
"Na verdade, o Brasil �, para mim, na minha sociedade cerebral reprimida, o corpo. Quando eu ia para o Brasil, o Brasil era a emo��o e o corpo. E eu, desde os 18 anos, comecei a ir com muita frequ�ncia. Eu nunca tomei aulas de portugu�s, por exemplo. Nem sei por que eu falo. Eu sempre digo que tive as viagens como mestre, mas tamb�m o Jo�o Gilberto como mestre"
Jorge Drexler recusa simplifica��es. O cantor e compositor uruguaio — vencedor do Oscar de melhor can��o com “Al otro lado del r�o”, da trilha do longa “Di�rios de motocicleta” (2005), de Walter Salles — voltou aos palcos recentemente na Espanha, onde vive. A nova fase foi aberta com o lan�amento de uma can��o in�dita, em v�deo que acumulou mais de 1,2 milh�o de visualiza��es em menos de um m�s.
Em “La guerrilla de la concordia'', Drexler faz uma ode � empatia e diz que o amor � coisa de valentes, enquanto o �dio � guia dos covardes. Mas n�o h� espa�o para reducionismos e clich�s motivacionais na obra do uruguaio.
“Eu n�o tenho inten��o de dar conselhos. Pelo menos na minha experi�ncia, quando eu pratico a gentileza e a bondade, eu me sinto melhor. N�o � sempre f�cil, porque, �s vezes, voc� tem que se sobrepor ao impulso reinante de tens�o e agressividade”, diz.
Em entrevista concedida em portugu�s por v�deo chamada a partir de sua casa em Madrid, Drexler refuta a ideia de que acreditar em um mundo com mais gentileza, empatia e igualdade seja utopia. “Eu n�o gosto de utopias, pela mesma raz�o que eu n�o gosto de ideais. Gosto da realidade. A utopia � uma simplifica��o da realidade.”
Com forte liga��o com o Brasil, ele evita falar a respeito do presidente Jair Bolsonaro, mas diz que tem consci�ncia dos tempos duros enfrentados por aqui. Drexler comenta, ainda, os reflexos das ditaduras enfrentadas na Am�rica Latina, a partir da experi�ncia de sua fam�lia no Uruguai, e refor�a a import�ncia da mem�ria para que os horrores n�o se repitam. “Eu pensei que nunca mais fosse ouvir na minha vida algu�m defendendo a ditadura. Acho uma monstruosidade.”
Na letra de “La guerrilla de la concordia” voc� diz que odiar � mais simples e, de fato, o �dio parece que reverbera mais, que exige menos do que o amor. Mas como optar pelo amor em um momento t�o dif�cil, em tempos t�o brutos?
Na verdade, n�o tenho inten��o de dar conselhos. Eu manifesto, nas minhas letras ou na minha maneira de sentir, percep��es que nem sempre s�o percep��es completas. �s vezes, s�o somente um fragmento da realidade. N�o quer dizer que o amor seja sempre poss�vel, mas eu gosto da ideia. Pelo menos na minha experi�ncia, quando eu pratico a gentileza e a bondade, eu me sinto melhor. N�o � sempre f�cil, porque, �s vezes, voc� tem que se sobrepor ao impulso reinante de tens�o e agressividade. Acho que a hist�ria tamb�m aqui � que o �dio trabalha com uma simplifica��o da imagem do outro.
E a discrimina��o est� baseada no desconhecimento do outro. As pessoas, a identidade de pessoas, como parte da realidade, s�o infinitamente complexas. A realidade e a identidade real de uma pessoa � como uma s�rie de n�meros reais. Sempre � infinita, entre 1 e 2 voc� tem infinitos n�meros. Quem alguma vez teve uma rela��o sabe que, quando se aproxima de alguma pessoa, ela n�o � mais simples e mais esquem�tica; � mais complexa. O �dio reduz isso.
O �dio que voc� v� desde uma torcida de futebol at� a outra tem uma ideia fixa do outro completamente simplificada. � como o t�tulo do �ltimo romance do Chico Buarque: “Essa gente”. Isso j� bota uma dist�ncia, “essa gente a�, eu aqui”. E o �dio sempre responde a uma vis�o idealizada do outro, idealizada n�o no sentido bom, mas no senso resumido do outro. � uma imagem que voc� tem do outro, � uma proje��o no outro. � a mesma diferen�a que tem um mapa com o territ�rio real.
O mapa � um resumo do territ�rio. Ent�o, para se aproximar, para sair do mapa e entrar no territ�rio, � preciso um ato de humildade. Voc� tem que saber que voc� n�o conhece a outra pessoa, vai conhecendo pouco a pouco e vai ter sempre alguma coisa. Voc� tem que aprender a trabalhar com o caos da outra pessoa, com a complexidade, com a diferen�a e com coisas de que voc� gosta e com outras que �s vezes n�o gosta. N�o se tem que gostar de tudo da outra pessoa. Mas � preciso aprender que tudo isso � um requerimento que o amor pede para o amante, para a pessoa que toma a decis�o valente. Odiar � muito mais r�pido e mais simples, porque vem da idealiza��o e da dist�ncia.
"Tenho muitos amigos no Brasil, j� estive muitas vezes no Brasil em muitos per�odos diferentes, incluindo este per�odo escuro que o Brasil tem agora. Eu n�o gosto de falar do seu presidente. E eu n�o quero essa energia entrando no meu cora��o. Voc�s n�o t�m mais rem�dio, mas eu tenho op��o de falar de outra coisa"
Num mundo em que o preconceito e a intoler�ncia t�m tanta voz, sonhar com a conc�rdia, pensar nessa harmonia � uma utopia? Precisamos de utopias neste momento?
"Tenho muitos amigos no Brasil, j� estive muitas vezes no Brasil em muitos per�odos diferentes, incluindo este per�odo escuro que o Brasil tem agora. Eu n�o gosto de falar do seu presidente. E eu n�o quero essa energia entrando no meu cora��o. Voc�s n�o t�m mais rem�dio, mas eu tenho op��o de falar de outra coisa"
N�o gosto de utopias, pela mesma raz�o que eu n�o gosto de ideais. Eu gosto da realidade. A utopia � uma simplifica��o da realidade. N�o gosto das proje��es e n�o gosto das expectativas. A utopia tem muito disso. Prefiro me relacionar com a realidade e n�o acho essa ideia uma utopia. � evidente que o mundo ainda tem muit�ssimas mais coisas para solucionar das rela��es humanas, muit�ssimo preconceito e tudo o mais. Mas, se voc� d� uma olhada no contexto, por exemplo, na situa��o da mulher dentro da sociedade — que ainda est� muito longe de chegar ao lugar que deveria atingir — v� avan�o.
Se voc� pensa na sua bisav�, na sua av�, na sua m�e, sua irm�, sua companheira ou na sua filha, voc� v� claramente uma progress�o na hist�ria de amplia��o dos direitos �s mulheres e a amplia��o maravilhosa e revolucion�ria da presen�a da mulher dentro da sociedade, que eu acho o maior efeito social das �ltimas d�cadas que vivi na minha vida. O jeito que as mulheres eram percebidas nos anos 1980, quando eu estava na faculdade, e como s�o percebidas agora mudou muito e muito para o bem, na minha vis�o.
Voc� v� outros avan�os?
Olha tamb�m a situa��o das orienta��es sexuais, por exemplo. O enorme preconceito e vergonha que se tinha nos anos 1980. Em muitos c�rculos, era dif�cil sair do arm�rio e manifestar uma identidade sexual que n�o fosse a identidade sexual central, a heterossexualidade central ligada � sociedade. Tudo isso vai avan�ando, � claro. E eu acho que esse c�rculo de empatia vai se abrindo e come�ou a se abrir j� desde as cavernas onde a gente s� sentia empatia pelo m�nimo n�cleo familiar, at� que depois passamos ao povoado, � tribo, � cidade e voc� j� tinha empatia com 10 mil pessoas da sua popula��o, encontrando os outros ainda mais.
Depois de se abrir, veio o entendimento de que havia outros no outro bando que tinham mais a ver com voc� do que seus vizinhos. Ent�o, houve abertura para orienta��es sexuais diferentes, op��es futebol�sticas diferentes, op��es gastron�micas, vitais e pol�ticas diferentes. E isso continua at� o resto dos seres vivos e at� a grande empatia biosf�rica de sentir que eu sou um com o meu planeta. Eu s� espero que esse conceito que percebo da empatia chegue a tempo antes de n�s destruirmos o planeta. Eu tor�o por isso, mas n�o tenho certeza disso.
No Brasil, h� um pessimismo, tamb�m por termos um presidente que nega todos esses avan�os que voc� citou com falas machistas, homof�bicas...
A evolu��o crescente da empatia n�o � um processo linear. � muito importante perceber que ele vai tr�s passos para a frente e um para tr�s, depois dois para a frente e para tr�s e tr�s para a frente e dois para tr�s. Vai avan�ando e retrocedendo o tempo inteiro. O Brasil claramente retrocedeu. Os Estados Unidos tamb�m, agora voltaram de novo a adotar a raz�o, a ci�ncia, ao governar o pa�s. E eu sou completamente consciente da situa��o brasileira. Tenho muitos amigos no Brasil, j� estive muitas vezes no Brasil em muitos per�odos diferentes, incluindo este per�odo escuro que o Brasil tem agora. Eu n�o gosto de falar do seu presidente. E eu n�o quero essa energia entrando no meu cora��o. Voc�s n�o t�m mais rem�dio, mas eu tenho op��o de falar de outra coisa.
No ano passado, voc� participou de uma campanha lembrando os horrores da ditadura uruguaia. Temos pessoas que celebram e pedem a volta da ditadura. Dever�amos, na Am�rica Latina, falar mais sobre isso e deixar a mem�ria mais viva para impedir que isso aconte�a de novo?
Eu sou um filho da ditadura por completo. Eu entrei na ditadura em 1973 quando estava no terceiro grau da escola com 9 anos e sa� com 20. Toda a minha etapa de desenvolvimento pessoal, emocional, sexual, afetivo e social, tudo se fez no entorno de muito medo, repress�o, fascismo e desconfian�a. E, olha, acho que a mem�ria � imprescind�vel. � olhar para saber, olhar para lembrar, para honrar a mem�ria dos mortos e tamb�m para fazer a paz.
Para fechar essa ferida e poder come�ar a curar. � imprescind�vel. Pensei que eu nunca mais fosse ouvir na minha vida algu�m defendendo a ditadura. Acho uma monstruosidade. Metade da minha fam�lia esteve exilada, muitos amigos da fam�lia presos, conhecidos e familiares tamb�m. Minha fam�lia era complexa e a ditadura deixou uma marca muito grande nela tamb�m.
O disco “Bailar en la cueva” (2014) tem a ver com se libertar disso, certo?
A ditadura fica. Voc� pode tirar da superf�cie, mas ela fica na profundidade, fica nos joelhos, nos ossos e nas articula��es, fica a� imobilizando a gente. E eu me criei num pa�s que n�o dan�ava. Al�m disso, as ditaduras s�o fen�menos espetaculares, no sentido de que o que gera um ditador � reproduzido pela oposi��o tamb�m. Todos esses enfrentamentos s�o s� rea��es em espelho. O outro tamb�m vira autorit�rio. Eu me criei em uma casa de esquerda, onde a gente pensava que dan�ar era uma coisa que n�o era importante.
Na verdade, esse bloqueio do corpo da ditadura foi tamb�m reproduzido pela esquerda que me criou, em que o corpo n�o era uma presen�a e, nesse sentido, achei que toda a sociedade tinha entrado nesse jogo de frustra��o sexual e f�sica. Ent�o, “Bailar en la cueva'' foi a minha tentativa. Talvez n�o tenha conseguido, mas meu intuito era de tirar a ditadura das articula��es dan�ando, de conseguir dan�ar aos 40 e tantos anos. Como eu consegui, o meu corpo mudou com esse disco e eu tenho um grande d�bito com o Brasil.
Por qu�?
Na verdade, o Brasil �, para mim, na minha sociedade cerebral reprimida, o corpo. Quando eu ia para o Brasil, o Brasil era a emo��o e o corpo. E eu, desde os 18 anos, comecei a ir com muita frequ�ncia. Eu nunca tomei aulas de portugu�s, por exemplo. Nem sei por que eu falo. Eu sempre digo que tive as viagens como mestre, mas tamb�m o Jo�o Gilberto como mestre.
Voc� voltou aos palcos h� pouco tempo, aqui para n�s � at� estranho pensar em shows. Como foi seu processo neste per�odo de isolamento?
Na pandemia, foi muito dif�cil escrever. E, agora que voltei aos concertos, eu entendi a magnitude do que tinha perdido na pandemia. Voc� acaba pensando no palco quando escreve e acaba planejando a escrita quando est� no palco. Ent�o, quando eu tirei o palco, n�o conseguia acabar as m�sicas. N�o chegava a dar a volta completa. Eu tinha perdido a refer�ncia, o palco � minha refer�ncia como compositor. Escrevo para comunicar e para cantar com gente. Nunca fui um bom vendedor de discos, nem mesmo quando todo mundo vendia muitos discos.
Eu era um p�ssimo vendedor de discos. Quando eu comecei a ter certo sucesso na minha carreira, a ind�stria discogr�fica colapsou. Sempre escrevi para ir para as turn�s, escrevi fechando os olhos pensando “estou no palco”, e como vou me sentir cantando essa m�sica assim, para onde eu quero levar a can��o agora. Ent�o, eu fiquei, sim, como um caracol sem antena. Eu n�o percebia a realidade, eu tinha toda a maquinaria, mas n�o tinha o alvo.