
O tatu-canastra � a maior esp�cie de tatu do mundo: pesa 50 quilos e mede 1,6 metro entre o focinho e a ponta do rabo. Ele tamb�m tem uma das maiores unhas da natureza: 14 cent�metros no terceiro dedo, uma afiada garra que ele usa para cavar tocas. Por�m, a vida n�o est� nada f�cil para o tatu-canastra. O constante e crescente desmatamento do Cerrado, um de seus principais habitats, est� reduzindo sua oferta de comida, al�m de jog�-lo em um conflito inesperado com criadores de abelhas.
Com pouca op��o de cupins e formigas para comer, o Priodontes maximus (nome cient�fico do bicho) tem atacado e destru�do colmeias no Mato Grosso do Sul, em busca de larvas de abelhas para se alimentar. O "vandalismo" do tatu est� causando preju�zos de milhares de reais para os produtores de mel no Estado - h� relatos de apicultores que, em repres�lia, mataram o raro animal, um crime ambiental.
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No entanto, um grupo de criadores sul-mato-grossense est� tentando resolver o conflito em busca de paz e conserva��o. Nos �ltimos meses, dezenas deles se reuniram com bi�logos e pesquisadores para desenvolver um guia de conviv�ncia com o tatu-canastra. Quem seguir as recomenda��es ganha um certificado internacional de prote��o da esp�cie, o que pode gerar benef�cios financeiros na hora de vender o mel.
Cerca de 700 apicultores atuam no Mato Grosso do Sul, respons�veis por 21 mil colmeias. Muitos recorrem a �reas silvestres e de planta��o de eucaliptos para instalar as abelhas, locais pr�ximos a tocas do tatu. As colmeias costumam ficar longe da presen�a de humanos para evitar ataques de abelhas - por isso, os apicultores s� ficam sabendo da a��o do canastra horas e at� dias depois do ocorrido.

Em locais onde a vegeta��o nativa permanece intacta, o animal tem recursos � vontade para se alimentar. Por�m, em pontos cercados por estradas, pastagens e lavouras, o alimento fica escasso e os tatus atacam as colmeias para sobreviver, segundo o bi�logo Arnaud Desbiez, pesquisador e coordenador do Programa de Conserva��o do Tatu-canastra, realizado pelo Instituto de Conserva��o de Animais Silvestres (ICAS) e pelo Instituto de Pesquisas Ecol�gicas (IP�).
"Hoje, o habitat do tatu � extremamente fragmentado. Por isso, muitas vezes ele fica isolado em um desses fragmentos, sem muitas op��es de alimentos. Ele acaba procurando as colmeias para comer as larvas", explica Desbiez.
De h�bitos noturnos, o canastra aprende r�pido como destruir caixas de colmeias durante a noite. V�deos gravados pela equipe de pesquisa coordenada por Desbiez mostram sua persist�ncia: ele fica em p�, se pendura, puxa e empurra as caixas at� conseguir acesso �s larvas, derrubando o mel e soltando as abelhas.
Esses "ataques" fomentaram uma imagem negativa do canastra na regi�o, o "destruidor de colmeias", e um conflito com os produtores de mel. "Ouvimos relatos de alguns apicultores que mataram tatus, embora grande parte dos criadores esteja interessada em resolver o problema de outra forma, porque entendem que a conserva��o da natureza � muito importante para a cria��o de abelhas", conta Desbiez.
Canastras e colmeias
H� quatro anos, o apicultor Adriano Adames, de 53 anos, sofreu no bolso com um dos ataques do tatu-canastra. "Eu tinha um api�rio com 70 colmeias. Um dia cheguei e todas estavam destru�das", conta ele, que h� 30 anos produz e comercializa mel na capital Campo Grande. A montagem de uma �nica colmeia custa por volta de R$ 700, fora os custos de m�o de obra e manuten��o.

Adames conta que o dono da fazenda onde ele mantinha o api�rio sugeriu uma solu��o dr�stica. "Ele me perguntou: 'Adriano, por que voc� n�o mata esse tatu?' Eu estava muito triste pelas colmeias, mas respondi que n�o iria fazer aquilo. J� ouvi que alguns apicultores mataram o animal, mas eu sou contra, porque ele n�o � o culpado", diz.
O produtor foi o primeiro de 33 apicultores do Mato Grosso do Sul a receber o selo "Produtor amigo do tatu-canastra", que assegura o compromisso dos criadores com a biodiversidade e a prote��o desses animais. O certificado � reconhecido pela Wildlife Friendly, uma organiza��o internacional de conserva��o da natureza.

O selo faz parte do projeto "Canastras e Colmeias", financiado pela Funda��o Grupo Botic�rio de Prote��o � Natureza, que juntou bi�logos e produtores para criar estrat�gias que evitem os ataques �s cria��es de abelhas, mas que tamb�m ajudem a conservar o tatu.
Uma das principais orienta��es do manual � a melhorar a estrutura das caixas de colmeia, principalmente a altura em rela��o ao solo - se elas ficarem a menos de 1,3 metro do ch�o, o tatu consegue alcan��-las ficando de p�. Outra dica � colocar cavaletes de metal ou de madeira mais resistente � for�a do canastra.
Em alguns casos, o guia orienta a instala��o de um alambrado ou cerca el�trica no entorno da colmeia, medida adotada pelo apicultor Adriano Adames. "A cerca d� um pequeno pulso el�trico que afasta o tatu, mas n�o o machuca. Ele leva um susto e vai embora", explica ele, que tamb�m compra e revende mel de outros produtores do Estado.
Adames acredita que o guia de conviv�ncia e o selo de apoio � conserva��o podem ajudar a melhorar inclusive o valor do mel produzido no Mato Grosso do Sul - ele estima que 200 apicultores v�o aderir ao certificado at� 2023.
"Nossa ideia � que o mel com o selo seja melhor remunerado no mercado, e com vendas pela internet. O produtor precisa se conscientizar da vantagem de conservar a natureza, pois as colmeias tamb�m necessitam de um ambiente saud�vel. Ele tamb�m vai perceber que a conserva��o pode ser ben�fica financeiramente", diz.
Amea�a ao Cerrado

O tatu-canastra � uma esp�cie rara, em risco de extin��o. Ela ocupa v�rios pontos da Am�rica do Sul, da Venezuela � Argentina. No Brasil, est� presente nos principais biomas: Mata Atl�ntica, Amaz�nia, Pantanal e Cerrado.
Neste �ltimo, onde o tatu tem destru�do as colmeias, a situa��o � dram�tica. Segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, 43,7% do Cerrado j� foi destru�do para dar lugar � agropecu�ria - s� em 2020, o bioma perdeu 7,3 mil quil�metros quadrados, alta de 12,3% em rela��o ao ano anterior. E a perspectiva de futuro n�o � animadora.
"Historicamente, o Cerrado foi tratado como um coadjuvante da biodiversidade brasileira. Mas ele � o segundo maior bioma da Am�rica do Sul. � a savana mais rica do mundo", explica Reuber Brand�o, membro da Rede de Especialistas em Conserva��o da Natureza (RECN) e professor de manejo de fauna e de �reas silvestres na Universidade de Bras�lia (UnB).
"Quando come�amos a ter uma consci�ncia de conserva��o do Cerrado, nos anos 1970, boa parte dele j� havia sido destru�da. N�o houve preocupa��o em criar grandes �reas de preserva��o", diz Brand�o.
Segundo o bi�logo, a soja � a commodity que concentra a produ��o agr�cola em �reas desmatadas do Cerrado. E o Mato Grosso do Sul se destaca como um dos maiores produtores de soja do pa�s. Segundo o governo do Estado, a safra 2020/21 chegou a 13,305 milh�es de toneladas - alta de 17,8% em rela��o � anterior.
A maior parte da soja produzida no Brasil � exportada. Segundo a Associa��o Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec), o pa�s exportou 86,628 milh�es de toneladas de soja em gr�o em 2021, acr�scimo de 5,2% em rela��o ao ano anterior. Em farelo de soja, as exporta��es brasileiras somaram 16,817 milh�es de toneladas em 2021, alta de 0,37%.
Para al�m do drama do tatu-canastra, a destrui��o do Cerrado causa uma s�rie de impactos ambientais no pa�s, como a redu��o da oferta de �gua. Ocupando o Planalto Central e se estendendo por 25% do territ�rio nacional, o bioma � o ponto de origem de oito das doze bacias hidrogr�ficas brasileiras. L� nascem muitos rios que rumam para outras regi�es, como o S�o Francisco, o Tocantins, o Xingu e o Araguaia.
Raridade

� dif�cil encontrar um tatu-canastra andando por a�. Al�m da baixa densidade, ele n�o costuma dar as caras durante o dia, quando permanece dentro da toca - cava um buraco a cada dois dias, em m�dia. S� sai � noite para comer.
Segundo o bi�logo Arnaud Desbiez, a esp�cie s� come�ou a ser estudada de maneira ampla e de longo prazo a partir de 2010, quando zool�gicos norte-americanos e europeus passaram a financiar pesquisadores no Brasil.
"Uma das principais descobertas � que a toca do canastra � tamb�m utilizada como abrigo por outras 70 esp�cies, como queixadas, fur�es e serpentes. Alguns entram na toca para ter filhotes. O tatu-canastra � o que chamamos de 'engenheiro de ecossistema', pois constr�i a casa de outras esp�cies. Quando ele desaparece, outros animais desaparecem tamb�m", explica Desbiez.
N�o se sabe ao certo qual � o tamanho da popula��o de tatus-canastra no Brasil. Levantar esses dados � tarefa dif�cil, por causa da grande extens�o do territ�rio e da dificuldade de achar o animal - demora pelo menos quatro dias para encontrar um �nico indiv�duo na natureza, segundo Desbiez.
Em um estudo de 2015, o bi�logo e outros pesquisadores encontraram 69 fragmentos de tatu-canastra em uma �rea de 25 quil�metros quadrados no Cerrado, �ndice considerado muito baixo.
A reprodu��o da esp�cie tamb�m � lenta, o que torna a renova��o mais dif�cil. A maturidade sexual do tatu come�a apenas entre sete e nove anos de idade - e s� nasce um filhote por gesta��o, a cada tr�s anos.
"Ele tem uma taxa de nascimento muito, muito, muito baixa. A morte de cada indiv�duo significa uma perda muito grande para a esp�cie. � por isso que o tatu-canastra pode ser extinto de maneira muito r�pida", diz Desbiez.
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