
"Temos muito a ensinar a outros pa�ses. Ou seja, ensinar o que o C�lio nos ensinou: a vis�o da psicologia com enfoque social, com enfoque pol�tico, a aten��o � cultura brasileira"
Regina Helena de Freitas Campos, professora da UFMG
Rua Santa Maria de Itabira, 87, Sion, Belo Horizonte. Neste “laborat�rio de ideias”, como bem definiu Gilson Iannini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foram escritos cap�tulos fundamentais da psicologia brasileira.
Naquela resid�ncia, escrit�rio, consult�rio e biblioteca morava o psicanalista C�lio Garcia (1930-2020), o pensador que apresentou Lacan a Minas e ajudou a divulgar suas ideias no Brasil. “O maior intelectual da �rea de psican�lise de Minas Gerais e, talvez, nosso �nico nome nessa �rea”, de acordo com o psiquiatra Francisco Paes Barreto.
SEMIN�RIOS NO SION
Eram famosos os semin�rios realizados na sala do “87” – assim a fam�lia se referia ao endere�o –, reunindo o universo “psi” de BH, de profissionais respeitados a jovens estudantes. “C�lio n�o faz parte apenas da hist�ria da psican�lise. Ele faz parte de nosso inconsciente. O inconsciente � a Rua Santa Maria do Itabira ao anoitecer”, resumiu Iannini.
A casa est� l�, resistindo bravamente – como as ideias de seu propriet�rio, que se foi aos 89 anos, depois de enfrentar uma doen�a neurol�gica degenerativa. L� dentro, h� nada menos de 5 mil livros e 5 mil publica��es que oferecem rico panorama n�o apenas da psicologia, psican�lise, filosofia e ci�ncias sociais, mas do pensamento do s�culo 20. Os livros ser�o doados � UFMG, a outra morada do anfitri�o, seu professor em�rito. Ficar�o � disposi��o do p�blico na Faculdade de Filosofia e Ci�ncias Humanas (Fafich), no c�mpus da Pampulha.
O “87”, como seu mentor, dialoga com o mundo. E suas portas virtuais est�o abertas por iniciativa de Gabriela Garcia, filha dele, bi�loga, mestre em microbiologia, com p�s-doutorado em imunologia em Harvard. De volta a BH depois de trabalhar em empresas de biotecnologia em Boston (EUA) por duas d�cadas, ela est� � frente do portal que se prop�e n�o apenas a divulgar a trajet�ria do pai, mas levar � frente o legado dele.
Coordenado pelo jornalista Jo�o Carlos Firpe Penna, o Portal C�lio Garcia re�ne registros hist�ricos, fotos, artigos, documentos n�o publicados, v�deos e textos, al�m de livros sobre o dono da casa, com depoimentos de ex-alunos e colegas dele, como Paes Barreto e Iannini.
A ideia, explica Penna, � atingir amplo p�blico, sobretudo jovens estudantes, com o apoio das redes sociais. Naquela casa do Sion, h� nada menos de 25 caixas com material n�o publicado deixado por C�lio.
Foram seis d�cadas de dedica��o ao of�cio. Garoto ainda, C�lio compreendeu que abra�aria o lado gauche da vida quando foi “convidado a sair” do col�gio marista. Motivo: estudante do cient�fico, escreveu no jornalzinho da escola o que pensava sobre a “educa��o marista”. O diretor n�o gostou.
Azar dos padres, pois o rapaz logo se formaria em letras cl�ssicas na Faculdade de Filosofia do Cear� e se graduaria em letras, com �nfase em psicologia, na Universidade de Paris-Sorbonne, na Fran�a.
Aluno de sumidades – Jean Piaget, Daniel Lagache, Roger Cousinet e Juliette Favez-Boutonnier –, Garcia frequentou os famosos semin�rios de Jacques Lacan, a partir de 1953, e trouxe as ideias do m�dico e psicanalista para o Departamento de Psicologia da UFMG, onde deu aulas por tr�s d�cadas. Foi um dos divulgadores mais importantes de Lacan no Brasil.

BADIOU E FOUCAULT EM BH
Alain Badiou, hoje com 84 anos, foi outra influ�ncia. Garcia divulgou as ideias do fil�sofo franc�s por aqui, ajudou a traz�-lo ao Brasil em 1996 e organizou o livro com o conte�do de suas confer�ncias no pa�s.
Vinte e tr�s anos antes, o psicanalista fora anfitri�o de Michel Foucault (1926-1984) em Minas. Em BH, o fil�sofo conversou com alunos e professores da UFMG. Tinha 43 anos e n�o se fez de rogado, sentando-se no ch�o ao lado da mo�ada.
A convite do psiquiatra Ronaldo Sim�es (1932-2020), pioneiro na luta antimanicomial, Foucault conheceu as cidades hist�ricas a bordo de uma Rural. “C�lio, por meio de seus in�meros contatos com personalidades do mundo acad�mico franc�s, teve grande import�ncia para concretizar a vinda para o programa de mestrado da universidade de eminentes professores de literatura, psicanalistas e especialistas do pensamento de Freud e Lacan. A vinda do fil�sofo Michel Foucault teve grande repercuss�o no mestrado e no Departamento de Filosofia”, revela Jos� de Anchieta Correa, ex-coordenador do programa de p�s-gradua��o em filosofia da UFMG, no livro “Tributo a C�lio” (Topol�gica).
Durante o tour mineiro, Foucault foi mimado por C�lio com doses da mineir�ssima cacha�a, levada num odre, cantil feito de pele de animal, como revela a jornalista Daniela Arbex em seu premiado livro “Holocausto brasileiro” (Gera��o Editorial), que aborda o horror infligido a pacientes do Hospital Col�nia de Barbacena.
Jo�o Carlos diz que o portal quer inspirar e abrigar debates sob o vi�s contempor�neo. N�o se trata de memorabilia nost�lgica, mas do memorial da produ��o intelectual de um homem que jamais se cansou de ensinar a pensar. L� est�o, por exemplo, refer�ncias a 15 livros que publicou. Economista, Jo�o Carlos fez as contas: em 60 anos, Garcia comprou um livro a cada quatro dias!
Nesse acervo, chama a aten��o a entrevista dada por ele a alunos de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Al�m de “papa” da psicologia social e da psican�lise lacaniana, era pesquisador tarimbado. Educad�ssimo e acolhedor, como lembram os amigos, mas defensor incisivo de suas ideias.
“Pensando em algumas pesquisas que s�o feitas no Brasil atualmente, diria que, a rigor, o Brasil n�o precisa saber como o rato aprende a andar no labirinto. Precisa saber, e urgentemente, como uma popula��o analfabeta, vermin�tica e subnutrida se organiza e faz progredir o pa�s”, afirmou aos estudantes da UFRJ, em 1972.
A psic�loga Regina Helena de Freitas Campos, PhD em educa��o pela universidade de Stanford e professora da UFMG, acompanhou C�lio desde a d�cada de 1960. Foi assistente dele, considera-o seu “pai intelectual” – ou “padrinho”, como preferia o mestre. A entrevista concedida por ela ao portal revela muito da contribui��o dele ao pensamento brasileiro.
“A gente ia atr�s de respostas, e o C�lio nos devolvia d�vidas”, contou, observando que ele era cr�tico em rela��o � psicologia como mero instrumento de adapta��o do ser humano ao trabalho ou � pr�pria vida. N�o � poss�vel, por exemplo, tratar de adolescentes em conflito com a lei – C�lio detestava o termo “menor infrator” – sem considerar a dimens�o pol�tica de sua viv�ncia.
Em parceria com a Escola de Engenharia da UFMG e o Tribunal de Justi�a de MG, o psicanalista desenvolveu projeto de qualifica��o profissional desses jovens. Criou a chamada Cl�nica da Car�ncia, voltada para cidad�os exclu�dos.
“Servi-me da psican�lise como instrumento no trabalho de cl�nica no consult�rio, mas tamb�m em atividades pr�ticas de psican�lise aplicada. Tanto assim que minhas contribui��es no campo do atendimento ao jovem infrator se deixam marcar pela psican�lise, pensada politicamente”, explicou Garcia, que � um dos verbetes do “Dicion�rio de psicologia latino-americana”.

CONEX�O COM O MUNDO
Regina Helena diz que tornar p�blico o acervo de seu mestre, via UFMG, � de extrema import�ncia, pois ali se conta a hist�ria da psicologia e da psican�lise no Brasil a partir dos anos 1950, al�m de suas conex�es com ideias desenvolvidas na Europa e nos Estados Unidos.
“A psicologia social brasileira, reconhecidamente, se destaca em rela��o �quela desenvolvida em outros pa�ses. Temos muito a ensinar a outros pa�ses. Ou seja, ensinar o que o C�lio nos ensinou: a vis�o da psicologia com enfoque social, com enfoque pol�tico, a aten��o � cultura brasileira”, ela afirma.
No portal, � emocionante ouvir C�lio Garcia, em viva voz, mandar o seu recado: “Quando o jovem infrator come�ar a tomar a palavra – eu espero que um dia ele tome a palavra, e n�o as armas –, ele vai usar um palavreado inapropriado, imprevis�vel e n�o vernacular”.
O professor disse isso h� muitos anos, mas parece que foi hoje, quando est� em voga a chamada “cultura perif�rica”, com seus romances vindos das favelas (v�rios deles premiados), al�m funks e raps – ainda pouco compreendidos – com sua potente linguagem “n�o vernacular”.