
O formato de hist�rias curtas logo pede uma analogia com um disco. Trinta anos ap�s estrear na literatura com “Estorvo” – seis romances publicados desde ent�o, uma cole��o de pr�mios que inclui o Cam�es, em 2019, e tr�s Jabutis –, Chico Buarque, aos 77 anos, estreia como contista.
A maneira como ele encadeia os oito contos de “Anos de chumbo”, que a Companhia das Letras lan�a na pr�xima sexta-feira (22/10), n�o � muito diferente da maneira como suas can��es s�o reunidas em um �lbum.
Um conto de abertura de forte impacto � sua carta de inten��es. Ao longo da obra, hist�rias bem-urdidas trazem, a despeito da diversidade de cen�rios, momentos temporais e personagens, pontos em comum: trafegam com ironia e crueldade pelas caracter�sticas do ser humano, muitas vezes as piores. Ao final, uma narrativa cat�rtica aglutina todas as quest�es, tra�ando um retrato em branco e preto de um Brasil fraturado.
MILICIANO
“Meu tio”, o primeiro conto, � filho leg�timo do pa�s da atualidade. N�o � dif�cil para o leitor relacionar o protagonista com tantos personagens (p�blicos ou n�o) que rodam em carr�es pelos grandes centros. N�o h� nenhum senso moral nele – seja no tr�nsito, num simples passeio na praia (da Barra da Tijuca, claro). Aos poucos, a narradora, uma adolescente suburbana, revela facetas mais cru�is do tipo, um miliciano (quem mais?).Outro tipo de canalha � o personagem central de “O passaporte”, o melhor momento da colet�nea (o texto, por sinal, parece quase pronto para ser filmado). “O grande artista” est� prestes a embarcar para um voo para Paris. Uma desaten��o no banheiro do aeroporto o leva a uma espiral de acontecimentos que revelam, com ironia fina, as fraquezas do ser humano: hipocrisia, falsidade, egolatria. A tens�o, crescente, n�o deixa que o leitor se afaste um s� minuto da narrativa.
A partir das duas hist�rias que dialogam com o hoje, Chico se volta para o passado, com ecos no presente. “Os primos de Campos” � uma narrativa das mem�rias, falhas, de um jovem sobre sua inf�ncia dif�cil, ao lado da m�e, do irm�o mais velho e de dois primos do interior. Ainda que verse sobre viol�ncia e jogos de poder, aqui a quest�o que cala fundo � a racial.
“Cida” tira o autor do sub�rbio e o leva para seu pr�prio ambiente, o Leblon. Mas a narrativa n�o foge do tom das anteriores, j� que a personagem-t�tulo � uma pessoa que n�o deveria estar ali. Cida � uma sem-teto que se sustenta com as migalhas que os moradores do bairro lhe d�o – �s vezes com simpatia, outras com crueldade. O narrador se torna pr�ximo dela, e as a��es da mulher, que vagueia entre o real e o del�rio, acabam por atingi-lo em cheio.
PASSADO
O conto seguinte, “Copacabana”, tem como cen�rio n�o o bairro de hoje, mas o do passado cheio de estrelas internacionais – Ava Gardner, Pablo Neruda, Walt Disney – em uma narrativa desatinada.Desatino � tamb�m o que sofre o protagonista de “Para Clarice Lispector, com candura”. Aspirante a poeta, o jovem fez v�rias visitas a Clarice Lispector, encontros regados a muitos sil�ncios e d�vidas. Nessa hist�ria, podemos at� enxergar o pr�prio Chico Buarque em seus 20 anos, pois ele mesmo, na d�cada de 1960, frequentou a resid�ncia da escritora – e a figura de Clarice, o escritor j� revelou, o deixava invariavelmente inseguro e desconcertado.
“O s�tio” � fruto da pandemia. Leva para um lugar ermo no interior do Rio um casal que acabou de se conhecer. Ela, uma atriz; ele, um solteir�o, se conheceram numa noitada na Lapa e resolveram, contra todas as possibilidades, j� que n�o tinham nada em comum, se refugiar “da peste”, durante quatro ou cinco semanas. O id�lio no s�tio sem recursos sofre com um caseiro bisbilhoteiro, uma invas�o de urubus e os sentimentos que afloram no protagonista.
Por fim, “Anos de chumbo” amarra todas as hist�rias por meio das lembran�as de um menino paralisado em decorr�ncia da poliomielite, no in�cio da d�cada de 1970, no per�odo mais cruel da ditadura militar. Seu relato infantil mistura sua paix�o pelos soldadinhos de chumbo com as recorda��es familiares. A opress�o estava dentro de casa. “Quero lan�ar um grito desumano/Que � uma maneira de ser escutado”, versos de “C�lice” (1973), bem poderiam estar na boca do personagem/narrador, dada a brutalidade com que a narrativa � encerrada.
OBRAS DE CHICO
• “Estorvo” (1991/2021)
Ap�s se deparar com um desconhecido em sua porta, o narrador, atormentado, come�a a vagar pelo Rio de Janeiro, passando por locais como o s�tio da fam�lia, a loja da ex-mulher e o edif�cio de um velho amigo. Eleito romance do ano pelo Pr�mio Jabuti. Em comemora��o aos 30 anos da obra, est� sendo lan�ada uma edi��o especial do livro (em 22/10) com novo projeto gr�fico e textos de Roberto Schwarz, S�rgio Sant'Anna, Marisa Lajolo e Augusto Massi.
•“Benjamin” (1995)
Em seu �ltimo minuto, o ex-modelo fotogr�fico Benjamin Zambraia, em del�rio, rev� sua vida. Obcecado por Castana Beatriz, a ex-namorada morta, ele encontra uma forma de continuar esse amor em Ariela Mas�, uma jovem demasiadamente parecida com ela. Em 2004, o romance foi adaptado para o cinema por Monique Gardenberg. Paulo Jos� e Cleo Pires interpretaram os protagonistas.
•“Budapeste” (2003)
No Rio de Janeiro, Jos� Costa, um talentoso escritor, atua como ghost-writer. Um imprevisto durante uma viagem o faz parar em Budapeste. Na capital h�ngara, ele buscar� sua reden��o – no entanto, permanecer� entre duas cidades, duas mulheres, dois livros e duas l�nguas. Vencedor do Jabuti de livro do ano. Em 2009, o romance foi adaptado por Walter Carvalho para o cinema, com Leonardo Medeiros, Giovanna Antonelli e Gabriella H�mori como o trio central.
•“Leite derramado” (2009)
A saga de uma fam�lia que entrou em decad�ncia socioecon�mica � contada, em um mon�logo, por um idoso hospitalizado. A narrativa, que traz como pano de fundo a hist�ria do Brasil dos �ltimos 200 anos, descortina a rela��o do homem com sua mulher, por quem teve uma paix�o avassaladora, transformada em ci�me e incompreens�o. Vencedor do Jabuti de livro do ano.
•“O irm�o alem�o” (2014)
Autofic��o que parte da exist�ncia de um filho que o historiador Sergio Buarque de Holanda (no livro retratado como Sergio de Hollander) teve na Alemanha, em 1930, quando atuou como correspondente estrangeiro. A partir dessa hist�ria, o autor/narrador entra em uma busca obsessiva para tentar encontrar o irm�o que nunca chegou a conhecer.
•“Essa gente” (2019)
Escrito com a estrutura de um di�rio, o romance acompanha Manuel Duarte. Autor de um best-seller nos anos 1990, ele passa, na atualidade, por um vazio criativo. Decadente, endividado, com uma dif�cil rela��o com seu �nico filho, ele, que gosta de bater perna pelo Leblon, faz em seus relatos uma ponte entre a crise pessoal e a do pr�prio pa�s, por meio dos reflexos de um Rio de Janeiro pobre e solit�rio.

“ANOS DE CHUMBO E OUTROS CONTOS”
. De Chico Buarque
. Companhia das Letras (168 p�gs.)
. Em pr�-venda (lan�amento em 22/10). R$ 59,90 (livro) e R$ 29,90 (e-book).