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Estado de Minas 'JANELA REAL'

Como o lixo pode revelar prefer�ncias e mudan�as de h�bito das pessoas

Em 2006, trabalhadores dos esgotos de Eswatini (antiga Suazil�ndia) estimaram que o uso de preservativos havia aumentado em 50% naquele pa�s africano


10/05/2022 18:15 - atualizado 11/05/2022 12:17

Menina com garrafas nas mãos
O lixo dom�stico pode ser usado para estudar as prefer�ncias dos consumidores por determinadas marcas de produtos e muito mais (foto: Getty Images)

As coisas que as pessoas jogam no lixo podem revelar de tudo — desde a alimenta��o desregrada, passando por h�bitos sexuais e at� segredos da Coreia do Norte!

Boiando sobre o esgoto, retida por um cabo convenientemente longo, l� estava uma pequena rede de pesca. Um funcion�rio municipal de Baltimore, nos Estados Unidos, inclina a rede suavemente no lodo f�tido e retira da superf�cie seu pr�mio t�o cobi�ado: um preservativo usado.

No final dos anos 1980 (�poca do auge da epidemia de Aids nos Estados Unidos), uma equipe de especialistas de sa�de quis monitorar se as pessoas estavam seguindo as recomenda��es de praticar sexo seguro. Para isso, eles come�aram a contar os preservativos lan�ados no esgoto, que acabavam nas esta��es de tratamento. E, no in�cio de 1988, os funcion�rios estavam encontrando 200 a 400 preservativos todos os dias.

"Claro que n�o � um trabalho muito agrad�vel, mas � importante", contou na �poca � ag�ncia de not�cias Associated Press um supervisor de monitoramento da Aids da secretaria de sa�de local.

Desde ent�o, autoridades de outros pa�ses v�m utilizando o mesmo m�todo. Em 2006, trabalhadores dos esgotos de Eswatini (antiga Suazil�ndia) estimaram que o uso de preservativos havia aumentado em 50% naquele pa�s africano.

Eles observaram que os contraceptivos t�m o tamanho exato para obstruir o segundo conjunto de filtros das esta��es de tratamento, o que permite que eles sejam contados. Z�mbia tamb�m observou um grande aumento do uso de preservativos em 2015, quando milhares deles entupiram os esgotos da capital, Lusaka.

O lixo pessoal, mesmo nas suas formas mais repugnantes, � outra fonte de dados sobre uma pessoa. Os res�duos, sejam eles lan�ados ao esgoto, descartados ou reciclados, carregam um mundo de informa��es sobre as escolhas e comportamentos das pessoas, que muitas vezes n�o podem ser obtidas de outra forma.

'Janela para a vida real das pessoas'

As pessoas que se atrevem a examinar os detritos humanos s�o chamadas de "garbologistas" e seus esfor�os nos ajudam a entender de tudo, desde a sa�de e as escolhas alimentares das pessoas at� as a��es de regimes pol�ticos cheios de segredos.

Existe uma clareza reconfortante no estudo do lixo, para o antrop�logo Thomas Hylland Eriksen, da Universidade de Oslo, na Noruega. "Ele oferece uma janela muito direta e privilegiada para a forma de viver real das pessoas", afirma ele.

O termo "garbologia" foi criado pelo escritor e ativista americano A. J. Weberman no in�cio dos anos 1970, mas foi o antrop�logo William Rathje, tamb�m americano, quem levou a garbologia para o terreno cient�fico, poucos anos depois.


Imagem encontrada no lixo
A documenta��o encontrada no lixo sobre a Revolu��o Cultural chinesa foi um tesouro para os historiadores (foto: Getty Images)

No seu estudo agora famoso, The Tucson Garbage Project ("O projeto do lixo de Tucson", em tradu��o livre), Rathje e seus colegas vasculharam aterros sanit�rios, escavando e classificando grandes pilhas de res�duos descartados pelos moradores da cidade que fica no Estado americano do Arizona.

Ele tamb�m comparou (mediante permiss�o) o conte�do das latas de lixo de indiv�duos com o que eles informavam em question�rios sobre seus h�bitos de comida e bebida — e descobriu que as pessoas claramente minimizam a quantidade de alimentos n�o saud�veis e de �lcool que elas consomem.

Nas d�cadas que se seguiram, a garbologia tamb�m viria a ajudar os pesquisadores pol�ticos e historiadores frente � inexist�ncia ou dif�cil acesso �s fontes oficiais de informa��o.

Lixo hist�rico

Na d�cada de 1990 e no in�cio dos anos 2000, pesquisadores perceberam que eles poderiam desvendar a hist�ria da Revolu��o Cultural chinesa pesquisando pilhas de res�duos de papel jogadas fora por autoridades ou moradores locais.

Jeremy Brown, historiador da Universidade Simon Fraser, no Canad�, foi um desses pesquisadores. Frustrado pelo acesso limitado que lhe foi concedido aos arquivos oficiais, ele ia todos os fins de semana aos mercados de pulgas de Tianjin, no norte da China, � ca�a de resmas de documentos descartados e agrupados para venda.

Quando os vendedores dos mercados de pulgas souberam o tipo de coisas que ele estava procurando, eles passaram a procurar em pilhas de lixo. Gra�as aos esfor�os desses comerciantes, Brown conseguiu adquirir documentos que demonstravam, por exemplo, como a deporta��o de pessoas da �rea urbana para a zona rural havia sido orquestrada pelos governos locais.

"Foi uma grande descoberta que nunca teria sido poss�vel sem os mercados de pulgas, sem essas coisas que estavam a caminho da destrui��o", ele conta.

Mais recentemente, a garbologia ajudou outras pessoas que tentavam pesquisar sobre um pa�s ainda mais fechado e enigm�tico: a Coreia do Norte. Em fevereiro, o jornal ingl�s The Guardian noticiou que o professor sul-coreano Kang Dong-wan havia recolhido mais de 1,4 mil embalagens de produtos norte-coreanos, levadas pela �gua ao longo do litoral da Coreia do Sul.


Embalagens de doces feitas de papel na Coreia do Norte
As embalagens de produtos na Coreia do Norte podem ter mudado nos �ltimos anos, pelo menos a julgar pelas embalagens de doces (foto: Getty Images)

O interessante dessa pesquisa � que as embalagens de doces mais recentes eram coloridas e sofisticadas, indicando mudan�as culturais sutis em um pa�s onde a vida di�ria sofre fortes restri��es.

Enquanto isso, o arque�logo Grzegorz Kiarszys, da Universidade de Szczecin, na Pol�nia, vasculhou o lixo encontrado em volta de algumas bases t�ticas abandonadas de armas nucleares sovi�ticas, esperando encontrar indica��es sobre as atividades secretas realizadas no local.

Ele afirma que t�cnicas remotas, como fotografias a�reas e varreduras a laser, al�m de imagens p�blicas de sat�lites dos anos 1960 e 1970, ajudaram-no a estudar alguns desses locais. Mas foi atrav�s da pesquisa do lixo encontrado nas antigas bases que ele conseguiu formar um panorama de como era a vida das pessoas que moravam ali.

Os res�duos s�o, em grande parte, dom�sticos. H� muitas l�minas de barbear, batons, m�scaras e sacos de leite em p� vazios — al�m de brinquedos, j� que as fam�lias dos soldados haviam sido destacadas para esses locais. Curiosamente, ele encontrou brinquedos relativamente caros, como pe�as de Lego, que n�o eram dispon�veis para o p�blico em geral durante a era comunista na Pol�nia.


Antiga bota deixada para trás pelos moradores soviéticos de uma instalação nuclear do tempo da Guerra Fria na Polônia
Antiga bota deixada para tr�s pelos moradores sovi�ticos de uma instala��o nuclear do tempo da Guerra Fria na Pol�nia (foto: Grzegorz Kiarszys)

"Parece que as autoridades sovi�ticas tinham algum acesso a moeda estrangeira", ele conta.

O lixo, embora seja rapidamente esquecido pelos que o produzem, inevitavelmente age como uma express�o um tanto grosseira da sociedade. Leila Papoli-Yazdi, arque�loga da Universidade Linnaeus, na Su�cia, usou a garbologia para melhor compreender a demografia das pessoas que vivem na capital iraniana, Teer�.

Pesquisando o lixo dom�stico que � descartado nos cestos colocados nas esquinas da cidade, ela conseguiu detectar diferen�as claras entre os diversos bairros. Havia, por exemplo, amplas evid�ncias de uso de drogas nos bairros de renda mais baixa.

Em uma regi�o, ela e sua equipe se surpreenderam ao encontrar uma quantidade incomum de papel nos sacos de lixo que elas examinaram. Ocorre que a popula��o local havia mudado nos �ltimos anos e agora representava um grupo de indiv�duos da classe m�dia que haviam sido malsucedidos, mas eram mais propensos a ler jornais que os moradores das classes mais baixas.

"Os novos moradores, principalmente pessoas com forma��o, mas sem emprego, inclu�am professores, trabalhadores desempregados [e] comerciantes falidos [que] n�o tinham mais condi��es de alugar uma casa nos bairros mais caros, devido � crise econ�mica da �ltima d�cada", escreveu Papoli-Yazdi em um estudo de 2021 descrevendo seu trabalho.

Lixo comercial

Paralelamente a esses estudos acad�micos, a garbologia tornou-se um instrumento atraente para as empresas.

Nos anos 1970, havia uma marca de iogurtes popular no Reino Unido chamada Ski, que enfrentava a concorr�ncia das marcas rivais Prize e Cool Country. Stephen Logue, empres�rio que foi gerente de produtos da Ski, relembra como a empresa contratou um escrit�rio chamado Auditores da Gr�-Bretanha (AGB) para conduzir uma "auditoria de cestos de lixo" em milhares de resid�ncias.

As pessoas eram pagas para colocar embalagens de diversos produtos dom�sticos, incluindo iogurtes, em um cesto separado na hora de jogar fora. Analistas recolhiam regularmente os cestos e inspecionavam seu conte�do, para ver quais marcas tinham maior consumo que outras.

"Tudo era feito �s claras", afirma Logue. Ele observa que o fato de que as pessoas sabiam que seu lixo seria examinado pode ter feito com que elas fossem mais seletivas sobre o que colocar no cesto separado, mas esse efeito talvez diminu�sse ao longo do tempo.


Carrinho de supermercado com saco de lixo dentro
Nosso lixo fornece indica��es profundas sobre os nossos h�bitos de compra (foto: Getty Images)

De qualquer forma, Logue conseguiu os dados que queria. "Conseguimos ver que a Ski estava indo bem", relembra ele.

Rastrear as compras das pessoas ficou muito mais f�cil com o surgimento dos c�digos de barras e cart�es de fidelidade, que permitem que os varejistas registrem cada produto vendido.

As compras online oferecem dados ainda mais espec�ficos. Mas, para quem trabalha em marketing, a garbologia tamb�m oferece uma interessante vis�o realista.

Datha Damron-Martinez, professora de marketing aposentada da Universidade Estadual Truman em Missouri, nos Estados Unidos, afirma que, no seu trabalho como consultora, ocasionalmente ela costumava propor o uso da garbologia como forma de pesquisa de observa��o para empresas que quisessem conhecer mais sobre as tend�ncias de consumo de uma popula��o alvo.

Ela e sua colega Katherine Jackson tamb�m usaram a garbologia como instrumento de ensino, em que os alunos traziam cestos de lixo dos seus quartos. Outros alunos, que n�o sabiam a quem pertencia o lixo, examinavam os cestos para tentar deduzir qual tipo de pessoa havia jogado fora aquelas coisas espec�ficas.

Damron-Martinez conta que frequentemente ficava surpresa com a quantidade de revela��es que o processo trazia. Ela relembra um caso em que a namorada de um aluno havia colocado seu pr�prio lixo ao cesto sem o conhecimento dele.

"Os alunos pegaram o lixo e disseram 'isso tem que ser o lixo de duas pessoas, por este motivo'", relembra Damron-Martinez.

Mas vasculhar o lixo tentando conseguir uma vantagem competitiva no mercado nem sempre � uma boa estrat�gia. Em 2001, a multinacional Procter & Gamble (P&G) suspendeu um projeto de "mergulho no lixo" que pretendia conseguir informa��es sobre a Unilever, sua concorrente no setor de produtos para os cabelos.


Bitucas de cigarro, garfo plástico e outros lixos espalhados
Mudan�as de h�bitos e depend�ncias qu�micas das pessoas podem ser deduzidas por meio de cigarros e vaporizadores (foto: Jeremiah Mock)

Embora a P&G insistisse em afirmar que n�o havia desrespeitado nenhuma lei, a empresa admitiu que a atividade estava "fora da nossa pol�tica rigorosa de obten��o de informa��es comerciais dos concorrentes".

Lixo acumulado e t�xico

Pode haver um ponto perturbador sobre a garbologia, al�m do espectro de espionagem. Ela chama a aten��o para a enorme quantidade de lixo dispon�vel, esperando para ser escavado ou simplesmente retirado e analisado.

O antrop�logo Eriksen argumenta que as gigantescas pilhas de lixo que hoje sujam o planeta s�o sintomas do que ele chama de "modernidade superaquecida".

"Tudo vem se acelerando", explica ele — do com�rcio at� o lixo. "Existe algo sobre a forma em que a civiliza��o global est� sendo administrada — ou n�o est� sendo administrada — que nos mostra que existem muitas coisas que est�o fora de controle."

Particularmente, as comunidades mais remotas e tradicionais �s vezes produzem muito menos lixo. Um estudo de Ann Marie Wolf, diretora-executiva do Instituto de Pesquisa Ambiental Sonora em Tucson, no Arizona (Estados Unidos), e suas colegas analisou em 2003 os res�duos descartados pelo povo nativo americano Tohono O'odham.

Os pesquisadores conclu�ram que eles representavam menos de um ter�o da m�dia americana de lixo s�lido di�rio de cada pessoa. E tamb�m continham muito menos material perigoso que o habitual em outras partes do pa�s.

Quem tamb�m calculou a ubiquidade e a toxicidade do lixo � nossa volta foi o antrop�logo de sa�de Jeremiah Mock, da Universidade da Calif�rnia em S�o Francisco, nos Estados Unidos. Ele nem precisou vasculhar o cesto de lixo de algu�m. Mock simplesmente andou pelos estacionamentos no lado externo das escolas, recolhendo pontas de cigarros e vaporizadores.

"Para minha surpresa, comecei a encontrar c�psulas e tampas de Juul (tipo de cigarro eletr�nico) com muita rapidez e por toda parte", relata ele. Um estudo de 2019 descreveu como esses produtos representam cerca de um quinto do lixo relacionado ao fumo que ele encontrou em 12 escolas de ensino m�dio da Calif�rnia.

Mock se lembra de levar para audi�ncias p�blicas sacos do lixo que havia recolhido, de forma que os legisladores locais pudessem ver por si pr�prios. Enquanto eles observavam, o odor dos fluidos de vaporiza��o emanava de dentro dos sacos: "Era literalmente tang�vel, eles olhavam as coisas e ficavam horrorizados", relembra Mock.


Personagens do jogo Animal Crossing
Mesmo em videogames, como Animal Crossing, as pessoas descartam objetos indesejados que merecem ser investigados (foto: Getty Images)

Em 2019, muitas cidades da Calif�rnia proibiram a venda de Juul e de outros produtos de vaporiza��o. A pesquisa de Mock continua e ele afirma que permanece preocupado com o volume de lixo relativo ao fumo que segue encontrando, especialmente considerando como ele pode ser perigoso. As pontas de cigarro podem conter subst�ncias qu�micas t�xicas, que incluem formalde�do, ars�nio e chumbo.

"Quando voc� olha os milhares de itens que encontramos jogados no lixo, � algo realmente espantoso", afirma ele. "Porque eles est�o em toda parte."

Lixo virtual

As pessoas agora enchem de lixo at� os espa�os virtuais. Jared Hansen, candidato ao grau de PhD em jornalismo e comunica��o na Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, passou horas vagueando pelo jogo online Animal Crossing, procurando coisas que as pessoas jogaram fora — no ciberespa�o.

Gra�as a uma fun��o que permite explorar cidades virtuais visitadas por outros jogadores sem interferir concretamente no jogo, Hansen conseguiu documentar exemplos de itens do jogo que as pessoas aparentemente perderam ou descartaram.

"Havia evid�ncias espalhadas entre as �rvores de uma busca anterior para capturar uma abelha", escreveu ele em um estudo publicado em 2021. Ele se referia �s diminutas colmeias digitais descobertas por ele, entre outros itens descartados em um pomar no jogo.

De forma geral, suas descobertas refletem os longos esfor�os das pessoas que jogam Animal Crossing para adquirir objetos digitais e progredir no jogo. O lixo, escasso e associado a tarefas espec�ficas, indica o comportamento parcimonioso de uma sociedade cuidadosa, argumenta ele, acrescentando que ele agora observa itens virtuais descartados em outros jogos multijogador online de outra forma.

"Fico atento aos itens descartados que ningu�m quer", afirma ele. "Por que isso est� sendo desprezado?"

Prestar aten��o � o que realmente importa atualmente com rela��o ao lixo, j� que quase ningu�m pensa duas vezes sobre ele. A garbologia � fascinante pelo que pode dizer sobre uma pessoa ou uma sociedade. Mas, em outro n�vel, mais fundamental, � uma das poucas formas que temos de combater o imenso volume e complexidade das montanhas de lixo que estamos construindo.

Os garbologistas est�o entre as poucas pessoas que se preocupam em examinar essa massa descartada e esquecida. S�o eles que se ocupam de observar o quanto todos n�s jogamos fora e perguntar: "O que significa tudo isso?".

Leia a �ntegra desta reportagem (em ingl�s) no site da BBC Future.

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