
Os gols foram muitos. No total, 1.282 em 1.363 jogos. As apari��es cinematogr�ficas, tamb�m. Mais de 10, como ator, personagem ou tema de document�rio. Mas, aparentemente, isso ainda n�o foi suficiente para contemplar toda a grandeza da hist�ria do maior jogador de futebol de todos os tempos.
Na pr�xima ter�a-feira (23/02), a Netflix lan�a “Pel�”, novo document�rio sobre o Rei. Se filmes anteriores j� mostraram os lances e as conquistas do craque, desta vez a narrativa perpassa a rela��o entre seu hegem�nico reinado no gramados e o fr�gil regime democr�tico brasileiro.
Em “Arremesso final”, uma de suas produ��es documentais de maior sucesso recente, a Netflix contou a hist�ria da �ltima temporada de Michael Jordan, astro m�ximo do basquete norte-americano, pelo Chicago Bulls. A s�rie de 10 epis�dios parte desse desfecho para uma recapitula��o mais ampla do que foi a carreira de Jordan.
“Pel�” tem uma estrutura parecida, mas conta sua hist�ria em apenas 1h45 de filme, cuja exibi��o a Netflix liberou para o Estado de Minas. As primeiras cenas mostram o est�dio Azteca, no M�xico, lotado para a abertura da Copa do Mundo de 1970.
Se o final foi feliz para a Sele��o Brasileira, aquele in�cio era extremamente conturbado para o time, para o pa�s e para o �dolo maior da na��o. No primeiro depoimento para a produ��o, Pel� confessa o peso da responsabilidade que sentia na �poca.
Assista ao trailer:
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Desacreditado na Copa do Mundo de 1970

Com 80 completados em outubro passado, Pel� entra em cena amparado por um andador, senta-se em uma sala vazia e viaja no tempo, relembrando sua trajet�ria.
Algumas hist�rias batidas s�o resgatadas, como o in�cio da carreira e a motiva��o em virar jogador ao ver o pai, Dondinho, chorar pela derrota brasileira na final da Copa de 1950, em pleno Maracan�. Por�m, logo o contexto se amplia.
Se em “Pel� eterno”, lan�ado em 2004, a dire��o de An�bal Massaini Neto e o roteiro de Jos� Roberto Torero se preocuparam em destrinchar a magia futebol�stica do craque, at� recriando graficamente um gol antol�gico nunca filmado, a nova produ��o traz a curiosidade estrangeira sobre o Brasil em que Pel� surgiu. Ou melhor, o Brasil que ele fez surgir.
Assinam a dire��o os brit�nicos Ben Nicholas e David Tryhorn, que j� trabalharam juntos em outros document�rios sobre atletas, como “Crossing the line” (2016), a respeito da dram�tica hist�ria do velocista norte-americano Danny Harris.
O craque al�m do campo

Com essa experi�ncia de mostrar o esporte al�m do campo de jogo, os documentaristas conectam a hist�ria de um Pel� ainda garoto, rec�m-chegado a Santos, onde se formaria atleta, nos anos 1950, com a de um pa�s tamb�m muito jovem e ainda irrelevante mundialmente.
Ainda aos 17, Pel� decide a final da Copa de 1958 a favor do Brasil, na Su�cia. Na mesma �poca, o Brasil se modernizava e entrava nos anos 1960 sob grande otimismo nacional, embalado pelo sucesso esportivo trazido pelo futebol, que venceria outra Copa, em 1962.
As cenas trazem imagens impressionantes da �poca, com o resgate de filmagens feitas na Su�cia, em 1958, e tamb�m no Brasil. A produ��o ainda buscou registros do passado em v�rios outros pa�ses por onde Pel� jogou. At� a cinemateca do Cairo, no Egito, serviu de fonte.
Trajet�ria de orgulho
A trajet�ria mundialmente vitoriosa de Pel� com o Santos, nos anos 1960, � documentada com cenas deleitosas para quem ama futebol e depoimentos de ex-companheiros. At� um encontro recente de Pel� com eles, em um churrasco, � registrado. Mas a ideia principal � dar a dimens�o do que o ainda jovem jogador passou a representar no imagin�rio nacional, sendo um homem negro, globalmente reverenciado.
Para isso s�o convidados a dar seu depoimento especialistas em futebol, como os jornalistas Juca Kfouri, Jos� Trajano e Paulo C�sar Vasconcelos. Mas tamb�m falam o m�sico e ex-ministro Gilberto Gil, a deputada federal e ex-ministra Benedita da Silva e o ex-presidente da Rep�blica Fernando Henrique Cardoso, ampliando a compreens�o pol�tica, social e cultural do que Pel� representava naquela �poca, quando o pa�s passou a ter um sentimento de orgulho nacional diante das outras na��es, vendo o crescente interesse internacional pelo que se passava aqui.
Promovido a superastro, Pel� come�a a dominar a publicidade, a m�dia e sua vida pessoal tamb�m vira obsess�o do imagin�rio popular. Pela cronologia mostrada no filme, � quando ele cai em certo ostracismo futebol�stico. Nessa mesma �poca, a euforia otimista vivida no Brasil � abruptamente interrompida pelo golpe militar de 1964, que deu lugar � violenta ditadura.
Em 1966, a sele��o vai para a Inglaterra com a miss�o de conquistar o tricampeonato mundial, com todas as esperan�as depositadas sobre Pel�. Paralelamente, com a proje��o internacional de que desfrutavam, o atleta era pressionado a se posicionar sobre os horrores que ocorriam na pol�tica do pa�s. Por�m, isso nunca foi de seu feitio, como atestam depoentes do filme, como o ex-jogador Paulo C�zar Caju, que refor�a sua cr�tica � neutralidade do Rei.
Mostrando que, na mesma �poca, o boxeador Muhammad Ali se notabilizou por enfrentar o governo dos EUA, recusando-se a servir ao ex�rcito do pa�s na Guerra do Vietn� e ainda fazendo campanha contra o combate, o document�rio questiona Pel� pessoalmente sobre seu comportamento durante a ditadura, e ele d� suas explica��es sobre o tema.
O jogador fala abertamente se o regime interferia ou n�o na atividade futebol�stica e ainda revela como lidava com as informa��es sobre os crimes cometidos pela ditadura, como torturas, sequestros e assassinatos.
“Em meados dos anos 60, o mundo come�ou a mudar, e voc� come�ou a ver figuras como Muhammad Ali realmente desafiando o establishment. Pel�, a essa altura, n�o sabia muito bem como se adaptar a esse mundo”, disse Ben Nichols, um dos diretores, ao portal ingl�s “iNews”.
NEUTRALIDADE
Em seus coment�rios sobre a produ��o, David Tryhorn, que j� morou no Brasil, diz que, “se voc� perguntar a qualquer brasileiro, a principal cr�tica contra ele (Pel�) tende a ser sua neutralidade: uma postura ligeiramente apol�tica ou ap�tica. Era importante pression�-lo: deveria ele ter feito mais? Poderia ter feito mais?", afirma o diretor. Na vis�o dele, “o Brasil antes de Pel� e o Brasil depois de Pel� s�o dois pa�ses totalmente diferentes em termos de identidade cultural e nacional”.O filme inclui cenas da viol�ncia praticada nas ruas pelo governo militar e destaca a instaura��o do AI-5, em 1968, trazendo o ex-ministro Ant�nio Delfim Netto, um dos signat�rios do Ato, hoje com 92 anos, como um dos entrevistados. Nessa convuls�o, a Sele��o Brasileira, que vinha do fracasso em 1966, se prepara para uma nova Copa, desta vez amplamente utilizada como propaganda nacionalista pela ditadura.
Pel�, que no ano anterior ao mundial do M�xico marcara seu mil�simo gol, estava no centro disso tudo. Ele tentava se equilibrar entre a pr�pria desesperan�a de performar bem ap�s o �ltimo fracasso, a crise pol�tica que sacou o treinador Jo�o Saldanha do cargo meses antes da Copa, em virtude de uma declara��o do t�cnico que desagradou o governo, e a opress�o pol�tica no pa�s.
Tudo isso � escancarado em imagens e depoimentos, alguns de certa forma contradit�rios por parte de Pel�, sobre seu entendimento em rela��o � ditadura. Contudo, a reden��o do jogador com seu futebol magistral nas seis vit�rias brasileiras na Copa de 70 � detalhada com toda a riqueza visual de seus lances, dribles, gols e “n�o-gols” espetaculares.
O pr�prio Rei vai �s l�grimas, no alto de seus 80 anos, ao falar sobre o significado daquele momento com o qual conquistou a coroa futebol�stica, que at� hoje ningu�m conseguiu herdar.
RETRATOS DO REI
Confira outros document�rios sobre o craque
» 1962 - “O Rei Pel�” (Carlos Hugo Christensen)
» 1974 - “Isto � Pel�” (Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto)
» 2004 - “Pel� eterno” (Anibal Massaini Neto)
» 2018 - “O �ltimo show de Pel�” (Emanuela Audisio e Matteo Patrono)