
Milhares de vidas perdidas para um v�rus que obriga a popula��o a se isolar � espera da vacina que demora a chegar. Quando tudo parece terminar, dois anos passados, nada � mais o mesmo e as pessoas saem � procura de respostas. � sobre o Brasil da COVID-19 o novo livro do escritor Bernardo Carvalho. Mas nada � �bvio e realista na novela “O �ltimo gozo do mundo” (Companhia das Letras), um dos primeiros t�tulos ficcionais brasileiros a tratar da pandemia.
N�o h� nomes nem men��o a fatos concretos na narrativa. A figura central � uma escritora de fic��o e acad�mica que se v� destro�ada logo no in�cio da peste. O casamento, que julgava satisfat�rio, acabou. Os pais foram levados pelo v�rus. Mas h� esperan�a de futuro: a gravidez resultante de um encontro casual ocorrido dias antes de a crise sanit�ria ser decretada.
Quando o mundo � reaberto e a popula��o vai para as ruas em clima de euforia desmedida, ela pega o filho, que ainda n�o proferiu sequer uma palavra, e sai numa viagem desconcertante em busca de uma esp�cie de profeta. Esse homem � fruto da pandemia – como perdeu toda a mem�ria, tornou-se capaz de ver o futuro. Ou pelo menos o futuro que as pessoas, em busca de uma sa�da para o tempo em suspens�o, querem acreditar que possa existir.
� muito dif�cil imaginar um futuro pr�ximo quando n�o se d� para imaginar um futuro
Bernardo Carvalho, escritor
“O �ltimo gozo do mundo” nasceu da encomenda de um produtor de cinema que pretendia filmar uma hist�ria ocorrida imediatamente ap�s a pandemia. Carvalho havia passado o ano anterior � crise sanit�ria dando aulas em Berlim. Seus planos, na volta ao Brasil, eram de retomar um romance deixado pela metade. No decorrer de 2020, o projeto da encomenda foi implodido com a sa�da do produtor. Carvalho, que j� havia escrito boa parte da novela, encaminhou o livro � Companhia das Letras, seu 13º t�tulo pela editora.
“� muito dif�cil imaginar um futuro pr�ximo quando n�o se d� para imaginar um futuro. Ent�o, naturalmente, este se tornou o tema do livro. O fio condutor, essa m�e com o garoto, tem uma coisa de romanesca. Tamb�m me interessava muito a aus�ncia da possibilidade de futuro, e o livro se tornou uma alegoria da conquista da fala”, explica Bernardo Carvalho.
Escrever fic��o sobre uma trag�dia quando ainda se est� no meio dela foi um desafio, diz o autor. “Embora tivesse o privil�gio de poder ficar confinado em casa, come�aram a acontecer coisas muito intensas pr�ximas a mim, como a dem�ncia senil. Ent�o, fiz a conex�o entre a dificuldade de imaginar o futuro e a perda de mem�ria, quest�es associadas ao momento social e pol�tico em que estamos. Quando se ataca a possibilidade de mem�ria, do passado, fazendo com que as pessoas esque�am o que aconteceu, voc� tamb�m impede a possibilidade de futuro. Tudo vira pesadelo, del�rio.”
Para Carvalho, mais do que f�bula, seu livro tem um ar quase de par�bola. Ao colocar uma crian�a que ainda n�o tem condi��es de compreender a realidade � sua volta, o autor buscou como refer�ncia o “mundo infantilizado” em que nos encontramos. Para ele, “a nega��o da morte, do real” tem rela��o direta com isso. E a literatura est� num impasse.
''Fiz a conex�o entre a dificuldade de imaginar o futuro e a perda de mem�ria, quest�es associadas ao momento social e pol�tico em que estamos''
Bernardo Carvalho, escritor
“Existe a redu��o do realismo � confirma��o do que a gente quer ser. A ideia de que a literatura tem que ser a confirma��o da identidade � um pouco mercadol�gica. O leitor que precisa ser agradado, n�o pode ser contrariado e quando faz parte de um grupo n�o l� o que o contradiz, como um espelho do que se acredita, � uma redu��o da ideia de realismo.”
Na opini�o do escritor, a experi�ncia liter�ria n�o pode se limitar a ideias com as quais se concorda. “Minhas personagens falam por si, se contradizem. Um romance n�o � uma ilustra��o das minhas ideias e experi�ncias. Ele � o campo de batalha das ideias pelas quais sou atravessado.”
Carvalho critica a redu��o do debate que se v� atualmente. “Hoje, com as lutas identit�rias, lugar de fala, a literatura foi reduzida a uma simples representa��o. N�o h� contradi��o, � s� confirma��o e espelho. A literatura mundial j� vem caminhando para esse lugar h� algum tempo e a pandemia n�o interrompeu esse movimento”, acrescenta Carvalho.
De acordo com ele, “O �ltimo gozo do mundo” � um “intervalo” em rela��o ao seu romance iniciado antes da crise sanit�ria. Agora, com a novela lan�ada, Bernardo Carvalho retoma o projeto inacabado.

“O �LTIMO GOZO DO MUNDO”
• De Bernardo Carvalho
• Companhia das Letras
• 144 p�ginas
• R$ 49,90 (livro)
• R$ 29,90 (e-book)
TRECHO
“A espera estendida por uma cura ou vacina fez com que se adaptassem � nova vida como provis�ria. Com o tempo em suspens�o, o provis�rio se tornou natural, perene, n�o o resultado da amea�a mortal que os encurralava. A falta de perspectiva excita o medo, e ningu�m sobrevive com medo. Assim passaram a viver no paradoxo da nega��o. Foram mais de dois anos, entre per�odos de flexibiliza��o, �s vezes espont�nea e inconsequente (por duvidar do que n�o viam, por negar o que n�o correspondesse ao espelho das redes sociais, muitos logo se sentiam imunes e cansavam de esperar), e eventuais retomadas compuls�rias de confinamento, para tentar remediar os estragos da inconsequ�ncia, at� a descoberta de uma vacina aparentemente segura trazer de volta n�o a ilus�o de normalidade em que muitos j� viviam, mas uma possibilidade mais concreta e confi�vel de futuro. � claro que nada disso traria de volta a vida nos termos do passado. De repente, tudo era exagero. As ruas se encheram de gente que se reunia, se abra�ava e se beijava em desafio ao perigo invis�vel, supostamente vencido. Tudo o que n�o puderam fazer durante o confinamento, faziam em dobro fora dele. Queriam se reencontrar, tocar-se?, mas nada era suficiente. Uma onda de euforia tomou conta do mundo, uma histeria coletiva compensat�ria, como a ‘febre da dan�a’ � sa�da da Idade M�dia.”
NA JANELA
No pr�ximo domingo (27/06), �s 19h, Bernardo Carvalho participa da segunda edi��o do evento on-line “Na Janela: Reflexos – Di�logos liter�rios”, promovido pela Companhia das Letras. No encontro, ele vai conversar com o escritor e professor Jeferson Ten�rio. O bate-papo ser� transmitido nas redes sociais (YouTube, Instagram, Facebook e Twitter) da editora.