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Estado de Minas LITERATURA

Diplomata transforma em livro drama de crian�as que testemunhou na Amaz�nia

Ana Beltrame lan�a 'O passeio de Dendiara', que conta a hist�ria de uma menina de origem ind�gena que engravida ap�s sofrer abuso no garimpo


27/03/2021 04:00 - atualizado 28/03/2021 14:32

Garota se banha no rio Amazonas, em Macapá. Escritora Ana Beltrame diz que o mundo desconhece a região, que é cenário de seu livro(foto: Apu Gomes/AFP)
Garota se banha no rio Amazonas, em Macap�. Escritora Ana Beltrame diz que o mundo desconhece a regi�o, que � cen�rio de seu livro (foto: Apu Gomes/AFP)


Tinha entre 10 e 12 anos. De seu passado, pouco sabia. Entre as vagas lembran�as estavam os apelidos dos sete irm�os; a m�e, Cinara ou Cen�lia, n�o estava certa do nome; al�m do Rio Curiau. Correndo inteiramente em territ�rio brasileiro, esse curso d’�gua brota da alta floresta amaz�nica, ao Norte do Amap�, rasga o estado, at� se lan�ar sobre o Rio Amazonas, nas proximidades da capital, Macap�. 

Foi essa refer�ncia geogr�fica que deu a Ana Beltrame, c�nsul-geral do Brasil em Caiena, capital da Guiana Francesa, entre 2008 e 2013, a certeza de que era brasileira aquela garota moreninha mi�da, franzina, de caracter�sticas ind�genas, acolhida no hospital local. Estava “embuchada” e com sa�de extremamente prec�ria. Desconhecia o pr�prio sobrenome. Dizia se chamar Dendiara; Dendy, chamavam-na os franceses. 

� na busca dos autores do crime e da viol�ncia cometidos contra Dendy, assim como a procura por sua origem e fam�lia, que Ana Beltrame constr�i a obra “O passeio de Dendiara” (Editora Tema), refer�ncia � caminhada di�ria para acompanhar a crian�a gr�vida da ala feminina para a ala infantil do Hospital de Caiena, momento em que, pouco a pouco, ganha a confian�a dela.

Com o apoio de uma rede informal de intelig�ncia, da qual participam ind�genas, ribeirinhos, brasileiros clandestinos e franceses, Ana Beltrame lidera a investiga��o. O fio que se revela do novelo de um drama social violento n�o diz respeito apenas a Dendy, que � ficcional. 

A personagem � representa��o de uma realidade brutal, do�da, de milhares de crian�as brasileiras da regi�o amaz�nica que s�o empurradas pela fome e o desespero para o garimpo ilegal, que adentra a floresta em territ�rio da Guiana Francesa. 

Atividade de alto risco, n�o apenas pela contamina��o com merc�rio e pelos perigos e doen�as da floresta, mas pelas rela��es e c�digos morais e de justi�a na fronteira movedi�a em que tangenciam sobreviv�ncia, ilegalidade e c�digos de justi�a pr�prios. 

Dendy, com diferentes batismos, s�o muitas e, sobretudo, s�o crian�as origin�rias de fam�lias com quem Ana Beltrame interagiu enquanto esteve � frente da representa��o brasileira em Caiena. “Dendiara n�o existe, mas o contexto e os fatos s�o verdadeiros. O vocabul�rio dela � o de uma crian�a daquela regi�o, e eu presenciei muitas delas vivenciando cada um dos fatos narrados”, afirma Ana Beltrame, atualmente embaixadora do Brasil no Uruguai. 

Toda a hist�ria se passa numa regi�o desconhecida pelo mundo e dos brasileiros, essa por��o amaz�nica do estado do Amap�, em sua fronteira com a Guiana Francesa, delimitada pelo Rio Oiapoque e, ao Norte, pela floresta mais in�spita e impenetr�vel, neste que constitui o Parque Nacional das Montanhas do Tumucumaque. 

Ao cora��o dessa selva, em que est�o fincados os marcos delimitadores entre os territ�rios brasileiro e franc�s, � transportado o leitor. “Pelo topo dessas montanhas, das mais hostis e inacess�veis do mundo, passa a linha imagin�ria da fronteira do Brasil, primeiro com o Suriname e, depois, com a Guiana Francesa. A linha imagin�ria � materializada, no ch�o, por sete marcos de cimento que, de tempos em tempos, as Comiss�es Demarcadoras de Limites, com t�cnicos brasileiros e franceses, fazem uma vistoria para ver se os marcos n�o ca�ram ou para limpar o mato crescido ao redor. E tamb�m para implantar os chamados ‘marcos de adensamento’, que s�o pequenas pilastras de cimento colocadas entre os marcos principais. Em geral, a viagem � feita de helic�ptero, com o apoio dos Ex�rcitos brasileiro e franc�s”, descreve a autora.

Em narrativa riqu�ssima, prop�cia ao etn�grafo, a autora desvenda o bioma, as culturas, os alimentos, o linguajar e os meios de vida que se constroem em torno do garimpo ilegal – como o Putanic, barco-prost�bulo que viaja pelos rios do Amap� e da Guiana Francesa, ironicamente apelidado em refer�ncia ao Titanic. Carrega sexo, forr� e cerveja aos garimpos da regi�o. 

H� atravessadores, os servi�os de transporte, o com�rcio de alimentos e de merc�rio. Tudo pago a peso de ouro. Elevada � pot�ncia, a mis�ria humana emerge pela narrativa da coloniza��o da regi�o e entre cen�rios por que transitam as personagens, frequentemente instadas a enfrentar dilemas existenciais. � assim que a “madrinha”, que “ganha” da m�e vulner�vel a filha Dendiara, que na ocasi�o tinha n�o mais de 4 anos, arrasta consigo a menor ao mesmo percurso infortunado que possivelmente atravessou em sua pr�pria inf�ncia. 

Cozinheira e comerciante no garimpo ilegal, � noite prostituindo-se, guia a crian�a “afilhada” pela escravid�o na selva, paga com a comida de cada dia. E, diante da gravidez de Dendy, a madrinha opta por salv�-la da selva, sob risco de ser executada, deixando-a na estrada entre Caiena e Saint-Georges, esta, pequena cidade na margem francesa do Rio Oiapoque. 

Ali, caminhando lentamente na dire��o norte pelo acostamento da estrada at� a barreira de pol�cia de B�lizon, perto da ponte sobre o Rio Approuague, a crian�a do sexo feminino se rende aos agentes da pol�cia francesa. “Encontrada”, como quis a madrinha, levada ao hospital, Dendy narra � autora do livro o infort�nio de tantas inf�ncias brasileiras. 

Leia a seguir entrevista com a autora: 
 
Quando a senhora decidiu escrever a hist�ria de Dendiara, representa��o de tantas crian�as brasileiras da fronteira amaz�nica entre o Amap� e a Guiana Francesa?
Quando servia em Caiena, percebi que quase ningu�m conhecia nem o Amap� nem a Guiana Francesa. Eu recebia correspond�ncia dirigida a Gana e a outros lugares do mundo. Ent�o, achei que tinha de escrever algo sobre aquela regi�o t�o desconhecida e com tantas hist�rias de brasileiros que vivem na fronteira do Oiapoque. O que escrever, ainda n�o sabia, at� que comecei a prestar assist�ncia consular a diversas crian�as. A personagem Dendy n�o existe. Ela � uma mistura de diversos perfis de crian�as brasileiras que encontrei, justamente para n�o identificar nenhum menor de idade. As crian�as que ajudei, que eram abusadas nos garimpos, abusadas em casa, faziam trabalho escravo, continuam l�. Quando comecei a atender crian�as abusadas, achei que o tema deveria ser abuso infantil.

Sem conseguir sustentar os oito filhos, o mais novo deles cego, a m�e de Dendiara, viciada em drogas, doa a filha para a “madrinha”. Essa pr�tica � frequente? 
Sim, � um fen�meno muito comum em algumas regi�es do Brasil. Pais desesperados e sem ter como sustentar os filhos entregam um deles, na esperan�a de que tenha mais oportunidades na m�o de outras pessoas. As m�es fazem isso com muita dor, rezando para que tenham “dado” a crian�a para a pessoa certa. Conheci m�es que haviam doado, ainda que numa esperan�a desconfiada de que a crian�a estivesse sendo bem criada. Algumas vezes, as crian�as se lembram de ter vivido com outra m�e e irm�os. E a m�e de cria��o, em geral, tamb�m n�o esconde e se faz chamar de madrinha. Vi casos bem-sucedidos. E vi casos dram�ticos.

Em sua obra, as personagens que trabalham no garimpo ilegal realizado na Guiana Francesa s�o brasileiras. H� outras nacionalidades na Guiana Francesa operando nessa atividade ilegal?
Os brasileiros det�m compet�ncia para sobreviver na floresta tropical �mida. N�o � para qualquer um. O caboclo est� habituado, s�o gera��es vivendo ali. Ele tamb�m domina essa tecnologia prim�ria de extrair ouro com bateia, sugador e com merc�rio: passa de pai para filho. � uma coisa que os brasileiros sabem. Ent�o, junta um grupo, que sai mato adentro procurando ouro. Quando em territ�rio brasileiro, come�a a procurar sem a permiss�o do Minist�rio das Minas e Energia, sem autoriza��o do Ibama. Quando na Guiana, ao encontrar sinais de ouro, outros garimpeiros atravessam o Amap�, cruzam o Rio Oiapoque e entram na Guiana Francesa pela floresta. Metade da Guiana � parque nacional, zona protegida da Fran�a. A pol�cia reprime, mas depois os garimpeiros voltam. Aqueles homens ficam no mato procurando ouro. Chegam l� mulheres que come�am a prestar servi�os. Algumas garimpam, fazem papel de enfermeiras, cozinheira e prostituta. O mais comum � ser cozinheira e prostituta. Mas conheci tamb�m mulheres que foram para ser cozinheiras e n�o aceitaram ser prostitutas. 

Dendiara � uma crian�a quando levada ao garimpo. E ali foi prostitu�da. Com que frequ�ncia esse tipo de crime ocorre?
Dendiara ajudava na cozinha, um trabalho pesado, pois lava panela grande com �gua polu�da pelo merc�rio, sem sab�o, com areia. Era analfabeta e n�o conhece o mundo para al�m da selva. E era abusada. H� meninas hoje nessa situa��o l�. Em qualquer garimpo clandestino vai haver prostitui��o e vai haver menores na prostitui��o. Isso em v�rias regi�es do Brasil, n�o apenas no Norte. H� nesses garimpos uma supervaloriza��o da menina novinha, at� porque, com a gravidez e as doen�as ven�reas, as mulheres envelhecem muito r�pido. O garimpeiro, em si, em geral n�o v� nada errado em ter rela��es com meninas mais jovens. Acham que � um direito. Muitos deles sofrem tamb�m da urg�ncia de saber se estar�o vivos amanh�, pois o garimpo � muito violento. Basta a suspeita de que o garimpeiro est� escondendo ouro para que seja justi�ado. E tem as doen�as tropicais, tem a on�a, tem a cobra. De certa maneira, ele tamb�m � uma v�tima � sua maneira. � uma realidade brutal, de viol�ncia, inclusive em rela��o aos �ndios e quilombolas que vivem na floresta. Quanto mais garimpo, mais envenenamento das �guas e do meio ambiente, mais ricos ficam os atravessadores e mais pobres ficam os munic�pios, que n�o arrecadam nada e t�m de acolher crian�as abusadas. E quanto mais garimpo ilegal, mais pobre � a Amaz�nia. 
 
(foto: Reprodução)
(foto: Reprodu��o)
“O passeio de Dendiara”
• Ana Beltrame 
• Tema Editorial, 192 p�gs
• R$ 40 

 


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