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Estado de Minas entrevista/Ana Paula Maia

'Horror da vida real � pior que a fic��o'

Escritora de livros premiados e da s�rie 'Desalma' lan�a o tenso e perturbador romance 'De cada quinhentos uma alma'


03/12/2021 04:00 - atualizado 03/12/2021 07:36

Ilustração de Ana Paula Maia
(foto: Arte/EM/D.A PRess)
“A epidemia que se espalha abruptamente � o sopro da morte que vem de todas as dire��es.” Imposs�vel avan�ar nas p�ginas de “De cada quinhentos uma alma” (Companhia das Letras) sem lembrar os acontecimentos no mundo da COVID-19. “� uma guerra contra o invis�vel e ningu�m tem ideia do que � essa porra de v�rus”, afirma um dos personagens do mais recente romance de Ana Paula Maia.

Mas o ambiente no qual se movem as cria��es da escritora carioca, atualmente morando em Curitiba, � mais perto de um cen�rio apocal�ptico (“terra desolada e afligida”) do que do mundo em que ainda estamos. Entre a ira dos c�us e a indiferen�a dos homens, Edgar Wilson (personagem apresentado pela escritora em romances anteriores) tem a miss�o de recolher e transportar carca�as de animais mortos. Ao vagar por estradas quase desertas, ele enfrenta o autoritarismo de militares e se depara com cenas angustiantes e brutais.

Afinal, “a morte est� em toda parte” e � “tempo de matar e morrer”; mesmo a beleza, “que o vento espalha simulando um inverno rigoroso”, � m�rbida, pois “carrega o cheiro dos ossos e das v�sceras incinerados.” O que resta, ent�o? “Alguma miseric�rdia; depois s� restar� a escurid�o”, sentencia Tom�s, ex-padre, companheiro de Edgar Wilson em suas andan�as nas estradas e “vilarejos apagados do mapa”. 

Duas vezes vencedora do Pr�mio S�o Paulo de Literatura, Ana Paula Maia � tamb�m roteirista: a s�rie que criou para o Globoplay, “Desalma”, est� na segunda temporada. A seguir, uma entrevista com a autora, que, com frases curtas e fortes, construiu uma narrativa tensa e perturbadora at� o desfecho, arrebatador. 

Al�m de alguns personagens, o que h� em comum entre “De cada quinhentos uma alma” e seus romances mais recentes?
Tudo come�a em 2013, com “De gados e homens”, meu quinto livro. Ali�s, o t�tulo “De cada quinhentos uma alma” pode ser encontrado num par�grafo em “De gados e homens”. Ou seja, tudo interligado. Minha obra � costurada num imenso arco dram�tico. O pren�ncio de um fim dos tempos, seja do mundo ou de um ciclo, est� presente em “De gados e homens” e os acontecimentos desse livro j� mostram uma perturba��o aproximando-se de n�s.

O novo livro cita uma epidemia que “se instalou, as estradas est�o desertas, assim como ruas, pra�as e parques”. Como a pandemia do coronav�rus – e as consequ�ncias, como o isolamento social – impactaram na cria��o de “De cada quinhentos uma alma”? E na sua vida pessoal?
 Iniciei o pren�ncio de uma perturba��o na ordem social e no ecossistema em “De gados e homens”, como j� mencionei. Quando publiquei “Enterre seus mortos”, em 2018, continuei com a ideia de uma perturba��o se aproximando, agora n�o mais no confinamento de gados, e sim nas estradas do interior do pa�s. Neste livro, que � a primeira parte da trilogia, cujo “De cada quinhentos uma alma” � a segunda parte, eu tive a experi�ncia sombria e angustiante de escrever minha fic��o, por�m assistindo ao mundo real afundar num colapso epid�mico. Isso foi novo. At� ent�o, eu escrevia, fechava a tela do notebook e voltava ao mundo real mais comum. Por�m, eu fechava a tela do notebook e o mundo do lado de fora da fic��o se tornava cada dia mais imprevis�vel e mortal.

Como se estabelece a rela��o entre os homens e os animais em “De cada quinhentos uma alma”?
 A rela��o entre os homens e os animais, em minha obra liter�ria, inicia-se em “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, meu terceiro livro, publicado em 2009. O homem � bestializado � medida que o animal irracional � humanizado. O homem se integra ao animal � medida que come e bebe do seu sangue, tornando-se, assim, parte do animal. Sendo seu predador, que suga sua vida para viver. Com esse pensamento, somado � outras ideias inerentes ao meu pensamento cr�tico, fui construindo uma obra liter�ria em que essa rela��o � colocada em evid�ncia em diversos momentos da narrativa. Em “De cada quinhentos uma alma”, o pren�ncio do fim, seja do mundo ou de um ciclo, vem alardeado pelos animais e insetos. Em “De gados e homens”, as vacas s�o os animais em destaque, e uma cena horr�vel de pessoas que faziam fila na porta do matadouro em busca de restos de vacas mortas para comer foi retratado em 2013. O horror da vida real � ainda pior que o da fic��o, pois em 2021 estamos assistindo a isso. 

Acredita que “De cada quinhentos uma alma” pode ser lido como uma alegoria do Brasil atual? 
Depende do filtro de leitura de cada um. Dif�cil falar. Mas, sim, � poss�vel. Eu acho que � uma alegoria do que ocorre no mundo.

Como surgiu a ideia de trazer o arrebatamento, descrito na “B�blia” e retratado em romances recentes como “Os deixados para tr�s” (Tom Perrotta), para o novo livro? O que mais a impressiona na “B�blia” do ponto de vista da narrativa?
 As quest�es b�blicas come�aram a ser retratadas em minha obra quando escrevi “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, de 2009. J� faz mais de 10 anos que trabalho sobre essas quest�es b�blicas. Quem leu meus livros pode identific�-las. Sempre gostei da “B�blia” como um livro para identificar comportamentos, porque possui uma gama rica de personagens e, claro, � um livro que ajudou e muito a construir a sociedade ocidental. Enquanto narrativa, � fascinante e potente.

 “A morte est� em toda parte”, voc� escreve. O que representa a morte na sua fic��o?
� o principal tema da minha fic��o. O segundo tema seria a origem do mal. Nunca encontrei a resposta, mas vale especular.

“Os tr�s homens avan�am pela estrada tentando conter o horror de um iminente apocalipse.” E para onde vai a sua literatura depois do apocalipse?
A�, voc� vai ter que esperar o pr�ximo livro para descobrir.

Como tem sido a experi�ncia de escrever roteiros, como no caso da s�rie “Desalma”? Consegue enxergar conex�es entre os seus livros e a s�rie? Pretende escrever os roteiros de eventuais adapta��es audiovisuais de seus romances?
A melhor experi�ncia poss�vel. Gosto muito e “Desalma” possui uma tem�tica que me fascina h� muito tempo. Sempre h� uma conex�o aqui outra ali. Imposs�vel quando se trata de uma obra autoral. Ainda n�o tenho planos de levar meus livros para o audiovisual, mas gostaria, sim, em algum momento.

Trecho

“Tom�s n�o obt�m resposta e respira fundo ao acender seu charuto e fumar em sil�ncio por alguns segundos. Pensa r�pido e profundamente. Diante do cen�rio de horror, compreende que por todos esses anos ele foi preparado para estar exatamente neste lugar, neste exato momento. Seu lugar definitivamente n�o � em uma par�quia, mas recolhendo corpos, seja de animais ou de homens. Os prop�sitos do Senhor s�o mist�rios para seus escolhidos, pensa Tom�s. Em sua cabe�a, somente uma frase ecoa como o som das trombetas dos mensageiros do c�u... A morte � chegada. � tempo de matar, � tempo de morrer. 
O caos � silencioso. Move-se insuspeito. Penetra pelas brechas ordin�rias que ignoramos. Instala-se, e, assim como um organismo vivo, seu instinto � expandir-se, sulcando camada ap�s camada at� enraizar-se. Quando nos damos conta, ele � quem j� dita as ordens e os pr�ximos movimentos. Nem mortos nem impotentes; estamos dominados.

Capa do romance 'De cada quinhentos uma alma'

“De cada quinhentos uma alma”
.Ana Paula Maia
.Companhia das Letras
.108 p�ginas
.R$ 44,90


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