
Foram sete anos at� que a voz de Antara, sua narradora, aparecesse de vez, e a autora, filha de imigrantes indianos nascida nos Estados Unidos, em 1982, que vive hoje em Dubai, pudesse levar adiante a hist�ria sobre a mem�ria e a rela��o entre uma filha e sua m�e.
PRAZER
Rela��o complicada, como se l� no primeiro par�grafo: “Estaria mentindo se dissesse que o sofrimento da minha m�e nunca me deu prazer”. E no segundo: “Sofri em suas m�os quando crian�a, e qualquer dor que ela viesse a sentir depois disso me parecia uma esp�cie de reden��o – o universo encontrando seu equil�brio, onde a ordem racional de causa e efeito se alinhava.”
Mas a m�e est� come�ando a se esquecer das coisas e a protagonista sabe que nunca mais conseguir� resolver o que precisa ser esclarecido para se libertar do peso e do rancor que sente. A m�e est� se esquecendo e precisa da filha.
“A��car queimado”, romance situado em Pune, na �ndia, acaba de ser lan�ado no Brasil pela Dublinense. “O livro surgiu de uma imagem: o rosto de uma mulher dividido em dois, que mais tarde se tornaria duas pessoas distintas. Logo percebi que eram m�e e filha. A ideia de reflexos e distor��es estava l� desde o in�cio”, conta Avni.
A jovem artista Antara � filha de Tara, que nunca se encaixou, abandonou marido e foi parar numa comunidade m�stica com a menina. L�, virou amante do guru, deixando a filha pequena em segundo plano, vagando desamparada.
Depois piora. Quando Tara � rejeitada, ela deixa o local e as duas v�o viver na rua. A fam�lia interv�m e elas encontram uma forma de seguir adiante, de sobreviver. A menina cresce com dist�rbios, a mulher encontra outro amor. H� nova rejei��o.
Quando a hist�ria come�a, a m�e vive sozinha e a filha tem um companheiro. As duas, por�m, dividem a mesma dor.
Seguimos Antara em sua tentativa de dar conta da situa��o – as idas ao m�dico, suas pesquisas, a busca de uma conviv�ncia pac�fica at� que o Alzheimer apague toda a mem�ria de sua m�e. Acompanhamos a hist�ria que ela escolhe contar, suas pr�prias lembran�as, mas est� confusa. � perigoso conhecer apenas um dos lados?
“N�o sei se perigoso. Estamos sempre comparando e julgando. Isso � o que nosso c�rebro quer fazer. Mas � uma proposta interessante: resistir � necessidade de provas, n�o oferecer a conclus�o”, diz a autora, que come�ou a pesquisar sobre o Alzheimer depois de a av� ser diagnosticada com a doen�a. “� isso que tento fazer como escritora. Sinto que � como ter nas m�os a tens�o entre dois opostos irreconcili�veis.”
Este � um romance sobre mem�ria e tamb�m sobre as lacunas que permanecer�o se n�o procurarmos as respostas, se n�o conversarmos enquanto � tempo. N�o que isso v� dar respostas confi�veis, na opini�o da autora. Para ela, essas lacunas nunca poder�o ser preenchidas de verdade.
“Depois que um momento passa, ele se perde, mudando constantemente em nossa mente e na dos outros. Evocamos a mem�ria de nossa maneira �nica, com base em nossos vieses, nossos complexos, nossos gatilhos, nossos planos”, afirma Doshi.
CONFLITO
“Podemos aceitar a mem�ria coletiva ou familiar como nossa – at� certo ponto, todos fazemos isso. � uma pr�tica �til, podemos estar alinhados com alguma hist�ria sobre n�s mesmos. Mas o que acontece quando estamos em conflito uns com os outros? Ent�o, para que serve a mem�ria? A mem�ria cria conex�o, mas tamb�m acaba com ela”, observa a romancista.
“A��car queimado” � um livro sobre amor, cuidado e abandono, respeito � individualidade e sobre a ambiguidade da maternidade.
“Sempre haver� algo sobre r�tulos e pap�is que n�o se encaixam entre a experi�ncia incorporada de um indiv�duo e a proje��o de expectativas externas. Esse espa�o intermedi�rio � o que me interessa – como ele se apresenta como um estado de esp�rito ou um tipo de atmosfera. Existe uma �rea entre n�s que est� carregada de sentimentos e ideias que dificilmente reconhecemos”, conclui Avni Doshi.
TRECHO
“No dia em que esqueceu o nome da rua em que mora h� duas d�cadas, Ma me telefonou para dizer que tinha comprado um pacote de l�minas de barbear e n�o teria medo de us�-las se as circunst�ncias deteriorassem ainda mais. Ent�o come�ou a chorar. Pelo telefone, pude ouvir buzinas soando, gente gritando. Os sons das ruas de Pune.
Ela come�ou a tossir e perder o fio do pensamento. Eu podia praticamente sentir o cheiro da fuma�a do riquix� motorizado em que ela estava sentada, a fuma�a escura que exalava, como se eu estivesse parada bem ao lado dela. Por um momento, me senti mal. Deve ser o pior tipo de sofrimento — a consci�ncia do seu pr�prio colapso, o castigo de observar enquanto as coisas come�am a lhe escapar.
Por outro lado, eu sabia que tudo aquilo era mentira. Minha m�e jamais gastaria tanto dinheiro. Uma caixa de l�minas de barbear, quando apenas uma bastaria? Ela sempre teve uma inclina��o para exibir suas emo��es em p�blico.”

“A��CAR QUEIMADO”
.De Avni Doshi
.Dublinense
.272 p�ginas
.R$ 69,90