvador Peir� � pesquisador do setor de Pesquisas em Servi�os de Sa�de da Funda��o de Promo��o da Sa�de e de Pesquisas Biom�dicas (Fisabio), em Valencia, na Espanha.
Este artigo foi publicado originalmente no site de not�cias acad�micas The Conversation e republicado aqui sob uma licen�a Creative Commons. Leia aqui a vers�o original (em espanhol ).
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