
A historiadora Mary Del Priore abre seu novo livro, o rec�m-lan�ado “� procura deles: quem s�o os negros e mesti�os que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a hist�ria do Brasil”, evocando a ideia de “lugar de fala”, e acrescentando imediatamente que o seu lugar “� o da escuta”.
Mais adiante, ainda na introdu��o, ela escreve: "Se a proposta deste livro h� de parecer incorreta para alguns por eu n�o ser uma autora preta, a ideia que o fez desabrochar me pareceu boa: dar protagonismo aos que conseguiram ‘chegar l�’, driblando as dificuldades e o preconceito. Apresent�-los ao p�blico. Mostrar uma faceta pouco explorada, a de negros como agentes sociais. Lutar contra o apagamento de lideran�as pretas e pardas, que existiram e n�o s�o lembradas".
Foi com essa disposi��o que Mary foi aos arquivos e pesquisou diversas fontes para trazer � tona a hist�ria de negros e mesti�os que alcan�aram pap�is de destaque, mesmo nos tempos mais dif�ceis do Brasil Col�nia e da Primeira Rep�blica. Figuram nessa lista personagens como Chica da Silva (escrava alforriada que fez parte da corte da �poca), Nilo Pe�anha (o primeiro presidente negro do Brasil), Henrique Dias (militar her�i da Batalha de Guararapes), Francisco Paulo de Almeida (bar�o e empres�rio durante o Segundo Reinado), Luiz Gama (jornalista e advogado autodidata), Eduardo Ribeiro (primeiro governador negro do Amazonas) e Juliano Moreira (fundador da disciplina psiqui�trica no Brasil).
Ela destaca que a escolha dos personagens foi feita a partir de ocasi�es hist�ricas importantes que ajudaram na constru��o de seu sucesso, e que optou por figuras menos conhecidas do grande p�blico, fugindo daqueles j� muito estudados, como Machado de Assis e Jos� do Patroc�nio.
Segundo Mary, “� procura deles” �, antes de mais nada, fruto de seu h�bito de pesquisar. “Sou uma pessoa de arquivo, gosto de documentos, estou sempre descobrindo figuras, e trabalhei muito com Primeiro e Segundo Reinados. Observei, nesse percurso, que nos sal�es havia afro-mesti�os”, diz, pontuando que “� procura deles” n�o � um livro sobre escravid�o nem racismo, “mas uma hist�ria de pessoas que conseguiram superar esses obst�culos infernais e fizeram, junto com outras tantas pessoas, esse caminho de se elevar na sociedade”.

PESQUISAS
A historiadora conta que suas pesquisas a levaram a reconstruir hist�rias de vida incr�veis, como a de Francisco de Montezuma, filho de um negro e de uma branca, que desde muito jovem escrevia poesias e em pouco tempo se tornou jornalista. Ele saiu da Bahia, onde nasceu, foi ao Rio de Janeiro, onde caiu nas gra�as do imperador Dom Pedro I e, de l�, foi estudar em Coimbra.
“Esse mulato, como era tido na �poca, tamb�m caiu nas gra�as de Jos� Bonif�cio, que o levou para a ma�onaria. Posteriormente ele fez uma trajet�ria incr�vel na pol�tica. Francisco de Montezuma foi conhecer a Europa, foi para Portugal, para a Inglaterra, quer dizer, � fant�stico voc� ver essas pessoas no esplendor de suas personalidades”, diz.
O livro tamb�m foca, conforme ela destaca, hist�rias de sucesso que, contudo, carregam uma forte carga dram�tica, como a de Eduardo Ribeiro, “um rapaz paup�rrimo, filho de uma mulher pobre, de um pai maluco, que, a despeito de todas as dificuldades, fez carreira pol�tica atrav�s da escola militar e, em Manaus, uma vez eleito, ergueu uma cidade em estilo franc�s � beira do Rio Negro, e que morreu tragicamente, porque era psic�tico e acabou cometendo suic�dio”. A historiadora salienta esses contrastes que sua pesquisa revela e avalia que isso permitiu a ela chegar mais perto dos indiv�duos que estudou. “Voc� d� carne e sangue a esses personagens”, diz.
Mary chama a aten��o para um panorama de que pouco se fala: no in�cio do s�culo 19 havia uma popula��o de 43% de afro-mesti�os livres, que se configuravam numa massa de pessoas letradas que estavam no clero, no ex�rcito, no servi�o p�blico, no pequeno com�rcio. Ela diz que procurou jogar luz tamb�m sobre as mulheres que trouxeram da �frica uma tradi��o do com�rcio feminino e como isso contribuiu para o �xito de seus descendentes.
“Voc� pega, por exemplo, o Juliano Moreira, que entra na faculdade aos 14 anos e faz uma trajet�ria brilhante, internacional. Ele vai para Paris, onde se forma na Sorbonne, recebe uma comenda alt�ssima em T�quio, retorna para o Brasil com uma francesa � tiracolo, assume a presid�ncia do Banco do Brasil e termina como senador. Einstein fez quest�o de conhecer pessoalmente e cumprimentar o Juliano. E isso tudo tem a ver com uma m�e comerciante que l� atr�s pensou no letramento de seu filho”, afirma.
Das hist�rias dos personagens que levantou, Mary Del Priore considera a de Juliano Moreira – por quem diz ter ficado apaixonada – a mais marcante. “Ele � muito impressionante. Filho de empregada dom�stica, se formou muito jovem e fez uma carreira de grande �xito em v�rias frentes. A faculdade de medicina da Bahia foi uma sementeira de m�dicos negros, e ele talvez tenha sido o filho mais ilustre de l�, porque fundou a disciplina psiqui�trica no Brasil. Al�m disso, ocupou cargos p�blicos importantes. O Juliano venceu o racismo dentro de um concurso e seguiu navegando com uma altivez e com uma serenidade incr�veis. A maneira como ele percorreu a Europa participando dos congressos mais sofisticados com absoluta seguran�a chama muito a aten��o”, relata.
"O Brasil � feito de muita mesti�agem, os ingleses usam o termo 'colored' porque eles n�o sabem definir os caboclos, os mulatos, os pardos. � um horizonte fant�stico de personagens. � um convite para que outros sejam descobertos. Pouca gente sabe que o Brasil teve um presidente negro"
Mary del Priore, historiadora
APAGAMENTO
A historiadora aponta que, naturalmente, encontrou dificuldades para pesquisar um passado que � objeto de apagamento hist�rico. Ela diz que reconstruir a trajet�ria desses personagens passa por documentos “um pouco laterais”, a que tortuosamente se chega por meio dos registros oficiais da �poca.
O pr�prio t�tulo do livro, “� procura deles”, remete � ideia de empreender uma busca por algo que est� oculto. “Tive que correr muito atr�s, a documenta��o � escassa, voc� tem que ir somando pedacinhos. Mas � curioso como esses pr�prios personagens foram destilando suas hist�rias. � trabalho de pesquisa. Digo sempre que lugar de historiador � no arquivo, � l� que esses documentos come�am a falar sozinhos, eles te chamam. Esse � um livro de ideias, minha proposta � que a gente comece a olhar quem n�o � escravo, aqueles que j� estavam h� duas ou tr�s gera��es libertos”, diz.
“� procura deles” traz como pano de fundo o crescimento das cidades e o desenvolvimento da vida urbana naquele per�odo, o que, segundo Mary, representou um conjunto de condi��es favor�veis � ascens�o econ�mica e social de negros e mesti�os. Ela dedica um cap�tulo do livro a esse processo de inser��o na sociedade.
“Os transplantados da �frica n�o chegaram aqui como p�ginas em branco, eles traziam suas bagagens, eram religiosos, engenheiros, comerciantes, agricultores, quer dizer, eles tinham uma hist�ria para contar, e isso dava a eles um lugar na sociedade. O Brasil estava crescendo, produzia muito mais que Portugal, ent�o a vida urbana abria muitas possibilidades, e uma coisa fant�stica que tem sido cada vez mais estudada � o letramento de negros e mesti�os. Tem essa ideia de que ‘ah, escravo n�o sabia ler’. Sabia sim, muitos sabiam. A quest�o do letramento catapultou muitas dessas pessoas para serem professores e donos de escolas”, diz.
Na opini�o da historiadora, quanto mais pessoas se interessarem por esse assunto – o �xito de negros e mesti�os num per�odo que vai da escravid�o at� o in�cio do s�culo 20 – mais se revelar� a cara do Brasil, que, conforme aponta, n�o � bin�ria. “O Brasil � feito de muita mesti�agem, os ingleses usam o termo ‘colored’ porque eles n�o sabem definir os caboclos, os mulatos, os pardos. � um horizonte fant�stico de personagens. � um convite para que outros sejam descobertas. Pouca gente sabe que o Brasil teve um presidente negro”, diz, referindo-se a Nilo Pe�anha. “A ideia � que essas pessoas sejam reconhecidas. O apagamento hist�rico existe, ent�o � importante que o Brasil saiba da vida e do sucesso dessas figuras.”

“� procura deles: quem s�o os negros e mesti�os que ultrapassaram a barreira do preconceito e marcaram a hist�ria do Brasil”
.Mary Del Priore
.Editora Benvir� (320 p�gs.)
.R$ 32,44