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Estado de Minas MARY GARTSIDE

A mulher que desafiou a teoria de Isaac Newton sobre as cores

Cinco anos antes da 'Teoria das Cores' de Goethe, artista inglesa publicou a pr�pria releitura das ideias de Newton - mas desapareceu da hist�ria


05/06/2022 12:01 - atualizado 06/06/2022 12:34


Ilustração sobre cor
(foto: Emmanuel Lafont)

Em 1805, uma artista inglesa pouco conhecida e professora de pintura amadora fez o que nenhuma mulher at� ent�o havia feito: publicar um livro sobre o tema da teoria das cores.

Embora poucos detalhes da vida e da carreira de Mary Gartside tenham sobrevivido, sua obra sem precedentes An Essay on Light and Shade, on Colours, and on Composition in General ("Ensaio sobre luz e sombra, sobre cores e sobre composi��o em geral", em tradu��o livre) revela evid�ncias de uma genialidade criativa extraordin�ria.

Modestamente apresentado pela autora como nada al�m de um guia para "as mulheres que me chamaram para ensinar pintura", o estudo de Gartside � acompanhado por uma s�rie de imagens surpreendentemente abstratas, diferentes de quaisquer outras produzidas anteriormente por um escritor ou artista de qualquer g�nero.

� primeira vista, voc� poderia confundir facilmente as oito "manchas" de aquarela de Gartside com paisagens florais ampliadas que antecipam os estames e pistilos descomunais que a artista americana Georgia O'Keeffe come�aria a explorar desmesuradamente mais de 100 anos depois.

Mas basta olhar novamente para estas ondas luminosas de quase p�talas, cuja vibra��o de cor n�o est� presa a uma forma tang�vel, e qualquer certeza que voc� possa ter sobre o que estas imagens retratam ou significam come�a a desmoronar.

N�o s�o nem flores perfumadas colhidas do mundo real, nem flores imagin�rias cultivadas na mente, as manchas abstratas de Gartside extrapolaram as fronteiras de si mesmas um s�culo inteiro antes de a pintura abstrata se estabelecer nas telas mais conhecidas de Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich e Piet Mondrian.


'Carmesim', do livro de Mary Gartside
'Carmesim', do livro de Mary Gartside (foto: Clive Boursnell)

Mais uma met�fora para o resplendor das rosas do que rosas propriamente ditas, as manchas abstratas de Gartside tinham uma fun��o te�rica paradoxalmente precisa que desmente sua beleza amorfa.

Intitulados, por sua vez, "branco", "amarelo", "laranja", "verde", "escarlate", "azul", "violeta" e "carmesim", estes experimentos evanescentes mostram cada "tonalidade em v�rios graus de satura��o e mesclando-se de forma abstrata com outros", explica a historiadora da arte Alexandra Loske em seu recente estudo Colour: A Visual History ("Cor: uma hist�ria visual", em tradu��o literal).

O objetivo de Gartside era ilustrar as harmonias e tons contrastantes das cores prim�rias e secund�rias de uma maneira mais org�nica, e talvez menos cientificamente distante do que as rodas de cores esquematizadas de seus famosos antepassados %u200B%u200Bdo sexo masculino nesta �rea.

Embora suas manchas possam ter, como T.S. Eliot escreve no poema Burnt Norton, de 1936, "o ar de flores que s�o olhadas", na verdade elas buscavam, � frente de seu tempo, se desfazer da pretens�o autoconsciente da forma estabelecida, e, em vez disso, isolar a energia luminosa que tonifica nossa percep��o de todas as coisas: a cor.

"As cores s�o os sorrisos da natureza", escreveu o ensa�sta rom�ntico Leigh Hunt em 1840. "Quando est�o extremamente sorridentes, e irrompem em outras belezas, s�o suas risadas; como nas flores."

O que fica claro a partir dos estudos pioneiros de Gartside � que nenhum te�rico nunca tinha ouvido mais atentamente a risada das cores do que ela.

"N�o h� outro exemplo de representa��o de sistemas de cores que seja t�o inventivo e radical quanto as manchas de cores de Gartside", escreve Loske.


Alexandra Loske
Loske quer garantir que Gartside receba cr�dito como pioneira no estudo das cores (foto: Charlotte Gann)

Loske se dedica a devolver � hist�ria da arte as conquistas de escritoras e artistas mulheres esquecidas que, apesar de desencorajadas historicamente a assumir a paleta ou a caneta, conseguiram criar algumas das inven��es est�ticas mais fascinantes da hist�ria cultural.

"Se algu�m for capaz de encontrar outra pessoa antes, ficaria muito feliz em saber", diz ela � BBC Culture quando perguntada sobre o quanto est� certa de que Gartside � a primeira autora feminina de uma teoria da cor.

"Ela � a primeira, sem d�vida, no mundo ocidental."

A primeira

Loske se deparou com Gartside por acaso quando era estudante de p�s-gradua��o, depois de conseguir uma bolsa de pesquisa no Royal Pavilion em Brighton, no Reino Unido, onde agora atua como curadora.

"Queriam que algu�m se debru�asse sobre a teoria das cores. Passei muitos anos felizes fazendo este doutorado, e tudo o que consegui encontrar foram nomes de homens. At� que me deparei com esta �nica mulher, que era Mary Gartside. Apenas uma, e foi isso que realmente me incentivou", ela recorda.

O pouco que sabemos sobre a vida e a carreira de Gartside pode ser resumido em uma frase ou duas.

Nascida em 1755, talvez em Manchester, no Reino Unido, ela acabou ensinando mulheres a pintar aquarela em Londres, e conseguiu exibir sua pr�pria obra em pelo menos tr�s ocasi�es entre 1781 e 1809, pelo menos uma vez na Royal Academy.

No poema de Amy Clampitt, Balms (1980), que lembra um encontro casual com uma c�pia das aquarelas de Gartside e a "sucul�ncia pungente e aveludada" dos "tons puros" que encarnam, a poeta americana lamenta a escassez de detalhes biogr�ficos conhecidos sobre a criadora das pinturas, escrevendo versos que podem ser traduzidos como: "Mary Gartside / morreu, n�o consegui nem sequer / saber em que ano".

Durante o lockdown imposto pela pandemia de covid-19 no ano passado, Loske continuou pesquisando e finalmente conseguiu, com a ajuda de colegas, precisar o ano: 1819.

"Foi particularmente bom descobrir isso", diz Loske, "porque sempre pensei que ela havia morrido sem ter sido capaz de desfrutar de seu relativo sucesso".


Roda da cor de Goethe
O tratado de Goethe foi publicado cinco anos ap�s as teorias de Gartside (foto: BBC)

Desafio � teoria de Newton sobre cores

O modesto ensaio de Gartside (que foi seguido tr�s anos depois, em 1808, por uma edi��o revisada, na qual ela bravamente o renomeou como Um ensaio sobre uma nova teoria das cores e sobre a composi��o em geral) antecede em meia d�cada o c�lebre tratado de Johann Wolfgang von Goethe, Teoria das Cores, de 1810, no qual o renomado poeta e cr�tico alem�o procurou corrigir o que ele acreditava serem erros b�sicos na compreens�o de Isaac Newton sobre nossa experi�ncia de cor no mundo.

Assim como Goethe, que vinha desenvolvendo suas ideias h� d�cadas, Gartside parecia discretamente determinada a recalibrar a conceito do espectro de cores que comp�em a luz branca, de Newton, que o matem�tico ingl�s notoriamente descobriu quando era estudante durante um lockdown em decorr�ncia da epidemia de peste bub�nica em 1666.

"Chamar de 'teoria' � muito inteligente. Ela coloca isso em um contexto mais s�rio, algo que vai al�m de ser um manual de pintura. � mais interessante em termos de pegar ideias newtonianas e adapt�-las � pintura."

"(A teoria) de Newton tinha a ver com cores imateriais, com dividir o arco-�ris e com luzes coloridas. Algu�m teve que adaptar todo este conhecimento fant�stico � cor material, e ela faz isso lindamente", afirma Loske.

O espectro de cores que Newton descobriu com seus prismas cuidadosamente angulados parecia muito mais encenado do que natural — tons de um intelecto obsessivo sob condi��es controladas artificialmente, em vez dos tons desgrenhados da realidade desordenada.

A insist�ncia de Newton em curvar o arco-�ris para acomodar uma s�tima cor redundante, o �ndigo, para ficar ao lado do azul, meramente para garantir que houvesse tantas cores quantos planetas no c�u e notas na escala musical, � muitas vezes apresentada como prova de que ele moldou o que seus olhos realmente viam para se adequar a um ideal aerado.

O s�culo entre a publica��o de �ptica: ou um tratado das reflex�es, refra��es, inflex�es e cores da luz — em que Newton apresenta formalmente suas ideias — e os volumes de Gartside e Goethe sobre a teoria das cores na primeira d�cada do s�culo 18, seria palco de uma enxurrada de publica��es de escritores e artistas dispostos a conciliar os conceitos cl�nicos de cor de Newton com os aspectos pr�ticos de misturar pigmentos em uma paleta.

Reinventando a roda da cor

No centro de cada um destes esfor�os — empreendidos por todos, do pintor franc�s Claude Boutet, em 1708, ao entomologista brit�nico Moses Harris, em 1766, ao entomologista austr�aco Ignaz Schifferm�ller, em 1772 — estava uma releitura do, curiosamente incolor, disco de cores seminal, que Newton apresentou em sua �ptica.


O disco de cores de Newton
O disco de cores de Newton (foto: BBC)

Para Goethe, foi a incapacidade de Newton de reconhecer o papel fundamental que a escurid�o desempenha na forma��o das cores que vemos na experi�ncia cotidiana que motivou sua pr�pria reformula��o da roda de cores.

Em 1798, Goethe e o dramaturgo Friedrich Schiller colaboraram em um diagrama complexo que chamaram de "Rosa dos Temperamentos", no qual as �rbitas conc�ntricas de uma d�zia de cores e tra�os de car�ter correspondentes giram em torno de um abismo escuro que se abre no centro do diagrama.

Por fim, esta roda elaborada daria lugar ao c�rculo de cores mais famoso e simplificado de Goethe, que ele criou em 1809 e incluiu no ano seguinte em sua pr�pria "Teoria das Cores".

As rosas abstratas de Gartside, que mais parecem estilha�os luminosos suspensos no meio de uma explos�o do que esquemas cient�ficos antiquados, s�o muito menos editorializadas ou cuidadosamente legendadas do que os c�rculos de Goethe.

Ao apagar as etiquetas que seus precursores do sexo masculino inseriram em seus diagramas, Gartside permite que os choques e harmonias de cores se manifestem por si s�.

Ao fazer isso, ela reivindica o diagrama crom�tico como um documento puramente est�tico — uma obra de arte.

� tentador, dada a proximidade das datas de publica��o dos estudos de Goethe e Gartside, se perguntar se poderia ter havido alguma poliniza��o cruzada de ideias — ou se, de fato, a obra de Gartside teve alguma influ�ncia nas ideias ou pr�ticas de artistas e te�ricos posteriores. Quem vai poder dizer?

Mas � uma pergunta que Loske tamb�m se faz — ela acredita que h� ecos da "dimens�o abstrata das ilustra��es de Gartside" nas de JMW Turner, que tem sido visto pelos historiadores como um precursor da arte abstrata.

Os dois artistas contempor�neos sem d�vida compartilham um fasc�nio pelo peso da cor sem gravidade separada da subst�ncia incidental.

"� prov�vel que Turner sabia sobre o trabalho dela por meio de sua associa��o com v�rias sociedades de aquarela", diz Loske, antes de admitir que "infelizmente, n�o h� evid�ncias disso".


'Azul', de Gartside
As manchas Gartside romperam os c�rculos de cores dos te�ricos anteriores (foto: Clive Boursnell)

"N�o h� evid�ncia disso" � o beco sem sa�da desanimador, embora familiar, a que chega qualquer cr�tico que tente avaliar a contribui��o de artistas e escritoras do sexo feminino cujas realiza��es foram totalmente ignoradas, desprezadas de forma humilhante ou desonestamente n�o reconhecidas.

Estas s�o as tr�s vertentes lament�veis pelas quais a hist�ria cultural conspirou com frequ�ncia contra a genialidade das mulheres. � uma designa��o em que se encontra tamb�m o legado irresist�vel da artista e pintora americana Emily Noyes Vanderpoel, cujas not�veis %u200B%u200Bideias e obras Loske tamb�m passou um tempo ressuscitando.

Assim como Gartside, um s�culo antes, Vanderpoel, de Nova York, cercou-se de aquarelistas amadores e publicou um estudo de cor ilusoriamente despretensioso, cujas ilustra��es internas, devidamente analisadas e reconhecidas, confundem a cronologia dos marcos da arte moderna.

O que distingue a obra de Vanderpoel, Color Problems: A Practical Manual for the Lay Student of Color, publicada em 1902, s�o sequ�ncias de "an�lises de cores" nas quais, "Vanderpoel decomp�e uma imagem, um objeto ou um padr�o de design em seus componentes crom�ticos, e apresenta a cor principal resultante em uma grade quadriculada de 10 x 10, com a distribui��o proporcional de cada cor para o total de 100 quadrados anotada abaixo", escreveu Loske.

O resultado � uma s�rie de esquemas impressionantes — matrizes semelhantes a QR Codes de pura cor pixelizada que antecedem as abstra��es geom�tricas de Piet Mondrian e seus descendentes minimalistas.

Mensurar plenamente o significado de Vanderpoel ou Gartside para o desenrolar da hist�ria da arte exigir� o tipo de aten��o acad�mica que � dispensada �queles com um perfil de maior visibilidade — um dilema para o qual Loske est� determinada a encontrar uma solu��o.

"Quero criar um c�none de mulheres que escreveram sobre cores", diz ela sobre sua ambi��o mais ampla.

"Com as mulheres h� toda uma s�rie de problemas: a log�stica, como voc� obt�m educa��o, como voc� obt�m acesso a recursos, quem permite que voc� escreva, quem permite que voc� publique."

A imagem que Loske est� montando pacientemente, de cada figura feminina esquecida com um tra�o em sua tela, promete desafiar a imagem que temos na nossa cabe�a sobre as paletas de quem realmente influenciou as formas de arte. Mal posso esperar para v�-la.

Leia a �ntegra desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Culture.

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