“Em meu corpo, um planeta; ali, onde acho que o f�gado mora, plantaram uma ro�a: os tub�rculos de mandioca e inhame incham dentro da carne; no lugar do cora��o uma menina soca pil�o e as pancadas ressoam nos quatro cantos da cavidade tor�cica; minhas veias s�o sulcos fabricados pelas arranhaduras de dente de peixe-cachorro; meu peito � o p�tio que os passantes cruzam a torto e a direito e, em algum lugar, algu�m cavou um t�nel que uma mo�a percorre chacoalhando um marac�. Os �rg�os ocos, est�mago, es�fago, intestino grosso e delgado, s�o s�tios arqueol�gicos cheios de escava��es, e meu rosto arde feito ro�a queimada.
Maru me fisga, me pega, me puxa pela m�o e o sol faz o resto. Imposs�vel ter pensamentos sombrios quando a luz amarela se derrama pelo ca- minho, as folhas cintilam � nossa passagem e os meninos riem com vontade, golpeando os cip�s de tim� que puxam pra que se soltem dos galhos, caindo uns por cima dos outros, em eterna brincadeira. O riso deles � o pr�prio rio. E rio com eles, mesmo sem entender o que dizem, mesmo quando provocam Maru, provavelmente por minha causa. Os mais novos repetem, como papagaios: ‘Anakinalo, Anakinalo!’.”
Em imers�o no Brasil profundo, na��o que se funda pela ocupa��o milenar dos povos da floresta, Ana, a adolescente paulista, branca, de classe m�dia, assimila a metamorfose de seu corpo em aldeia ind�gena do Alto Xingu. Ap�s a s�bita morte da m�e, com quem vivia, � levada pelo pai arque�- logo “a uma outra cartografia do pa�s”, em descri��o de Ailton Krenak, ao apresentar o livro. Escavando as terras pretas, as mais f�rteis do mundo, produzidas pelo meio de vida e forma de ocupa��o ind�gena que retrocede h� seis mil anos, a atividade do pai de Ana, que traduz a puls�o entre a vida e a imortalidade, constitui a espinha dorsal de “Terrapreta” (Editora 34), romance de estreia de Rita Carelli, atriz e diretora de cinema e de teatro.
Apesar disso, o pai, cujo nome n�o se revela, n�o � o protagonista da hist�ria. Ana, “um p�ssaro de- sorientado”, uma “esp�cie de fantasma, uma emiss�ria de outro mundo”, que chega na aldeia despertando os cuidados do menino Maru, �, por vezes a narradora, por vezes a narrada de uma hist�ria, cujo principal personagem � o Brasil dos povos das florestas, exuberante, das terras pretas, hostilizado e depredado por alguns; protegido por tantos outros que resistem.
Apesar disso, o pai, cujo nome n�o se revela, n�o � o protagonista da hist�ria. Ana, “um p�ssaro de- sorientado”, uma “esp�cie de fantasma, uma emiss�ria de outro mundo”, que chega na aldeia despertando os cuidados do menino Maru, �, por vezes a narradora, por vezes a narrada de uma hist�ria, cujo principal personagem � o Brasil dos povos das florestas, exuberante, das terras pretas, hostilizado e depredado por alguns; protegido por tantos outros que resistem.
Tra�os autobiogr�ficos
� assim que este romance etnogr�fico – em alguma medida autobiogr�fico, j� que Rita Carelli tamb�m perdeu a m�e aos 14 anos e acompanhou pela inf�ncia e adolesc�ncia os pais pesquisadores em imers�o pela vida de diferentes etnias e aldeias – aborda a metamorfose natural de um corpo, em transi��o entre mundos. Das sociedades ocidentais acumuladoras, individualizadas ao extremo, focadas no lucro e na opress�o dos fortes sobre os fracos, para as sociedades constelares. Nestas, a passagem na terra � partilhada com todos os seres de um planeta vivo – animais, plantas, �rvores, rios, montanhas.
� tamb�m, e sobretudo, uma jornada integrada � mem�ria ancestral daqueles que, pelo rito funer�rio do kuarup– em que Guet�, o Sol, com o seu irm�o Mune, o Lua, celebram com os humanos, completam o tr�nsito da Terra para a aldeia dos mortos, a aldeia da eternidade, o cami- nho do c�u estrelado da Via L�ctea. “Rita narra uma jornada com gente, e tamb�m com gentes-bicho, gentes-esp�rito, de onde emerge esta arqueologia sens�vel e cuidadosa dos mist�rios que d�o sentido � terra ancestral e aos seres que transitam entre as n�voas e brumas dos tempos da cria��o de ou- tros mundos pret�ritos”, descreve Ailton Krenak na orelha do livro.
� tamb�m, e sobretudo, uma jornada integrada � mem�ria ancestral daqueles que, pelo rito funer�rio do kuarup– em que Guet�, o Sol, com o seu irm�o Mune, o Lua, celebram com os humanos, completam o tr�nsito da Terra para a aldeia dos mortos, a aldeia da eternidade, o cami- nho do c�u estrelado da Via L�ctea. “Rita narra uma jornada com gente, e tamb�m com gentes-bicho, gentes-esp�rito, de onde emerge esta arqueologia sens�vel e cuidadosa dos mist�rios que d�o sentido � terra ancestral e aos seres que transitam entre as n�voas e brumas dos tempos da cria��o de ou- tros mundos pret�ritos”, descreve Ailton Krenak na orelha do livro.
Vis�o do kuarup
Na hist�ria de Ana, tempo e espa�o se entrela�am pela mem�ria da narrativa entre S�o Paulo, onde a adolescente vive antes da morte da m�e, a aldeia do Alto Xingu e Paris, para onde se muda para cursar a p�s-gradua��o. O retorno � aldeia em que o relato culmina se d� quando, informada da morte do chefe Kamaka, tamb�m recebe na Fran�a, numa correspond�ncia sem remetente, o seu di�rio adolescente esquecido na aldeia. Ana decide acompanhar o kuarup de Kamaka. “Entramos em espa�o a�reo brasileiro.
Mas o c�u tem na��o? Vou para um Brasil al�m do Brasil. Uma terra que n�o cabe no pa�s, que existe a despeito dele, mesmo sendo seu maior tesouro. Sobrevoando esse c�u carregado de nuvens, me pergunto o que me aguarda l� embaixo. Na minha mem�ria, essas nuvens escondem lagoas gr�vidas de peixes, crian�as nuas correndo pela pista de pouso, mulheres que voltam das ro�as carregadas de mandioca, com cestos t�o grandes que mal posso levantar do ch�o, homens transportando imposs�veis toras de kuarup. Escondem �rvores que, por sua vez, tamb�m chefiam seus cl�s, colibris falantes, mo�as que namoram jacar�s. Ainda estar�o l�?”
Mas o c�u tem na��o? Vou para um Brasil al�m do Brasil. Uma terra que n�o cabe no pa�s, que existe a despeito dele, mesmo sendo seu maior tesouro. Sobrevoando esse c�u carregado de nuvens, me pergunto o que me aguarda l� embaixo. Na minha mem�ria, essas nuvens escondem lagoas gr�vidas de peixes, crian�as nuas correndo pela pista de pouso, mulheres que voltam das ro�as carregadas de mandioca, com cestos t�o grandes que mal posso levantar do ch�o, homens transportando imposs�veis toras de kuarup. Escondem �rvores que, por sua vez, tamb�m chefiam seus cl�s, colibris falantes, mo�as que namoram jacar�s. Ainda estar�o l�?”
Ao deixar o namorado em Paris, Ana n�o sabe, mas est� gr�vida, como em algum momento, j� na aldeia, pressente Padj�, vi�va de Kamaka. E aprende da amiga Kassuri, que vivia resguardo quando Ana primeiro chegou � aldeia, que “eu te amo”, nessa l�ngua nativa, significa: “Eu carrego na minha barriga”.
Nascimentos, transforma��es, mortes, ritos de passagem, entidades, vida – a cosmovis�o ind�gena � o caldo que nutre todo o romance, que tamb�m � a hist�ria da resist�ncia dos povos originais contra a f�ria do homem branco. Nas palavras de desabafo do chefe Kamaka: “A gente derruba a mata, faz comida (...) depois planta pequi, que fica pros nossos netos ou deixa formar capoeira, fica sendo mata de rem�dio. A� cresce o sap�, que a gente usa pra cobrir as casas; depois de um tempo vira floresta de novo. Na mata que n�o foi cortada tem muita coisa importante pra gente: tem copa�ba pra rem�dio, pau de fazer casa. Agora v�m os brancos, tiram a mata, plantam soja, jogam veneno, tiram a soja, plantam mais, jogam veneno de novo... Todo ano jogam veneno! Eles dizem que a terra � deles e tratam ela assim? Eu n�o entendo, como voc�s v�o fazer no futuro?”
Entrevista/Rita Carelli (foto)

“� um livro de rever�ncia, mas sem idealiza��o”
Como foi a elabora��o de “Terrapreta”?
A minha m�e era antrop�loga e trabalhava com povos ind�genas. Vem dela e de meu pai essa minha aproxima��o com os povos ind�genas. O meu pai � indigenista. Ent�o eu frequento as aldeias desde beb�. Esse romance tem um cerne autobiogr�fico, est� sendo escrito h� quase 20 anos. Todo o epis�dio da morte da m�e tem muito de autobiogr�fico. E algumas dessas passagens referentes a esse momento eu escrevi quando tinha 15, 16 anos. Claro que n�o sabia que seria um livro, mas tenho notas desde essa �poca.
Depois, aos 19 anos, fiz uma viagem ao Alto Xingu, fiz di�rio com muitas das hist�rias ind�genas que est�o no livro, as hist�rias mitol�gicas s�o anota��es a partir de encontros com narradores ind�genas. De novo, eu ainda n�o sabia que seria um livro, mas teve um processo que durou muito tempo. E, finalmente, h� 4 anos, pela provoca��o de uma editora amiga, decidi sentar e reunir esses elementos num romance.
Depois, aos 19 anos, fiz uma viagem ao Alto Xingu, fiz di�rio com muitas das hist�rias ind�genas que est�o no livro, as hist�rias mitol�gicas s�o anota��es a partir de encontros com narradores ind�genas. De novo, eu ainda n�o sabia que seria um livro, mas teve um processo que durou muito tempo. E, finalmente, h� 4 anos, pela provoca��o de uma editora amiga, decidi sentar e reunir esses elementos num romance.
Quando escreveu “Terrapreta” e concebeu a personagem Ana (ou Anakinalo), imaginou que a hist�ria de um Brasil profundo, sob ataque, seria o protagonista do livro?
� um livro que revela um Brasil profundo muito maltratado, muito violento, mas � um livro que me permite compartilhar com outras pessoas a beleza de sua pot�ncia, de sua sabedoria. Foi uma sorte a que tive de circular nas sociedades ind�genas. � um livro de rever�ncia, sem idealiza��o desse mundo, mas uma declara��o de amor. Infelizmente, o Brasil deu as costas para as popula��es ind�genas e s�o universos t�o incr�veis que queria levar os leitores para este passeio.
O Brasil est� despertando para os universos ind�genas agora, h� um interesse pelas tem�ticas, as redes sociais favoreceram essa circula��o das vozes ind�genas de den�ncias. Mas para quem est� envolvido com a quest�o ind�gena desde sempre, essa hist�ria nunca parou, vai mudando de cara, entra governo, sai governo, mas a situa��o � sempre prec�ria, sempre violenta, estamos sofrendo uma agudiza��o da viol�ncia agora. Mas as quest�es ambientais s�o preocupantes h� muito tempo, ent�o � um cont�nuo de viol�ncias e precariedades que nunca parou.
Mas agora estamos vivendo momento de enaltecimento do �dio e do racismo na esfera federal e oficial que � uma coisa muito assombrosa. Mas o que � mais terr�vel � que agora o discurso de �dio ficou autorizado. Abriu-se a caixa de pandora. H� uma viol�ncia estatal e a viol�ncia estimulada de um contrapoder, de milicianos e jagun�os no campo. � um faroeste, uma matan�a, essa viol�ncia no campo e o assassinato sistem�tico de lideran�as ind�genas que se exacerbou muito nos �ltimos anos.
O Brasil est� despertando para os universos ind�genas agora, h� um interesse pelas tem�ticas, as redes sociais favoreceram essa circula��o das vozes ind�genas de den�ncias. Mas para quem est� envolvido com a quest�o ind�gena desde sempre, essa hist�ria nunca parou, vai mudando de cara, entra governo, sai governo, mas a situa��o � sempre prec�ria, sempre violenta, estamos sofrendo uma agudiza��o da viol�ncia agora. Mas as quest�es ambientais s�o preocupantes h� muito tempo, ent�o � um cont�nuo de viol�ncias e precariedades que nunca parou.
Mas agora estamos vivendo momento de enaltecimento do �dio e do racismo na esfera federal e oficial que � uma coisa muito assombrosa. Mas o que � mais terr�vel � que agora o discurso de �dio ficou autorizado. Abriu-se a caixa de pandora. H� uma viol�ncia estatal e a viol�ncia estimulada de um contrapoder, de milicianos e jagun�os no campo. � um faroeste, uma matan�a, essa viol�ncia no campo e o assassinato sistem�tico de lideran�as ind�genas que se exacerbou muito nos �ltimos anos.
“Terrapreta” foi o seu romance de estreia. H� outros planejados?
Estou escrevendo um romance hist�rico que conta um pouco a hist�ria dos internatos jesu�tas no cora��o da Amaz�nia. Um dos meus personagens centrais � um mission�rio jesu�ta da linha da Teologia da Liberta��o, um aliado da luta ind�gena, que acabou n�o se tornando padre e aderiu � f� ind�gena.

“Terrapreta”
Rita Carelli
Apresenta��o de Ailton Krenak
Editora 34
329 p�ginas
R$ 54
