
Um dos �ltimos bluesmen leg�timos conhecidos mundialmente, B. B. King se foi em 2015, aos 89 anos, depois de trilhar uma impressionante trajet�ria. Hoje, s� o tamb�m guitarrista Buddy Guy, de 84, pode lotar casas de shows longe de casa.
Homem negro sa�do da regi�o racista de Indianola, Mississippi, perdeu pai e m�e muito cedo, trabalhou nas lavouras de algod�o para sobreviver, viveu sozinho dos 9 aos 14 anos, tocou nas ruas, apanhou por entrar em banheiros de brancos, ousou arranhar as cordas do viol�o de um reverendo deixado sobre a cama da casa em que vivia, migrou para fazer suas primeiras grava��es em Memphis e se tornou uma lenda em vida.
B. B. King veio muitas vezes ao Brasil e, ao menos em 10 delas, se apresentou na casa de shows Bourbon Street Music Club, em S�o Paulo, tornando-se o padrinho do estabelecimento. Generoso com jovens estudantes, paciente com jornalistas, recebeu muitos deles em suas vindas e deixou relatos cada vez mais importantes para se entender o legado do blues, a cultura afro-americana mais decisiva e onipresente na forma��o de todas as outras culturas populares ocidentais de massa, a partir do in�cio do s�culo 20.
B. B. King, em sua visita de 2004, falou tamb�m ao produtor e diretor de cinema e TV Ricardo Nauenberg. O conte�do com o �udio das entrevistas foi editado, juntamente com imagens de um show e cenas de arquivo das �pocas narradas pelo m�sico, e transformado em um document�rio.
Dezessete anos depois da vinda do guitarrista, o filme “Black, white and blues” pode ser visto na plataforma ZYX (www.zyx.solutions), a R$ 10. As m�sicas que surgem ao fundo da narra��o n�o s�o de B. B. King, algo que pode causar alguma estranheza inicial, e o guitarrista s� aparece falando mesmo, em close, ao final do document�rio.
IMPACTO
Mas, apesar de ele j� ter contado muitas das hist�rias ao lado de David Ritz em sua �tima autobiografia “Corpo e alma do blues”, lan�ada no Brasil em 1999, o conte�do � de enorme impacto ao ser narrado pelo pr�prio m�sico.Ele fala de sua inf�ncia com bom humor, apesar dos tons que poderiam deix�-la tr�gica. Conta que, antes da morte da m�e, seu primeiro contato com um instrumento se deu na casa dos pais. Eles recebiam para jantares de domingo o reverendo Archie Fear, que sempre chegava com o mesmo viol�o que usava nas celebra��es batistas que conduzia na igreja local.
Quando a mesa estava posta, Fear deixava o instrumento na cama do quarto, e B. B. King, ent�o chamado pela fam�lia pelo nome de batismo, Riley, mexia em suas cordas. At� o dia em que foi surpreendido. "Ele me ensinou tr�s acordes. Acordes que uso at� hoje." Era a sequ�ncia b�sica do blues, sobre a qual repousaria seus solos pelos pr�ximos 80 anos.
B. B. King seguiu indo para a escola ap�s a partida da m�e, mas trabalhou bastante para a mesma fam�lia. "Eu ia para a escola depois de ordenhar 20 vacas por dia." Depois de aprender a dirigir um trator, ainda em Indianola, tornou-se um popstar.
"Um motorista de trator era como uma estrela na �poca", conta, sorrindo. Foi quando passou a ganhar US$ 22 por semana, o que n�o era pouco, mas que logo seriam menos do que passaria a receber tocando nas ruas, para o espanto de passantes negros e brancos. "Isso me fez ter outro plano de vida."

ENGAJAMENTO
Alguns tra�os da personalidade do guitarrista ficam evidentes em sua narrativa. Ao contr�rio do que se idealizou sobre sua imagem, B. B. King nunca foi um militante racial de liderar massas. Ele conta ter tido sempre mais simpatias pelo humanismo de Martin Luther King do que pelo belicismo de Malcom X e revela ter feito muitos shows para "arrecadar dinheiro para tirar pessoas da cadeia."Seu engajamento era sua pr�pria exist�ncia. Mesmo sem discursar nos palcos, sua aura pacifista desarmava os meninos brancos de cabelos compridos, a ponto de faz�-los todos lotarem um clube de blues em S�o Francisco.
Ao chegar para a apresenta��o e avistar a fila na porta, ele disse ao empres�rio: "Acho que estamos no lugar errado". Mas era ali mesmo. Os jovens brancos norte-americanos, depois de ouvir os ingleses do Who, dos Rolling Stones e dos Beatles falando de B. B. King, e ainda Eric Clapton, Jeff Beck, John Mayall, Animals, Jimmy Page e todos querendo ser B. B. King por ao menos alguns compassos, correram para saber quem era B. B. King.
A hist�ria n�o deixa de ser triste: a valida��o do m�sico nos Estados Unidos s� acontece depois de os brancos ingleses dizerem que ele prestava. A valida��o dos negros n�o bastava.
Anos antes da noite em S�o Francisco na qual B. B. King chorou copiosamente depois de ser apresentado com rever�ncias reais no in�cio do show, ele foi vaiado violentamente na mesma situa��o. Aquilo o destruiu. Al�m de ser negro, era um bluesman. E assim, ele conclui: "Se voc� � um m�sico de blues e � negro, � como se voc� fosse negro duas vezes". (Ag�ncia Estado)

Um rei que sabia dizer “muito obrigado”
O filme de Ricardo Nauenberg, apesar de ter suas imagens captadas em 2004, atualiza-se no discurso de King. Um dos primeiros artistas a tocar para plateias mistas nos Estados Unidos, B. B. King sabia o valor de uma hist�ria bem contada. Ao receber jornalistas e jovens f�s, valorizava cada palavra por saber exatamente as dores do sil�ncio.
Sua postura, para al�m das quest�es raciais embrenhadas em cada passo que dava, � tamb�m uma li��o aos artistas encastelados. B. B. King tratava quem queria ouvi-lo com gratid�o, jamais com desprezo. E a frase que diz ao final do filme “Black, white and blues” � um ensinamento sublime: "Antigamente, ningu�m queria ouvir o que eu tinha para dizer. Hoje, voc�s tomaram um tempo para vir at� aqui e conversar comigo. Eu queria agradecer por voc�s terem feito isso".
Al�m de aprovar o filme, o artista pediu que ele fosse exibido no B. B. King Museum, um local em Indianola que tenta pagar uma parte �nfima da conta eterna com seu filho, ao celebrar sua trajet�ria.
VAIAS
A noite em que foi vaiado em uma casa de shows dos Estados Unidos por ser negro se tornou um marco para King. Ao falar sobre ela, sua voz cai alguns tons. Assim que se recomp�s no palco, lembra que olhou para seus m�sicos e come�ou a tocar “Sweet sexteen” em l�grimas. Um de seus blues mais famosos � um lamento cortante, como em quase todos os blues, por uma mulher que se vai, deixando o amante em peda�os. Mas, naquela noite, uma das estrofes ganhou outro sentido.King conta que, depois de ser vaiado, os versos a seguir foram cantados para os garotos que desdenharam de sua cor, de seu povo e de sua hist�ria: "Voc� pode me tratar mal, baby / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Voc� pode me tratar mal / Mas eu vou continuar te amando do mesmo jeito / Mas, dia desses, baby / voc� vai dar um monte de dinheiro para ouvir algu�m chamar meu nome". As entradas para ver B. B. King, pagas por negros e brancos, poderiam passar dos R$ 1 mil em seus �ltimos shows. (Ag�ncia Estado)