Maeve Jinkings*
Especial para o Estado de Minas

Em abril de 2017, estive na cidade de Mariana e no subdistrito de Paracatu de Baixo com Walter Salles e uma equipe de cinema, a fim de realizar um filme sobre o rompimento da barragem da Samarco.
Junto �s v�timas, busc�vamos entender como se sentiram no dia do desastre e como permaneciam lidando com suas mem�rias. Logo ap�s a trag�dia, imagens da destrui��o foram exaustivamente replicadas, comovendo o pa�s e o mundo. No entanto, passado o primeiro momento de como��o, os atingidos sentiam-se falando sozinhos.
Diante da imaterialidade de comunidades centen�rias levadas pelos rejeitos t�xicos, falar era uma forma de resgatar suas identidades e fazer justi�a. Hoje penso como a sonoridade da trag�dia me deu a dimens�o do absurdo: do estrondo inicial � luta solit�ria das vozes atingidas. A mem�ria do som da avalanche e suas narrativas orais foram a tradu��o mais humana das ru�nas expostas.
Aprendi que o som � mal-educado, desconhece as barreiras f�sicas e a ideia de propriedade. Chega antes da mat�ria, se propaga atrav�s da vibra��o e faz com que n�o seja �bvia ou visualmente expl�cita a sua influ�ncia sobre n�s. Percebemos o som, mas n�o conseguimos v�-lo.
Que dizer do estrondo de um enorme mar de lama? Relatos falam de um som assustador derrubando �rvore, levando casa, carro, um som de filme de terror. O ru�do encontrou pessoas na mesa de almo�o ou na pr�pria cama, de onde tiveram que sair correndo. Antes de ver, puderam escutar. Perderam tudo. O vale virou sil�ncio.

A narrativa do absurdo parece ter ficado presa debaixo de lama. Aquilo que n�o foi dito matou pessoas: “A sirene de alerta nunca tocou, nem sei qual � o som dela”, relatam sobreviventes.
Passado o primeiro momento da trag�dia, o som permanece a assombrar. Como se ultrapassasse n�o apenas barreiras f�sicas, mas tamb�m temporais. Entrevistando uma v�tima de Mariana, seu olhar distante e assustado me diz que acorda de madrugada escutando a avalanche. O cora��o acelera, acha que vai morrer: jamais est� a salvo. Aquilo que matou seus parentes e amigos tampouco era vis�vel, no entanto estava vibrando escondido no interior de um campo t�xico aparentemente controlado. Esse descolamento da imagem e do que atribu�mos a ela traduz o pr�prio pesadelo da experi�ncia.
Depoimentos revelam que muitas pessoas que faleceram ficaram paralisadas, sem rea��o, hipnotizadas pelo que estavam vendo sem conseguir reagir. Hipnotizadas pela imagem. “N�o posso mais olhar para uma montanha, sen�o vejo a onda vindo outra vez”, desabafa uma das v�timas atingidas pelos rejeitos.
Os absurdos do Brasil de 2019 n�o cessam de se acumular sobre n�s, e sempre me vem � mente a dor dos sobreviventes, mas tamb�m o pr�prio sentido de soterramento no qual vejo o pa�s. Convivendo com v�timas das barragens, escutei muito a palavra “impunidade”, mas tamb�m o sugestivo nome de seu jornal comunit�rio: A Sirene.