2019, o ano do cinema verdade e de um futuro incerto
Filmes retrataram desigualdade social, impactos ambientais e protestos que ocuparam o notici�rio num um ano marcado por ataques � produ��o e aos artistas
postado em 31/12/2019 04:00 / atualizado em 30/12/2019 18:56
Bacurau, de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles, foi um dos filmes brasileiros de destaque este ano (foto: Victor Juca/Divulga��o)
Terminou sendo a tend�ncia do ano, esbo�ada em Cannes e confirmada em Veneza. Ao longo de 2019, manifestantes foram �s ruas protestar contra o estado do mundo. Desequil�brio ambiental, desigualdade social. O cinema retratou o fen�meno em Bacurau, Les mis�rables e Parasita, o vencedor da Palma de Ouro. Coringa, o antagonista de Batman, liberou a revolta surda que o transforma num inc�modo que, finalmente, se revela uma lideran�a no mundo dist�pico.
Na seara dos blockbusters, Os Vingadores e a garota deposit�ria da For�a, a Rey de Star Wars Epis�dio IX, conseguiram reverter o quadro de horror e salvar a humanidade. Um sonho de cinema, numa temporada marcada pelo pesadelo. No Brasil e no mundo, houve sintonia. Foi um ano dif�cil, em que a categoria foi criminalizada, num discurso marcado pelo achismo e pela falsidade ideol�gica.
A categoria paga impostos que se transformam num fundo para o financiamento de filmes, mas o governo Bolsonaro tentou, o tempo todo, indispor a sociedade com seus artistas, como se eles estivessem desviando dinheiro de educa��o, sa�de, seguran�a para fazer obras pornogr�ficas e ideologizadas.
Quem diz isso � Luiz Carlos Barreto, cuja folha de servi�os prestados � cultura brasileira vem desde a d�cada de 1950, no m�nimo. Barret�o atravessou os anos de chumbo da ditadura e nunca viu tanta dificuldade quanto agora, mas n�o desanima. “Quanto mais tentam destru�-lo, mas o cinema brasileiro resiste”, afirma.
Destaques do cinema nacional em 2019
Foi um ano de grandes filmes brasileiros, e o maior deles � Bacurau, de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles. A cidade do sert�o riscada do mapa e os sertanejos que pegam em armas contra os gringos que vieram – por qu�? – elimin�-los. Nenhuma complac�ncia com o outro, nenhuma vontade de entendimento. Fic��o e document�rio deram conta da manipula��o em processo.
A mineira Petra Costa, com seu discurso em primeira pessoa – neta de um dos donos da empreiteira Andrade Gutierrez –, pode disputar o Oscar com seu longa Democracia em vertigem, que exp�e as incongru�ncias do processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Democracia em vertigem, de Petra Costa, disputa indica��o para Oscar de melhor document�rio (foto: Netflix/Divulga��o)
Susana Lira, em A torre das donzelas, mostrou outro vi�s. Deu voz a Dilma Rousseff e a mulheres que estiveram presas com ela durante a ditadura militar. Entende-se melhor a intransig�ncia da ex-presidente em negociar.
Cristiano Burlan narra outro processo. Em Elegia de um crime, volta-se para um epis�dio traum�tico da pr�pria vida e recria o assassinato da m�e, persegue seu matador. � um filme duro, cruel, e regenerador. Exp�e o feminic�dio que faz das mulheres v�timas preferenciais do machismo. N�o apenas elas. Gays e trans.
Em Elegia de um crime, Cristiano Burlan recria assassinato da m�e e exp�e o feminic�dio no pa�s (foto: Vitrine Filmes/divulg��o)
A rosa azul de Novalis fez a suprema provoca��o do ano. No Brasil da religi�o ideologizada, o personagem de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro, crendo-se a encarna��o do poeta rom�ntico alem�o, busca a inating�vel rosa azul e encontra uma entrada para o sagrado.
Isso para n�o falar do que, nas periferias, vem ocorrendo com jovens negros e pobres – tema de No cora��o do mundo, de Gabriel Martins e Maur�lio Martins, e Temporada, de Andr� Luiz Oliveira, produ��es mineiras. Assim como o empoderamento marcou 2018, com a Mulher-Maravilha, houve em 2019 Pantera Negra e os pr�mios para Spike Lee no Oscar.
Ano de produ��o rica no cinema
Apesar dos n�meros amplamente favor�veis aos filmes internacionais, foi um ano muito rico para a produ��o brasileira. O cinema de g�nero marcou presen�a. Do mundo vieram os fen�menos Coringa e Parasita. A quest�o n�o � mais se Joaquin Phoenix estar� entre os indicados para o Oscar, mas se finalmente ganhar� o pr�mio. S� se der a louca na ind�stria seu Coringa n�o estar� entre as cinco maiores interpreta��es do ano. Da mesma forma, � fava contada que Parasita estar� entre os indicados para filme internacional. A d�vida, em termos, � se o sul-coreano Bong Joon-ho, como no Globo de Ouro, concorrer� a melhor diretor.
Futuro incerto nas telas
Hostilizado pelo governo Bolsonaro, o cinema brasileiro viveu um 2019 para l� de bom. Explica-se: o que chegou �s telas agora � fruto de trabalho dos anos anteriores. N�o sabemos como ser� daqui para a frente. Em todo caso, este ano foi brilhante. A come�ar pelos premiados internacionais, entre os quais destacam-se Bacurau, de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles, e A vida invis�vel, de Karim A�nouz, ambos vitoriosos no mais badalado festival de cinema do mundo, Cannes, na Fran�a.
Bacurau se tornou o filme do ano – n�o apenas por seus pr�mios e sua qualidade est�tica, mas por uma quest�o de timing, talvez at� involunt�ria. Com sua f�bula dist�pica de um futuro no qual partes do Brasil se tornam territ�rios de ca�a de pa�ses desenvolvidos, o longa levantou enorme pol�mica simplesmente pelo fato de ter colocado em pauta a resist�ncia popular. Ao contestar a “�ndole pac�fica do povo brasileiro”, como dizem os pol�ticos, tal hip�tese, ainda que ficcional, despertou a ira de bem-pensantes patr�cios.
J� A vida invis�vel aborda a quest�o feminina por meio da hist�ria de duas irm�s que n�o conseguem realizar suas potencialidades, v�timas do machismo no Rio de Janeiro dos anos 1950. Baseado no livro de Martha Batalha, o filme foi indicado pelo Brasil para concorrer a uma das vagas do Oscar, mas n�o chegou l�. Isso em nada o diminui. � de uma beleza terna e de uma tristeza infinita. Fernanda Montenegro entra nos 15 minutos finais e arrasa.
A produ��o documental tamb�m bombou. Entre dezenas de lan�amentos, Democracia em vertigem, de Petra Costa, est� presente na lista pr�via do Oscar. Pode disputar a estatueta. � uma leitura bastante pessoal – e talvez por isso mesmo muito interessante – de todo o processo que come�ou com as manifesta��es em 2013, desestabilizou governos, levou ao impeachment de Dilma Rousseff, � pris�o de Lula e culminou com a elei��o, em 2018, de um pol�tico de extrema-direita. Um retrato da trag�dia brasileira. Torre das donzelas, de Susanna Lira, relaciona-se com o tema, abordando o tempo da ditadura por meio de mem�rias de presas pol�ticas.
Distopias brasileiras
Outro document�rio, Estou me guardando pra quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes, mostra uma faceta oculta do “empreendedorismo” � brasileira. Os habitantes de Toritama, no interior de Pernambuco, ralam o ano inteiro na fabrica��o de jeans, em condi��es insalubres e inumanas, e tiram folga para o carnaval, quando vendem tudo e v�o � praia se divertir. A quarta-feira de cinzas assinala o in�cio de novo ciclo.
A exemplo de Bacurau, outro filme pernambucano, Divino amor, projeta uma distopia brasileira para daqui a poucos anos. Desta vez, na imagina��o de Gabriel Mascaro, temos uma rep�blica evang�lica na qual o culto � B�blia e � carne se equivalem. Uma cr�tica corrosiva ao fanatismo religioso contempor�neo. Ainda bem que os pastores n�o o viram, sen�o causaria mais esc�ndalo do que o especial de Natal do Porta dos Fundos.
Tamb�m se destacaram o intimismo pol�tico do belo filme mineiro Temporada, de Andr� Novais Oliveira; Domingo, de Felipe Barbosa, criativa hist�ria de uma reuni�o de fam�lia no dia em que Lula venceu a elei��o; a pegada forte de Morma�o, de Marina Meliande; Inferninho, de Guto Parente e Pedro Di�genes, com sua deslumbrante est�tica beirando o kitsch, um Querelle � brasileira; e a sempre rica imagina��o visual de Edgard Navarro em Abaixo a gravidade.
Pela diversidade est�tica e tem�tica, pelo desejo de tematizar o status quo, indo al�m dele, o cinema brasileiro tem cumprido sua miss�o de forma muito efetiva.