Sandra P�ra e Ana Beatriz Nogueira levam Clarice Lispector para o palco
Mon�logo '� procura de uma dignidade', baseado em conto publicado em 1974, conta a hist�ria da mulher que se descobre ao se perder nos corredores do Maracan�
Sandra P�ra vive a mulher elegante e contida que se descobre ao se perder nos corredores do Maracan�
(foto: Ana Basbaum/divulga��o)
"Tenho um metro e oitenta, sou uma pessoa de gestos largos. Estou penando com essa mulher contida, que fala baixo e se descobre de dentro pra fora"
Sandra P�ra, atriz
Lan�ado por Clarice Lispector no livro “Onde estivestes � noite” (1974), o conto “� procura de uma dignidade” sempre foi um dos favoritos da atriz, produtora e diretora carioca Ana Beatriz Nogueira. Ap�s estrelar um solo baseado na obra da escritora, ela voltou a mergulhar nos contos e cr�nicas de Clarice.
O conto foca o dia decisivo na vida de Sra. Jorge B. Xavier, mulher de classe m�dia alta. Frequentadora de eventos culturais e sociais, ela se perde nos corredores do Est�dio do Maracan� ap�s errar o caminho para uma palestra.
Fora dos corredores escuros do est�dio, a personagem busca, desnorteada, o caminho de volta. A muito custo, chega em casa, onde reavalia sua vida, sua sexualidade e intensifica a paix�o plat�nica, aos 70 anos, pelo cantor Roberto Carlos.
PARCERIA
“Sempre adorei esse conto, e ele andava perdido nas prateleiras da minha cabe�a. Revisitando a obra da Clarice, fui pensando em como seria bacana isso no teatro”, diz Ana Beatriz Nogueira, que imediatamente consultou o ator, diretor e dramaturgo carioca Leonardo Netto em busca de uma adapta��o.
“Leonardo escreve muito bem, e era preciso um texto muito delicado para adaptar essa hist�ria para a primeira pessoa”, explica. Assim nasceu o espet�culo on-line hom�nimo estrelado pela atriz, cantora e ex-Fren�tica Sandra P�ra sob a ire��o de Ana Beatriz e codire��o de Clarisse Derzi� Luz.
“Foi tudo muito natural. Um dia eu me encontrei com a Sandra, olhei pra ela e propus a leitura do texto. Ela gostou e aqui estamos, tudo muito simples e direto”, diz Ana Beatriz.
Sandra faz o primeiro mon�logo em suas cinco d�cadas de diversificada carreira. A irm� de Mar�lia P�ra despontou para o estrelato em meados da d�cada de 1970, quando integrou a forma��o original do grupo As Fren�ticas, que emplacou os hits “Perigosa” e “Dancin' days”. Desde ent�o, vem conciliando, com �xito, as carreiras na m�sica e no teatro.
S� neste 2021, a artista encerrou o hiato de mais de 30 anos sem gravar disco solo com o lan�amento de “Sandra P�ra em Belchior” (Biscoito Fino), �lbum que aborda repert�rio do compositor cearense, morto em 2017.
Agora Sandra mergulha no universo intenso de Clarice Lispector ao dar vida a uma figura introspectiva e de gestos delicados. Totalmente o contr�rio de sua personalidade expansiva. “Tenho um metro e oitenta, sou uma pessoa de gestos largos. Estou penando com essa mulher contida, que fala baixo e se descobre de dentro pra fora”, diz.
Ana Beatriz Nogueira diz que � "diretora amadora", disposta a exercer o of�cio em meio aos desafios destes tempos (foto: F�bio Guimar�es/divulga��o)
"Muitas pessoas nunca foram a um teatro na vida, ent�o elas teriam algum contato com o teatro, ainda que atrav�s de um aparelho de telefone"
Ana Beatriz Nogueira, atriz, diretora e produtora
DESAFIO
Ana Beatriz Nogueira v� na montagem, que estreou no s�bado (7/08), um exerc�cio tanto para a atriz quanto para si pr�pria. “Brinco que sou uma diretora amadora, ent�o, essa pe�a nos d� a oportunidade de exercitar nosso of�cio num momento de tantos desafios.”
“� procura de uma dignidade” marca tamb�m a estreia de Sandra P�ra no universo on-line, abarcando dois desafios: o mon�logo e a aus�ncia do p�blico.
“Sinto muita falta dos espectadores, porque eles ajudam a moldar o espet�culo, e n�o vou t�-los. Na verdade, tudo � muito novo, muito desafiador. N�o s� pela linguagem, mas pelo cen�rio que a gente vive. N�o sabemos para onde vai o Brasil, e a cultura, ent�o, nem se fala. Mas seguimos porque n�o temos como parar”, diz.
Clarice Lispector lan�ou o conto "� procura de uma dignidade" em 1974
(foto: Rocco/reprodu��o)
Teatro com bolso
Foi nessa linha de pensamento que surgiu o Teatro com Bolso, que abriga o espet�culo. O projeto � o resultado do per�odo em que Ana Beatriz idealizou e encabe�ou, ao lado do produtor Andr� Junqueira, a produ��o e programa��o digital do Teatro PetraGold, no Rio de Janeiro. Da� surgiu o desejo de, utilizando recursos pr�prios, construir e equipar um teatro dentro de sua pr�pria casa, tamb�m na capital fluminense.
A atriz e diretora investiu em luz, som e equipamento para transmiss�o on-line. Com pre�os populares, a programa��o tem como principal objetivo a democratiza��o do acesso ao teatro, ainda que de forma remota. “Eu gostaria, mesmo, � de poder fazer de gra�a para o Brasil todo”, afirma Ana Beatriz Nogueira.
“Muitas pessoas nunca foram ao teatro na vida, ent�o elas teriam algum contato com ele, ainda que atrav�s do aparelho de telefone. Dificilmente voc� vai chegar com sua pe�a no Piau�, mas on-line voc� exibe l�, e tem a chance de dar uma contrapartida de verdade, entende?”, diz a diretora.
TRECHOS
“A Srª Jorge B. Xavier simplesmente n�o saberia dizer como entrara. Por algum port�o principal n�o fora. Pareceu-lhe vagamente sonhadora, ter entrado por uma esp�cie de estreita abertura em meio a escombros de constru��o, como se tivesse entrado de esguelha por um buraco feito s� para ela. O fato � que quando viu j� estava dentro.
E quando viu percebeu que estava muito, muito dentro. Andava interminavelmente pelos subterr�neos do Est�dio de Futebol do Maracan�, ou, pelo menos, pareceram-lhe cavernas estreitas que davam para salas fechadas, e quando se abriam as salas s� havia janelas que davam para o est�dio. Este, �quela hora torradamente deserto, reverberava ao extremo sol dum calor inusitado que estava acontecendo naquele dia de
pleno inverno.
Ent�o a senhora seguiu por um corredor sombrio. Este a levou igualmente a outro mais sombrio. Pareceu-lhe que o teto dos subterr�neos era baixo.
E a� este corredor a levou a outro que a levou por sua vez a outros.”
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“O homem parou imediatamente de andar para olh�-la perplexo:
– Ent�o que � que a senhora est� fazendo aqui?
Ela quis explicar que sua vida era assim mesmo, mas nem sequer sabia o que queria dizer com o 'assim mesmo' nem com 'sua vida', por isso nada respondeu. O homem insistiu na pergunta, entre desconfiado e cauteloso: 'Que � que ela estava fazendo ali?' Nada, respondeu apenas em pensamento a senhora, j� ent�o pressentes a cair de cansa�o. Mas n�o lhe respondeu, deixou-o pensar que era louca. Al�m do mais ela nunca se explicava. Sabia que o homem a julgava louca – e quem dissera que n�o? Se bem que soubesse ter a chamada sa�de mental t�o boa que s� podia se comparar com sua sa�de f�sica. Sa�de f�sica j� agora rebentada, pois rastejava os p�s de muitos anos de caminho pelo labirinto. Sua via-crucis. Estava vestida de l� muito grossa e sufocava suada ao inesperado calor dum auge de ver�o, esse dia de ver�o que era um aleij�o do inverno. As pernas lhe do�am, do�am ao peso da velha cruz. J� se resignara dalgum modo a nunca mais sair do Maracan� e a morrer ali de cora��o exangue.”
. O conto “� procura de uma dignidade” faz parte do livro “Onde estivestes � noite”