
Era 11 de mar�o de 2001. A mando do Talib�, 25 prisioneiros instalaram explosivos aos p�s de duas est�tuas gigantes, ent�o os maiores budas do mundo, na prov�ncia de Bamiyan, no Afeganist�o central. Foram dias e dias at� que fossem totalmente destru�dos.
A data foi escolhida por Atiq Rahimi, escritor franco-afeg�o vencedor do Pr�mio Goncourt, para ambientar seu novo romance, “Os carregadores de �gua”, lan�ado agora no Brasil pela Editora Esta��o Liberdade.
S�o duas hist�rias, tr�s, se inclu�da a da destrui��o dos budas. A primeira � de Tom, um afeg�o exilado, bem integrado na sociedade francesa, funcion�rio de uma empresa de serigrafia t�xtil, paramn�sico. Ele vive entre Paris e Amsterd� e decidiu largar a mulher e a filha naquela manh�.
J� Y�sef, um carregador de �gua afeg�o, leva o seu odre para cima e para baixo em Cabul, num inverno seco, em que n�o neva nem chove e � preciso observar os hor�rios de prece, pois a cidade est� ocupada pelos mujahidines.
"Era uma hist�ria que queria contar havia algum tempo, sobre como o homem olha para o amor no ex�lio. Os Talib� eram um pesadelo que tinha acabado mas poderia retornar, por causa da corrup��o, da influ�ncia paquistanesa no pa�s. Talvez um dia volt�ssemos a viver como Y�sef, mas � curioso que isso aconte�a, 20 anos depois", disse Rahimi.
Nas �ltimas semanas, o autor ajudou a extrair 260 pessoas do pa�s, entre escritores, poetas, fot�grafos, ativistas, cineastas e jornalistas. "Infelizmente, o Afeganist�o � v�tima de um jogo pol�tico do qual participam pa�ses onde n�o h� liberdade: R�ssia, China, Paquist�o, Qatar, Ar�bia Saudita. Foram eles que levaram o Talib� ao poder", completou.
O pa�s - que ele deixou aos 20 anos, primeiro em dire��o � �ndia e, depois, � Fran�a - � palco de todos os seus livros. "No Ocidente, a quest�o � o 'ser ou n�o ser' de Shakespeare. Para n�s, � 'dizer ou n�o dizer'. Quando cada palavra se torna uma quest�o de sobreviv�ncia, a l�ngua � principalmente existencial", contou ele, sentado a uma mesinha do caf� Les �diteurs na margem esquerda de Paris, num dia de maio anterior � pandemia do coronav�rus. As palavras s�o centrais para os personagens no seu novo livro.
F�BULA
"Quando voc� inverte 'Tom', o resultado � 'mot' ('palavra', em franc�s). Ele tem todas as palavras, e por isso se questiona, se tratando de 'voc�'", afirma. Tudo se duplica: os eventos, por sua paramn�sia, a l�ngua, por seu ex�lio e, ent�o, o pr�prio Tom, criando com a sua narrativa o campo-contracampo do cinema, que o autor escolheu como tema para a sua tese de mestrado.
"Quando a gente usa o pronome de tratamento voc�, assumimos um duplo, numa esp�cie de esquizofrenia. J� Y�sef n�o sabe nomear aquilo que sente. � um homem primitivo, que pertence �s origens, por isso a sua hist�ria � narrada como uma f�bula."
Para Tom, � o fim de uma hist�ria de amor. Para Y�sef, o princ�pio. O autor citou ainda Rochefoucauld: "'Poucos homens ficariam apaixonados se antes n�o tivessem ouvido falar do amor'. Para dizer eu te amo, � preciso conhecer a literatura amorosa".
Em persa ou em franc�s? "Meus poemas est�o em persa, dessa forma podem permanecer secretos. Mas escrevo romances diretamente em franc�s. Porque n�o tenho tempo de traduzir, al�m de ser muito dif�cil. Ainda n�o encontrei minha l�ngua romanesca em minha l�ngua materna. Mas �s vezes esque�o em qual l�ngua penso. Sou como Tom nesse sentido: esquecendo em qual l�ngua penso, �s vezes esque�o sobre o que penso. Pensamentos e palavras s�o como dois lados de uma p�gina, se voc� rasga um lado, tamb�m rasga o outro. � como um duplo insepar�vel".
DIRETOR
Prol�fico, Rahimi � tamb�m diretor e produtor de cinema, faz calimorfias - desenhos a partir da caligrafia persa -, e escreve libretos. Semanas antes do in�cio da pandemia do coronav�rus, em 2020, lan�ava um filme, “Nossa Senhora do Nilo”, adapta��o do romance hom�nimo de Scholastique Mukasonga que teve pr�-estreia global no Festival de Cinema de Toronto, em 2019, e um livro, “O convidado do espelho” (2020), poema que tra�a um paralelo entre Afeganist�o e Ruanda e foi inspirado pelos meses que passou na �frica durante as filmagens.
"Os dois terrores, do Afeganist�o e da Ruanda, estavam ligados para mim. Quando lig�vamos a TV, havia imagens de ambos. Depois de olhar para o meu pa�s, queria saber como era o terror em outro lugar. N�o poderia escrever um livro, para isso precisaria viver alguns anos l�, entrar nesse imagin�rio, ent�o adaptar essa hist�ria era a melhor op��o", comenta.
A hist�ria se passa em uma escola para meninas em Ruanda, onde h� uma cota de 10% para alunas de etnia tutsi. Os conflitos entre as colegas antecipam a tomada de poder hutu e o massacre tutsi que aconteceria anos depois.
V�TIMAS "
As mulheres e as crian�as s�o as primeiras v�timas de um genoc�dio." Ou de um regime totalit�rio. Para o autor, as recentes declara��es do Talib� sobre deixar mulheres irem � escola e trabalharem s�o uma estrat�gia para que eles sejam reconhecidos no poder e ent�o possam colocar em pr�tica a lei isl�mica, a sharia, que tira das mulheres qualquer liberdade.
Como escreve em “O convidado do espelho”: "Genocida! � importante nomear o horror, porque sen�o ele retornar�, sob o nome que quiser". Mas nem tudo precisa ser nomeado, ou mesmo se tornar vis�vel.
"Gosto de uma frase da �poca do meu mestrado em cinema: 'A imagem do cinema � assombrada por aqueles que n�o se encontram l�'. Somos atra�dos pelo invis�vel, principalmente na arte", completa, antes de dar um gole no caf�. Al�m do som cl�ssico do piano, um grupo barulhento se sentou ao nosso lado, apesar dos dois andares quase vazios do caf�.
Pergunto para ele o que estaria invis�vel em seu novo romance: "As mulheres. S�o invis�veis como Deus, por isso t�m um poder divino". As personagens Rina, Nuria, Rospinoza e Shirine aparecem principalmente atrav�s das narrativas dos dois homens, mas Shirine, a cunhada de Y�sef, � a �nica a ter voz.
O nome � uma homenagem a uma mulher muito bonita, de etnia hazara, que trabalhava na casa dos seus pais em Cabul quando o autor era bem jovem. Mas poderia ser uma refer�ncia � princesa arm�nia da hist�ria de Shirine e Kroshow, que o autor adaptou para libreto para uma �pera que seria lan�ada em 2020. "Shirine � uma princesa que deseja", afirma.
A agenda para os pr�ximos meses promete ser intensa. Al�m da �pera “Shirine”, que deve ser finalmente lan�ada em 2022, o autor prepara dois espet�culos, sobre “O convidado do espelho” e outro, de hist�rias engra�adas. "Chama-se “Sous-rire avec Dieu” (“Sor-Rir com Deus”). No meu pa�s, temos um ditado: voc� pode rir de qualquer coisa, mas n�o com qualquer um. Quero mostrar que, com Deus, pode-se rir de tudo, inclusive d’Ele mesmo."
TRECHO
"Observando seu estranho estado, o sufi Hafez o convida a tomar um ch� em seu escrit�rio. Y�sef, cansado, a barriga vazia, est� inclinado a aceitar. Mas, no fundo, gostaria de falar com ele. Falar de Shirine. De seu estado, seu desgosto com tudo, seu sil�ncio diurno e algazarra noturna.
Depois de ouvir o carregador de �gua, o sufi fica em sil�ncio. Ent�o, entre dois goles, diz poder compreend�-la, ele mesmo n�o quer mais ver nem falar com os outros. 'Shirine deve conhecer o segredo da fuga de Soleyman', pensa Y�sef, antes de perguntar ao sufi Hafez o que significa esse vers�culo do Alcor�o com o qual o mul� bate em suas orelhas.
'Est� no cap�tulo 4, vers�culo 34', responde o sufi com uma voz s�bia. Ele mergulha um torr�o de a��car no ch� antes de lev�-lo � boca. Depois de um gole, recita primeiro o vers�culo em �rabe, ent�o o traduz para o persa: 'Os homens t�m autoridade sobre as mulheres, por causa dos favores que Al� lhes concede sobre aquelas, e tamb�m devido ao fato de os homens disponibilizarem seus bens. As mulheres virtuosas s�o obedientes e protegem aquilo que deve ser protegido, na aus�ncia do marido, com a prote��o de Al�.'"
“Os carregadores de �gua”
Atiq Rahimi
Esta��o Liberdade (256 p�gs.)
R$ 59
