
Quando a escritora americana Ursula K. Le Guin (1929-2018) iniciou sua carreira, entre o fim dos anos 1950 e o come�o dos anos 1960, algo em torno de 10% a 15% dos autores de fic��o cient�fica eram mulheres, de acordo com um estudo do pesquisador Eric Leif Davin. Talvez isso explique por que ela se debru�ou t�o seriamente sobre a quest�o de g�nero em seu livro mais conhecido, A m�o esquerda da escurid�o, publicado em 1969 e que est� ganhando uma nova edi��o comemorativa de 50 anos pela editora Aleph.
A m�o esquerda da escurid�o narra a viagem do diplomata terr�queo Genly Ai ao planeta Gethen. Sua tarefa � convidar os habitantes desse mundo para uma confedera��o interplanet�ria da qual diversos outros povos espalhados pelo espa�o fazem parte – essa esp�cie de Organiza��o dos Planetas Unidos est� presente em outras obras relevantes da autora, como em Os despossu�dos, romance sobre a Guerra Fria ambientado entre dois planetas que se orbitam, um capitalista e outro comunista, evidenciando os lados sombrios de ambos os sistemas econ�micos.
A miss�o diplom�tica de Genly Ai parece simples, at� que ele de fato entra em contato com os habitantes de Gethen e compreende como eles s�o. Embora semelhantes em quase tudo � fisiologia dos seres humanos, essas pessoas t�m uma caracter�stica fundamental para o romance: eles s�o ambissexuais, ou seja, podem assumir ambos os sexos, masculino e feminino. Quando eles entram no per�odo reprodutivo, tornam-se machos ou f�meas – sem poder escolher ou mesmo prever qual condi��o v�o desenvolver naquele cio – e acabam desempenhando o papel masculino e feminino diversas vezes ao longo da vida, apenas para fins sexuais e reprodutivos.
Em reflex�es posteriores, Le Guin admitiu que seu romance tinha um tom heteronormativo demais para o seu gosto – a anatomia dos habitantes de Gethen n�o admite g�neros neutros, fluidos ou qualquer varia��o queer, tampouco s�o mencionados casos de homossexualidade entre os personagens.
De qualquer forma, feita essa ressalva, a biologia peculiar de Gethen define a tem�tica tratada em A m�o esquerda da escurid�o: a enorme influ�ncia do g�nero na vida n�o sexual das pessoas. Por meio de personagens que n�o se assumem nem como homens nem como mulheres, � poss�vel perceber o coment�rio de Le Guin sobre o machismo no nosso mundo.
ENTRELINHAS
Toda a reflex�o do romance, sempre pelas entrelinhas, se d� pelo contraste dessa sociedade, que �, por defini��o, livre de machismo, uma vez que n�o h� homens e mulheres permanentes, como a nossa, em que o g�nero de uma pessoa define todas as inst�ncias de sua vida, ainda que essas facetas n�o tenham nada a ver com sexo. � curioso, por exemplo, ver como Genly � uma aberra��o para os habitantes de Gethen por ter um g�nero definido e, portanto, estar pronto para acasalar a todo momento, algo impens�vel no planeta e que o faz ser visto como um pervertido.A m�o esquerda da escurid�o questiona dessa forma os pap�is sociais atribu�dos aos g�neros, indicando, por exemplo, que, sem o �mpeto masculino � viol�ncia, n�o haveria guerras – Gethem passa por um conflito duradouro entre as duas grandes na��es que dividem a superf�cie do planeta, mas essa disputa nunca chega �s vias de fato, sendo travada de forma n�o violenta, talvez uma met�fora da Guerra Fria, que estava em seu auge na �poca.
Apesar de imputar a natureza b�lica ao lado masculino da humanidade, Le Guin, em uma das �ltimas entrevistas de sua vida, em 2017, demonstrou uma postura abertamente pacifista a respeito da quest�o de g�nero. Ela afirmou que n�o considerava justo rotular como uma "luta" a busca por direitos igualit�rios entre homens e mulheres: "Chamar de 'luta' imediatamente faz minha mente assumir que essa � uma batalha de mulheres contra homens. N�o � nada desse tipo. � uma tarefa para todos n�s, uma �rdua tarefa. Tanto mulheres como homens t�m muito trabalho a fazer, a fim de ganhar e manter liberdade, igualdade e justi�a para todos".
Essa fala n�o poderia resumir melhor o cerne de A m�o esquerda da escurid�o, que continua atual, meio s�culo depois de seu lan�amento.

A m�o esquerda da escurid�o
• Ursula K. Le Guin
• Aleph (304 p�gs.)
• R$ 64,90